Sidarta Ribeiro

Professor titular de neurociência, um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN

Opinião

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A guerra pela vida

É no ponto de máximo perigo que se faz a travessia da grande água. Nossa saúde como nação depende da lucidez e da luta

A guerra pela vida
A guerra pela vida
Foto: EVARISTO SA / AFP
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Atravessamos um momento extremamente perigoso para o Brasil, nosso quase-país que corre o risco de nunca chegar a ser, de morrer na ponta da praia. Se não superarmos os desafios quase intransponíveis desse momento distópico, nosso futuro será mais cruel do que o presente.

Desde as profundezas da floresta amazônica ecoa pelo planeta o martírio de Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips, massacrados por um mecanismo de produção de morte cujas engrenagens são as práticas ilegais da caça, pesca, garimpo, desmatamento e quaisquer outros extrativismos predatórios, cada vez mais articulados ao tráfico de armas, drogas, ouro e pedras preciosas.

A chegada ao governo federal dos defensores da predação marcou a abertura oficial da temporada de caça aos indígenas, ativistas, jornalistas e servidores públicos comprometidos com a vida. Não por acaso, Dom e Bruno foram executados com munição de caça.

Quem mandou matá-los? Quem sabia e não fez nada para impedir? Quantas pessoas e organizações concorreram para essa desgraça? A Polícia Federal tardou em investigar o desaparecimento, mas se apressou em declarar que não houve mandantes. Em contraponto, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) foi rápida em iniciar as buscas e apontar o envolvimento de uma organização criminosa à qual pertencem os assassinos confessos.

A despeito do pouco que sabemos, é fácil compreender que os interesses dos predadores do vale do Javari, na fronteira oeste da Amazônia, perto do Peru, se alinham com os de predadores a mais de 1,3 mil quilômetros dali, no outro lado da floresta, aqueles que na fronteira norte da Amazônia com a Venezuela mandam estuprar e matar os Yanomâmi para expulsá-los das terras que ocupam há milênios.

O que articula os interesses difusos dos predadores em toda parte é o desejo insensato de acelerar ao máximo o extrativismo destruidor de biomas e culturas. Esse desejo de morte se satisfaz pela fragilização, sabotagem, corrupção e infiltração do Estado pelo crime organizado.

Nada disso é novo, mas, no governo atual, o mecanismo de produção da morte passou a ser oficialmente protegido, defendido e promovido pelas autoridades constituídas. O que isso significa, exatamente? O que será tão enorme e tão perto de nós que não conseguimos perceber com nitidez?

Comparações geopolíticas são úteis para entendermos o tamanho do risco que corremos. Quem serão nossos Pablos Escobares e generais Jesús Rebollos? Estarão na Câmara, no Senado, nos Ministérios? Onde mais? Não sabemos e parece que não queremos saber. Vivemos na bruma de nossa própria falta de informação, reflexão e memória. Há 22 anos, os rappers Sabotage e Black Alien avisavam: “Quem tá no erro sabe, cocaína no avião da FAB”.

Compreender a evolução das interações entre militares brasileiros e outras forças militares e paramilitares do caldeirão amazônico é tarefa urgente para jornalistas, pesquisadores e democratas em geral. Se estamos voando sem radar e no escuro, um pouco de imaginação prudente pode acender o farol e revelar o monstro que ameaça nos engolir. É hora de compreender a natureza do pesadelo que nos tomou de assalto, antes que ele se concretize muito além do que já foi feito e dito.

É urgente unir os diferentes vetores políticos do Brasil para salvar o planeta da destruição de nosso projeto de nação. Como têm reiterado lideranças indígenas e pesquisadores, como têm denunciado jornalistas como Eliane Brum, Claudio Angelo e Leandro Demori, a Amazônia está em guerra. Se Bolsonaro for derrotado nas eleições, a guerra vai escalar. O pior está por vir.

Por isso, não podemos desesperançar. É no ponto de máximo perigo que se faz a travessia da grande água. Nossa saúde como nação depende da lucidez e da luta. A isso se refere Eliane Brum quando diz que esse momento é nosso Banzeiro Okotó, pois banzeiro é o lugar mais perigoso na travessia do rio e okotó é o caracol iorubá que traz num ponto único de ação um novo padrão de crescimento, harmônico e progressivo (Banzeiro Okotó, Companhia das Letras, 2021).

Bruno e Dom, um indigenista e um jornalista. Dois filhos, dois irmãos, dois maridos. Um pai e um tio. Dois cidadãos do centro do mundo, dois guerreiros do amor pela Amazônia. Que seus espíritos luminosos sobrevoem matas, rios e igarapés convocando os espíritos ancestrais de todas as etnias da floresta profunda para vencer a guerra contra a vida. É hora de pintar a cara de urucum e abrir os olhos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1214 DE CARTACAPITAL, EM 29 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A guerra pela vida”

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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