Política
Mulheres na mira
Enquanto Bolsonaro tenta reverter a enorme rejeição feminina, Damares Alves atua para o País retroagir nos direitos reprodutivos


Obcecado com as eleições de outubro, Jair Bolsonaro está empenhado em reconquistar o eleitorado feminino, que hoje daria vitória a Lula em primeiro turno. De acordo com a última rodada da pesquisa Quaest/Genial, divulgada em 8 de junho, o ex-presidente figura com 48% das intenções de voto nesse grupo, contra 24% do atual ocupante do Palácio do Planalto. É irônico pensar que o ex-capitão, machista de carteirinha, que atribui sua única filha a uma “fraquejada” e insultou numerosas vezes suas colegas na Câmara, quando ainda era um histriônico e irrelevante deputado, agora precise tanto das mulheres para salvar seus planos de reeleição.
O cenário revelado pelas sondagens eleitorais levou o PL de Bolsonaro a iniciar uma ofensiva pelo voto feminino. As propagandas do partido na tevê aberta exploram a tríade de terror, medo e “culpa cristã” para agregar votos de eleitoras conservadoras. Paralelamente, a ex-ministra Damares Alves e a primeira-dama Michelle Bolsonaro atuam como embaixadoras de programas que nunca saíram do papel, na desesperada tentativa de esconder a degradação das políticas públicas para as mulheres nos últimos três anos. Michelle, por sinal, foi filiada às pressas ao PL para justificar a sua participação nos programas eleitorais a partir de agosto. Do chamado “gabinete do ódio” emana toda a sorte de fake news sobre aborto e supostas ameaças à tradicional família cristã, que deve se proteger com armas de fogo.
Por ora, o discurso não colou. Embora Bolsonaro diga que Lula é o preferido das mulheres porque “é mais bonito”, o que realmente as preocupa é a sobrevivência, ou seja, a crise econômica, a elevada inflação e a gestão da pandemia. “Moro na periferia e vejo o drama das mulheres que perderam seus empregos. Fizemos campanhas para distribuir cestas básicas, priorizando as famílias chefiadas por elas. É dolorido tantas mães humilhadas, envergonhadas, dependendo de cestas básicas e doações de máscaras”, comenta a costureira e artesã Rejane Soares, moradora de Macapá.
Se dependesse só das brasileiras, Lula seria eleito em primeiro turno, revela pesquisa
Como a maior parte das mulheres brasileiras, que representam 52% do eleitorado, Soares vê no dia a dia o impacto da desastrosa política econômica de Bolsonaro. A fome atinge 33 milhões de brasileiros, mas impacta especialmente as mulheres negras e as crianças. Segundo levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 58% da população convive com algum grau de insegurança alimentar. Em 2021, ao menos 11,5 milhões famílias eram chefiadas por mulheres, atesta o IBGE. Com salários 27% menores que os dos homens, elas se desesperam com a disparada dos preços dos alimentos e do gás de cozinha.
Dentro do universo feminino, as mulheres negras, chefes de família ou que recebem algum benefício assistencial são mais propensas a votar em Lula. As eleitoras de Bolsonaro, por sua vez, tendem a ser de classe média e estão concentradas, sobretudo, nas regiões Sul e Centro-Oeste, explica o presidente da Quaest, Felipe Nunes. Além disso, as eleitoras do petista estão mais decididas em relação ao voto que as apoiadoras do ex-capitão.
Entre os homens, 70% estão convictos de sua decisão. Entre as mulheres, o porcentual cai para 58%. Mas a diferença, esclarece Nunes, se dá justamente entre as eleitoras inclinadas a votar em Bolsonaro, boa parte delas sem voto consolidado. Segundo a Quaest, Lula também ganha com folga entre os homens. A margem é, porém, bem mais estreita: 44% a 36%. “As questões econômicas e sociais afetam diretamente a percepção das mulheres sobre o governo”, diz o presidente do instituto. “Para elas, Bolsonaro também gerenciou muito mal a pandemia, uma vez que são elas o público mais sensível à negação da vacina pelo presidente, por exemplo.”
Sobrevivência. As mulheres brasileiras estão preocupadas com a crise e com a disparada dos preços dos alimentos – Imagem: Raimundo Paccó/AFP
Diante dessa realidade, Bolsonaro se apoia em Michelle e Damares, hoje candidata ao Senado pelo Distrito Federal, para alavancar sua popularidade, quase sempre com apelos de teor religioso, mas agora também acenando para o empreendedorismo. “A estratégia é apostar em um discurso de terror. São temas que tocam no medo e na culpa cristãs e têm forte impacto nas eleitoras evangélicas”, explica Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação pela USP e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião.
Damares parece ter aprendido alguns truques com o antigo chefe. “Somos, de fato, um governo cor-de-rosa. Quando falo que este é um governo cor-de-rosa, vejam quanto foi investido em mulheres no Brasil só em 2021: 236 bilhões de reais. Este é o governo Bolsonaro”, discursou em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, destacando o empenho de sua gestão no combate à violência contra elas. Uma pena que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou um demolidor relatório naquele mesmo mês, implodindo os sonhos cor-de-rosa da então ministra. Em 2021, o País registrou mais de 56 mil estupros, um a cada dez minutos. O aumento foi de 3,7% em relação ao ano anterior. Da mesma forma, foram registrados 1.319 casos de feminicídio no Brasil, um a cada sete horas.
Além disso, uma pesquisa do Instituto de Estudos Socioeconômicos, conhecido pela sigla Inesc, revela que foram cortados 89 milhões de reais do orçamento de programas de combate à violência contra a mulher para 2022. O estudo demonstra, ainda, que a Casa da Mulher Brasileira, centro de atendimento à vítima de violência doméstica, é uma bela peça de marketing criada por Bolsonaro e Damares, e nada além disso. No ano passado, dos 21,8 milhões de reais em despesas autorizadas pelo Congresso, o governo gastou apenas 1 milhão. Em 2019, nada foi executado e, em 2020, apenas 308 mil reais dos 71,7 milhões disponíveis no caixa.
No Consenso de Genebra, o Brasil faz tabelinha com nações que preveem o apedrejamento de mulheres acusadas de adultério
No Ministério da Saúde, também houve cortes e a descontinuidade de programas. Novas iniciativas surgiram dentro de uma lógica antigênero e, consequentemente, também antimulher, para agradar à base reacionária do ex-capitão. A Rede Cegonha, por exemplo, garantia às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo e à humanização do pré-natal, parto e pós-parto. Foi substituída pelo Rede Materna e Infantil (Rami), com ênfase na atuação dos médicos obstetras, estimulando também a indústria de cesáreas no País.
Outro legado deixado pelo Ministério da Saúde bolsonarista é a Cartilha da Gestante, que na prática libera a violência obstétrica no Brasil. Além de liberar a episiotomia (corte no períneo, região entre o ânus e a vagina, para ampliar o canal na hora do parto), também chancela a amamentação como medida contraceptiva. Durante o lançamento do documento, o secretário de Atenção à Saúde Primária, Raphael Câmara, defendeu ainda a “manobra de Kristeller”, pressão externa sobre o útero da mulher durante o parto, uma prática banida pela Organização Mundial da Saúde. Ao lado da “Capitã Cloroquina”, Mayra Pinheiro, agora candidata a deputada, Câmara foi um dos principais responsáveis por dar seguimento às medidas fundamentalistas e de aparelhamento ideológico na Pasta.
Agora, outro documento do Ministério da Saúde prevê o “excludente de ilicitude” do aborto somente “após investigação policial”, segundo a nota do próprio ministério. No Brasil, o aborto é autorizado em situações de estupro, risco de morte da mãe e anencefalia. Mas, para usufruir desse direito, a gestante precisaria se submeter à averiguação da polícia, defendem os fundamentalistas religiosos. O constrangimento imposto às mulheres provocou forte reação de especialistas da área da saúde, mas não chegou a surpreender, sobretudo após Damares tentar impedir o aborto de uma criança estuprada e grávida aos 12 anos. A garota precisou se deslocar para outro estado para ter acesso ao procedimento seguro em um hospital público.
Diga-me com quem andas. Damares levou o País a se unir com Egito, Arábia Saudita e Sudão na agenda reacionária, contra os direitos dos LGBTs e mulheres – Imagem: Redes sociais
“Bolsonaro transformou o Ministério da Saúde no paraíso da fisiologia, da corrupção, do fundamentalismo e do terraplanismo sanitário”, relata o deputado e ex-ministro Alexandre Padilha. O parlamentar adotou medidas contra essas iniciativas, como um requerimento de informação e um pedido de audiência pública na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, para o governo esclarecer as novas diretrizes do aborto, além de acionar o TCU contra a “cartilha da violência obstétrica”. A partir daí, o Ministério Público, junto ao TCU, pediu abertura de inquérito sobre o caso.
Além da Saúde, o governo Bolsonaro aparelhou também o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos. As obscurantistas pautas contra as mulheres abriram as portas para Damares participar de organizações ligadas à extrema-direita internacional. Muito dinheiro público, inclusive, tem sido desperdiçado para essa finalidade. É o caso do Consenso de Genebra, grupo de 30 países criado por Donald Trump. O Brasil uniu-se a nações como o Egito, que quer exigir autorização dos “guardiões” das mulheres para que elas possam viajar ao exterior ou participar da política, e Arábia Saudita, a prever o apedrejamento de mulheres acusadas de adultério. Durante a era Trump, Damares chegou a viajar para a Suíça, na companhia de Ângela Gandra, secretária nacional da Família, e do então chanceler Ernesto Araújo, somente para participar de um convescote do grupo. E lá se foram 228 mil reais de dinheiro público em passagens aéreas, hospedagem e outras despesas. Após vencer as eleições norte-americanas, Joe Biden tratou de retirar os EUA do fórum de nações extremistas. O Brasil permaneceu e assumiu a liderança.
De acordo com dados da entidade OpenDemocracy, entidades cristãs, principalmente dos EUA e ligadas a Trump, destinaram, de 2007 a 2020, mais de 280 milhões de dólares, o equivalente a 1,4 bilhão de reais na atual cotação, para financiar uma ofensiva contra os direitos reprodutivos das mulheres e contra os interesses dos grupos LGBTQIA+. Evidentemente, boa parte dos recursos desse lobby antiabortista entrou no Brasil pelas mãos de Damares. Agora, que se afastou do governo para disputar as eleições, quem assume o ministério é sua preposta Cristiane Britto, ligada às igrejas Evangelho Quadrangular e Batista da Lagoinha.
Enquanto o governo desperdiça recursos em fóruns da extrema-direita, as brasileiras padecem com o desemprego, a fome e a precarização dos serviços públicos, sobretudo na saúde e na educação, mas prometem dar o troco. “Espero que essa legião de ‘fraquejadas’ mostre nas urnas a resposta de tudo que Bolsonaro fez nesses quatro piores anos de nossas vidas”, afirma Soares. No que depender dela, o ex-capitão não terá sobrevida nem votos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mulheres na mira”
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