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Outro 7 a 1

O TCU libera a venda da Eletrobras. Voto solitário contra o negócio, Vital do Rêgo aponta os dolos da operação

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Entregaram o ouro. Sachsida e Guedes ganharam um prêmio de consolação. Cedraz e os demais colegas do TCU ignoraram os alertas de Vital do Rêgo - Imagem: Leopoldo Silva/Ag.Senado, Arquivo TCU e Edu Andrade/ME
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Adolfo Sachsida, novo ministro de Minas e Energia, foi à casa oficial do presidente da Câmara, Arthur Lira, na manhã da quarta-feira 18. O ambiente era hostil. Deputados do Nordeste cobraram a revogação da paulada na conta de luz autorizada em abril pela Agência Nacional de Energia Elétrica. Na Bahia, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte, a alta foi de cerca de 20%. No Ceará, de 24%. Para pressioná-lo, foi dito ao ministro que está pronta para ser votada em plenário a anulação do reajuste no Ceará. Quer dizer: ou ­Sachsida arranja uma saída, e logo, ou o decreto passa, pois a eleição está na esquina. Um ultimato que põe à prova as convicções ultraliberais do economista, ex-integrante do time de Paulo Guedes. Neoliberal, como se sabe, odeia ação governamental.

Na tarde da mesma quarta-feira 18, as ideias de Sachsida triunfaram, porém, no Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso. Foi no último julgamento antes de Jair Bolsonaro poder realizar um sonho acalentado por Guedes há 30 anos, desde a era Collor: entregar ao setor privado a Eletrobras, maior companhia elétrica da América Latina, cujos lucros alcançaram 5,7 bilhões de reais em 2021 e 2,7 bilhões no primeiro trimestre de 2022. Por 7 votos a 1, o TCU deu sinal verde aos planos do governo para um leilão de ações da estatal e os parâmetros de preço dos papéis. Nessa capitalização, estimada em 30 bilhões de ­reais, o governo ficará de fora. Por consequência, sua fatia na estatal, hoje de 65%, cairá a 45%, e aí surgirá um controlador privado. Só um milagre judicial, um improvável desinteresse de investidores ou uma surpreendente decisão da CVM e da SEC (“xerifes” do mercado de capitais aqui e nos Estados Unidos, respectivamente), atrapalhará a operação.

“Os homens do mercado estão em festa hoje, estão comprando uma égua prenhe premiadíssima, tem tantos filhotes, que nem se imagina”, disse no julgamento Vital do Rêgo, solitário voto contra a privatização. E acrescentou: “A conta (de luz) vai aumentar, e muito. Por quê? Está claro: as empresas internacionais cobram, em média, 250 reais o quilowatt-hora, enquanto a Eletrobras pratica o preço de 65 reais”. Curioso: os deputados que agora pressionam Sachsida para reverter a pancada da Aneel são os mesmos que aprovaram com folga a lei da privatização da Eletrobras, que, segundo o ministro do TCU, provocará um salto nas tarifas. Resultará ainda na financeirização do setor, na especulação com energia, como se vê na Europa, o que explica a presença de bancos por todos os lados no processo de capitalização.

“Os homens do mercado estão em festa. Estão comprando uma égua prenhe”, afirmou o ministro vencido

Vital do Rêgo não estava entre os integrantes da Corte visitados por Sachsida na terça-feira 17. Desde o ano passado, o ministro se mostrara contra a privatização. Conseguira adiar a primeira decisão, de fevereiro, quando o TCU examinava os valores que o governo quer receber da futura Eletrobras privada pelo direito de a empresa explorar 22 hidrelétricas administradas pela estatal. Guedes e Bento Albuquerque, o almirante substituído na pasta de Minas e Energia por ­Sachsida, calcularam em 67 bilhões de reais a chamada outorga. Ao esmiuçar o assunto, Rêgo concluiu que a cobrança deveria ser de 113 bilhões. Em vão. Seus colegas de tribunal não deram bola.

No julgamento da quarta-feira 18, o ministro apontou “seis ilegalidades” nas premissas que o governo usou para estimar o preço das novas ações. No mesmo dia, um papel ordinário, que dá direito a voto, era cotado a 42,50 reais, alta de 27% no ano. Na comparação com o dia da deposição de Dilma Rousseff e a chegada de Michel Temer ao poder, em 12 de maio de 2016, época em que a venda da estatal entrou nos planos de Brasília, valorização foi de cinco vezes.

Ao listar as ilegalidades, o ministro usou a palavra “dolo”. No Direito Civil, significa ação de má-fé a fim de induzir a erro. No Penal, é a violação deliberada da lei, por ação ou omissão. Uma das ­ocasiões em que o ministro sacou o termo foi ao descrever a subavaliação de Itaipu. A parte brasileira da usina binacional foi retirada da Eletrobras antes da privatização, mas, enquanto esteve dentro, valorizou as ações da companhia, pois é uma gigante hidrelétrica. A avaliação pelo governo, de 1,2 bilhão de reais, foi uma mera atualização do capital social, sem levar em conta o fluxo de caixa. “É negócio de pai para filho. Muito mais do que isso: é muitíssimo abaixo do preço calculado para outras empresas, não se sabe se por erro doloso. A cada dia que leio esse processo, mais eu sei que é um erro doloso”, afirmou.

A parte brasileira de Itaipu está aos cuidados de uma estatal recém-criada, a ENBpar, que assumiu ainda a ­Eletronuclear, outra retirada da Eletrobras. Esta manteve 36% das ações preferenciais, sem direito a voto, da ­Eletronuclear, o que não muda com a privatização. Ou seja, particulares terão voz em negócios e na política nuclear. Outras duas “ilegalidades” apontadas pelo revisor do processo, relatado pelo colega Aroldo Cedraz, têm relação justamente com a Eletronuclear, controladora das usinas de Angra 1 e Angra 2. A Eletrobras deixou de receber 2,7 bilhões de reais em dividendos da Eletronuclear desde 2010. Pela Lei das Sociedades Anônimas, calote no dividendo de acionista preferencial converte-o, na prática, em acionista com direito a voto. Apesar de deter 36% da Eletronuclear, a Eletrobras privada pode tornar-se a mandachuva na companhia. Pelo artigo 21 da Constituição, política nuclear é monopólio estatal.

Joia. A Eletrobras, maior holding de energia da América Latina, lucrou 5,7 bilhões no ano passado e 2,7 bilhões no primeiro trimestre – Imagem: iStockphoto

Outra “ilegalidade” citada pelo ministro é a bolada separada pela Eletrobras para pagar dívidas judiciais, cerca de 30 bilhões de reais. Uma semana antes, ele pedira uma fiscalização especial na estatal para averiguar essas provisões. Se a quantia tiver sido exagerada, e se isso for descoberto após a privatização, o Estado brasileiro terá sido surrupiado. Dinheiro terá deixado de ser computado como lucro e, portanto, de ser distribuído aos sócios em dividendos. Não só: quanto maiores as perdas potenciais, menor o valor da ação da empresa, e vice-versa, daí as provisões terem impacto no preço dos papéis a serem leiloados pela Eletrobras.

Os colegas de Vital do Rêgo preferiram ignorar os apontamentos. Bruno Dantas, um dos que se reuniram com Sachsida, e Benjamin Zymler louvaram as virtudes do mercado e defenderam que este sabe o que precisa saber sobre a privatização e é eficiente para assumir a Eletrobras. ­Walton Alencar, outro a receber a visita do ministro de Minas e Energia, e Augusto Sherman pregaram que, se não privatizar, não haverá como investir para atender às necessidades nacionais de energia. Ah, não? De 2012 ao primeiro trimestre de 2022, a empresa acumulou lucros de 10 bilhões de reais.

Há inúmeros conflitos de interesse no processo de privatização. E uma certeza: a energia vai ficar mais cara

Diante da posição da maioria dos ministros do TCU, “os homens do mercado estão em festa”, como havia anotado Vital do Rêgo. Os maiores ricaços brasileiros têm interesse no negócio. Jorge Paulo Lemann (fortuna de 72 bilhões de reais em 2022), Marcel Telles (47 bilhões) e Carlos Alberto Sicupira (40 bilhões) são acionistas da Eletrobras por meio do fundo 3G Capital. André Esteves (26 bilhões) é do BTG, que em 2020 adquiriu a maior consultoria privada do setor elétrico, a PSR. O BTG integra o sindicato de cinco bancos (os demais são Bank of America, ­Goldman Sachs, Itaú e XP) montado pela estatal para assessorar a privatização. Do quinteto, três possuem comercializadoras de energia (BTG, Itaú e XP).

Tem mais bilionários em conflito de interesses e com comercializadora de energia. Trata-se de Lirio Parisotto (11 bilhões), do Banco Genial. A instituição possui uma corretora de valores que controla um fundo detentor de 5% da Eletrobras. Outra firma do grupo foi contratada pelo BNDES para um pente-fino pré-privatização. Um terceiro braço do grupo recomenda a clientes que comprem papéis da estatal. E um quarto tem uma comercializadora de energia. Um conflito gritante de interesses, que não apenas a AEEL, associação dos empregados da Eletrobras, desnudou em uma assembleia-geral em fevereiro, mas também João Antonio Lian, representante de outro acionista minoritário.

O setor elétrico tem duas agendas atualmente, diz Ronaldo Bicalho, pesquisador do Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia da UFRJ e diretor do Instituto Ilumina. Uma é do setor em si, sobre transição energética. A outra é a da financeirização. “Todos os grandes bancos têm hoje uma comercializadora de energia.” Segundo ele, as instituições financeiras não vão entrar no setor para investir em produção de energia, mas para gerir a escassez. “A discussão na Europa hoje é essa. A energia é cara para os pobres. Aqui vão gourmetizá-la.”

Cobiça. Lemman e Esteves figuram entre os interessados – Imagem: Jonne Roriz/Estadão Conteúdo e Scott Olson/Getty Images/AFP

Por essa visão, consumada a privatização, a financeirização será completada com uma lei em tramitação na Câmara que promove a liberalização do setor elétrico. Das 22 usinas da Eletrobras, 17 estão no chamado regime de cotas, criado em 2012. Usinas “cotizadas” vendem energia barata, pois são antigas e amortizadas, 65 reais o quilowatt-hora. Eletricidade destinada a residências. Com a privatização seguida da liberalização, o controlador da Eletrobras poderá vender pelo preço que quiser e a quem quiser, inclusive a empresas, no chamado mercado livre. Neste, a energia é mais cara. No ano passado, o quilowatt-hora custou, em média, 313 reais, diz uma ação civil pública movida pelo PT, na Justiça Federal, contra a privatização.

A ação destaca a omissão da Aneel diante da privatização. Em 2017, no governo Temer, a agência dizia que encareceria a energia em 16%. Agora se cala. Seu presidente, André Pepitone, foi premiado com o cargo de diretor-financeiro de Itaipu. O PT moveu ainda uma ação popular na Justiça Federal e dois mandados de segurança no Supremo Tribunal Federal contra a venda. Um dos mandados, de fevereiro, caiu com o juiz Kassio Nunes Marques, indicado de Bolsonaro, e foi negado. O outro, mais recente, deve cair também. Tentar revertê-la em caso de vitória de Lula será difícil. O governo bolou regras jurídicas que dificultam acordos de acionistas e impõe preço muito alto para a recompra de ações.

“Identifiquei uma pesquisa recente, do PoderData, que mostra que 56% dos brasileiros são contrários à venda da Eletrobras”, disse Vital do Rêgo. “E é que eles não conhecem o que nós estamos descobrindo de ações dolosas cometidas contra a empresa.” Contra a empresa só, não. Contra o País. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Outro 7 a 1”

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