

Opinião
O aborto, de novo
A punição apenas serve para agredir uma segunda vez a vítima. Não evita a prática, só a torna mais perigosa para a saúde das mulheres


Nem a criminalização acaba com o aborto nem a descriminalização o incentiva. Nenhuma lei de descriminalização do aborto, em nenhum país do mundo, resultou em aumento de casos. Esse argumento está desmentido pela experiência. Na verdade, se pusermos de lado o preconceito e o interdito religioso, o aborto é sempre realizado em situação desesperada e aflitiva – e deixa um trauma psicológico em quem é forçada a tomar essa decisão. Um debate sério sobre o assunto deverá reconhecer que a decisão de uma mulher de interromper a gravidez implica sempre angustiantes dilemas morais.
A única questão social é então a de saber se ele será feito em boas ou em más condições de saúde (estou a falar, obviamente, da decisão de interromper a gravidez nas primeiras semanas, como é o caso da maioria das legislações europeias). Em última análise, o debate sobre a descriminalização é, na verdade, um debate sobre a necessidade de acabar com o flagelo social do aborto clandestino. A criminalização não evita a prática de aborto, mas torna-a perigosa para a saúde das mulheres. Nesse sentido, a declaração do ex-presidente Lula sobre a questão da interrupção voluntária da gravidez parece-me não apenas correta, mas também corajosa, muito corajosa.
A segunda coisa que a experiência nos ensina é que a criminalização do aborto apenas serve para agredir uma segunda vez a vítima. Os relatos de sofrimento e de angústia contados em tribunal pelas mulheres que fizeram aborto e que foram processadas nos ajuda a perceber que a violência do Estado não resolve nada, antes agrava tudo. Assim, a questão política do aborto torna-se uma escolha entre a repressão estatal e a autonomia individual. A minha convicção é de que a responsabilidade da decisão deve ser confiada à mulher grávida (mais uma vez estamos a falar das primeiras semanas de gravidez, que é o que está em causa no debate). Ela saberá, melhor do que todos os outros integrantes da sociedade, o que fazer, de forma informada e responsável, pesando todas as dúvidas, incertezas e dilemas morais que a decisão envolve. Mais ainda, como todos sabemos, a questão política envolve também aspectos de justiça social. Haverá sempre formas seguras de realizar interrupções de gravidez quando as mulheres são ricas, mas o mesmo não é verdadeiro para mulheres pobres, que são as principais vítimas. Dessa forma, a declaração de Lula não só termina com um longo e incompreensível silêncio político (em particular da esquerda) como termina com décadas de hipocrisia social sobre um assunto tão relevante para a igualdade e autonomia das mulheres nas sociedades contemporâneas.
Mas o assunto vai regressar. A decisão que se anuncia do Supremo Tribunal norte-americano de pôr fim à decisão judicial de 1973, no sentido de descriminalizar a interrupção voluntária da gravidez, baseada no princípio constitucional do direito à vida privada, vai relançar o debate em todo o mundo. Na verdade, sempre me pareceu que a decisão judicial é frágil demais para pôr fim à polêmica. E por uma razão principal: a decisão não foi tomada pelos órgãos legislativos que representam o povo norte-americano, mas pelos órgãos judiciais que têm uma legitimidade muito mais limitada e restrita. Esse foi o pecado capital que os países europeus não cometeram. Na Europa, a questão foi decidida em negociações parlamentares ou por meio de referendos específicos. Num caso como no outro foi o povo (direta ou indiretamente) a resolver a questão. O povo, não os juízes.
A lição histórica a tirar, a meu ver, deve ser a de que de nada serve judicializar questões sensíveis, em que coexistem na sociedade convicções diversas, profundas e igualmente respeitáveis. O único terreno dessas questões é o da política – o do debate aberto, o do esclarecimento e o da decisão do soberano, o povo. O mesmo argumento é válido para a questão política do casamento homossexual, que no Brasil foi decidido por juízes e não pelo Parlamento, como deveria ser.
Por mais sensíveis e delicadas que as questões sejam, o caminho não pode ser entregar aos juízes decisões que competem à política. Esse é o caminho da desistência, do cálculo e da covardia. Esse é o caminho da hipocrisia que consiste em fingir que o problema não existe. No caso do aborto, o problema existe, é um assunto grave de saúde pública e vai regressar ao debate. Resta dizer que nada é mais admirável na política do que o ato de coragem que vence o silêncio envergonhado. A declaração de Lula é corajosa. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O aborto, de novo”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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