Diversidade

A proibição ao aborto e a importância do controle político sobre os corpos das mulheres

Terrorismo sexual sofrido por mulheres é essencial à manutenção do sistema sob o qual temos vivido.

A série O Conto da Aia é um sucesso de crítica. Foto: Hulu
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Em uma banheira de aquecimento gradual, você ferveria antes de perceber”, afirma a personagem June, tornada Offred sob o regime teocrático de Gilead na obra O Conto da Aia. Apesar de publicado originalmente em 1985, o célebre livro da autora canadense Margaret Atwood não se baseou somente em sua capacidade criativa, mas também em inúmeros métodos de controle aos quais mulheres foram submetidas em regimes totalitários ao longo da história humana. Segundo a autora, nenhum dos terríveis martírios retratados em seu livro é verdadeiramente ficcional, tendo sido todos já infligidos às mulheres.

Retratando um período distópico no qual uma seita fundamentalista cristã arquiteta um golpe político contra o governo dos Estados Unidos da América após anos de lenta infiltração, a autora, ainda que de modo despretensioso, tece um cenário que poderia se desenrolar no Brasil atual.

A genialidade da obra de Margaret Atwood reside, justamente, em sua latente veracidade e em sua ânsia quase visceral por escancarar sobre nossos olhos que vivemos todos sob uma única bandeira: a misoginia.

Afinal, um dos mais emblemáticos desígnios da sociedade teocrática de Gilead, é a proibição total ao acesso à autonomia reprodutiva feminina, alocando assim mulheres em idade fértil que tenham sido consideradas “pecadoras”, no posto de escravizadas sexuais cuja finalidade seria a reprodução. Na sociedade de Gilead, o aborto é um dos piores crimes a serem cometidos, sendo punido com a morte.

O cenário descrito por Atwood traz consigo uma notória percepção política que ecoa nos discursos de teóricas feministas como Simone de Beauvoir e Andrea Dworkin, os direitos das mulheres sempre serão transitórios e facilmente revogáveis em uma sociedade patriarcal.

Como um presságio sombrio dos escritos de Atwood, no dia 02 de maio chegou ao conhecimento do público que os juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos realizaram uma votação, de maneira discreta, para revogar a decisão da década de 1970, mais conhecida como o caso “Roe versus Wade”,  que garante o acesso ao aborto legal e amplo no país.

A revogação consta no rascunho redigido pelo juiz Alito, o repúdio pela resolução de 1973, que garante o acesso seguro ao aborto em território americano, como também à resolução de 1992, que ampliou o direito no país. Não coincidentemente, um dos trechos de seu discurso, diz: “A conclusão inescapável é que o direito ao aborto não tem raízes firmes na história e nas tradições da nação”. Se revogada a lei, o aborto deixará de ser amplamente legal nos Estados Unidos, tornando-se passível de decisão dos representantes de cada estado.

Na última quarta-feira (11/05), um projeto de lei que visava manter o aborto como um direito garantido nos Estados Unidos foi reprovado em votação no Senado, tendo sido uma tentativa emergencial de contenção à ameaça recente aos direitos sexuais e reprodutivos plenos no país.

Em um cenário no qual a manutenção da ótica de produção tal como a conhecemos no capitalismo recente permanece, e dadas as conclusões de pesquisas a respeito da diminuição nos índices de natalidade dos países ocidentais considerados desenvolvidos, estratégias para que mulheres se mantenham procriando são peças-chave na continuidade da dominação econômica, social e reprodutiva sobre a classe feminina.

Uma sociedade que não detém o monopólio reprodutivo, não evolui sob os desígnios da estrutura patriarcal, que por sua vez estão nas bases do próprio capitalismo. Não há trabalho sem trabalhadores, e não há trabalhadores sem mulheres.

Como apresentado na pesquisa Fardo Global das Doenças 2017 (GBD) apresentada em matéria da BBC News, um dos fatores mais decisivos na diminuição dos índices de natalidade, está no aumento do acesso feminino à educação e aos métodos contraceptivos. Não obstante, alguns dos países apontados pela pesquisa como detentores de níveis de natalidade mais satisfatórios, como a Angola e o Níger, são considerados países não-desenvolvidos e possuem legislações mais rígidas em relação ao aborto.

Assim, se torna simples perceber que a manutenção das mulheres em espaços de vulnerabilidade social, econômica e educacional se faz necessária a fim de que o modelo adotado na sociedade patriarcal seja mantido, jamais perdendo de vista que mulheres racializadas e pobres sempre serão as mais atingidas.

Como podemos perceber através dos escritos da cientista política e pensadora decolonial Françoise Vergès, é necessário que as mulheres da “periferia” do mundo colonial permaneçam a ser exploradas de modo mais intenso, para que o sistema possa oferecer algumas concessões às mulheres brancas dos países desenvolvidos. Desta forma, se estabelece um nefasto “equilíbrio” nessa balança mortal.

Mulheres caracterizadas como personagens da série Handmaid’s Tale fazem ato em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos em frente ao STF

Por mais que alguns tentem ocultar o seu ultraje contra os direitos sexuais e reprodutivos através de discursos conservadores ou religiosos, jamais conseguirão ocultar o real objetivo de seu repúdio: o terrorismo sexual sofrido por mulheres é essencial à manutenção do sistema sob o qual temos vivido, e é política e financeiramente lucrativo.

Contudo, assim como a distopia de Margaret Atwood ocorre em um dos países mais desenvolvidos do Ocidente, têm ocorrido avanços contrários à integridade dos direitos sexuais e reprodutivos em outros países ocidentais. No dia 10 de maio, o jornal português Público noticiou que os médicos de família do país poderão passar a ser penalizados caso as mulheres que acompanham realizem a interrupção voluntária da gravidez (IVG), ainda que o aborto até a décima semana de gestação seja legalizado no país.

Os presságios sombrios da obra de Atwood sempre encontrarão ecos no contexto em que vivemos. Pois como sabiamente disse Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”

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