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Ataque velado à democracia

Para Bolsonaro, o importante não é indultar Daniel Silveira, e sim usar esse caso para se colocar como um guardião da Constituição, de forma a exercer um poder totalitário

Ataque velado à democracia
Ataque velado à democracia
Jair Bolsonaro e Daniel Silveira (Foto: Reprodução/Facebook)
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No ambiente progressista, por vezes se nota uma resistência à consideração do elemento jurídico nas análises políticas, quando é ele que desvela movimentos que antecipam intenções perigosas. Enfrentamos atualmente no Brasil uma crise institucional relacionada ao indulto concedido por Jair Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira, do PTB. Ele havia sido condenado a oito anos e nove meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, após divulgar um vídeo com ameaças aos magistrados da Corte. Para entender as implicações mais temerárias da condução desse episódio, é necessário aprofundar a análise para consequências dele oriundas, mas que não se restringem ao debate sobre a concessão em si: vão muito além.

O cerne do problema reside nos fundamentos apresentados para produzir o indulto. A primeira razão que o presidente alega, e a mais importante, é que a graça concedida é uma forma de proteção à liberdade de expressão. Bolsonaro quis formular um juízo de que Silveira não cometeu um crime, ou que a decisão do Supremo é injusta ou inadequada à Constituição e às leis. Esse juízo ele não pode pronunciar. O indulto é um ato de misericórdia e perdão que se aplica a um crime cometido. A fundamentação de Bolsonaro funciona quase que como a de um órgão de recurso das decisões do Supremo, pretendendo substituí-lo em seu papel essencial de intérprete final e guardião da Constituição. A natureza do indulto não é a de um mecanismo de revisão judicial.

Acredito que a intenção de Bolsonaro tenha sido a de usar desse ato político amplamente discricionário para romper com a Constituição e a democracia. Isso não é algo exatamente novo. A ascensão do nazismo, como se sabe, foi marcada por uma degeneração do Direito. Esse é o perigo que o indulto representa. Sua análise técnica indica desvio e excesso de poder por parte do presidente ao declarar que Silveira é inocente, não cabendo a Bolsonaro produzir esse tipo de juízo no âmbito jurídico-penal. A interpretação da extensão do direito à livre expressão cabe ao Supremo.

A invasão de Bolsonaro às competências do Judiciário é terrível no plano político. E, aqui, vale um alerta: nesse contexto, o caso Daniel Silveira, em si, torna-se menos relevante. Como bem disse o filósofo político Norberto Bobbio, a democracia é feita por muros intransponíveis. Uma vez cruzadas suas fronteiras, cai-se no perigoso território da permissividade ilícita. Hoje, Bolsonaro usa um ato político de indulto dizendo que ele, como presidente, é quem decide sobre a ­legitimidade­ do referido ato. Se o Supremo autoriza esse tipo de leitura, abre uma fenda para que amanhã o presidente decrete estado de sítio e suspenda a eleição sem a autorização do Parlamento.

Quem, nesse caso, então, exerceria o controle para apontar a inconstitucionalidade da medida, se o Supremo sinaliza não interferir em atos políticos? Uma eventual decisão da Corte de que atos como o do indulto não possam ser controlados em hipótese alguma é algo muito perigoso para a nossa democracia.

Já há um efeito político imediato no desenrolar dos fatos. Com a discussão provocada, Bolsonaro já vem conseguindo deslegitimar o nosso sistema de Justiça. Isso, agora, significa deslegitimar as eleições que se avizinham, porque quem deve comandá-las é o sistema de Justiça, o ministro Edson Fachin, que integra o STF e preside o Tribunal Superior Eleitoral. Portanto, desgastar o Supremo mina o próprio processo eleitoral ao questionar a legitimidade do sistema de Justiça para exercer os papéis que a Constituição lhe atribuiu. Dessa maneira, vai-se criando na sociedade a ideia de que o STF está comprometido com interesses nebulosos, escusos.

Bolsonaro produz, então, o que o cientista político Ernst Fraenkel, em sua análise de problemas jurídicos ligados ao nazismo, chamou de estado dual: a ­capacidade­ de ser a ordem estatal e ao mesmo tempo posicionar-se contra o sistema. O presidente age assim quando, sendo o chefe de Estado, critica o Supremo, deteriorando sua imagem e preparando um discurso de deslegitimação de nossas eleições.

Esse raciocínio só é possível ao enxergarmos os elementos jurídicos desse ato de indulto. Para Bolsonaro, o importante não é indultar Daniel Silveira, e sim usar esse caso para se colocar como guardião da Constituição – um poder totalitário, que concentra as funções jurisdicionais e de governo na mesma pessoa. Situar o poder político acima dos direitos e da Constituição, aplicando-o não como razão de Justiça, mas como disputa de poder, é a essência do autoritarismo na modernidade. Nossa democracia e nossa Constituição correm sérios riscos se o Supremo mantiver válido esse ato de indulto nos moldes que o fundamentaram. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ataque velado à democracia”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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