Justiça

Necropolítica: nossa guerra cotidiana

Conceito desenvolvido por pensador camaronês nos ajuda a entender o sistema desenhado para produzir mortes, físicas e metafísicas

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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“Hoje a gente consegue enxergar muitos jovens e adolescentes que perambulam,
(sic) não se sente morto, mas também ele não está vivo.”

Gefferson Santana – Mano Sinho, líder da ONG Aliados do Verso da Periferia de Aracaju

Segundo o último relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de civis mortos por ações policiais no Brasil bateu novo recorde em 2020: 6.416 vítimas fatais, das quais 78% negras. De 2013 a 2020, foram mais de 37 mil vítimas nessas intervenções. Os números são comparáveis aos de guerra como a da Síria que no mesmo ano matou em torno de 6.800 pessoas, dentre estas cerca de 1.500 civis.

O que os índices históricos da violência policial no Brasil insistem revelar é que se trata de um estado de beligerância que se impõe no interior das fronteiras de territórios circunscritos pela cor da maioria de sua população e que segue legitimado por instâncias jurídicas fundamentais à manutenção de privilégios distribuídos no topo da hierarquia social.

Necropolítica

O filósofo camaronês Achile Mbembe, em seu ensaio “Necropolítica”, oferece-nos ferramentas conceituais para perceber o sistema de justiça criminal brasileiro como operador de um processo de construção da criminalidade racionalizado para produzir mortes, físicas e metafísicas.

Para Mbembe, a necropolítica constitui a razão da ordem da sociabilidade moderna, que sob égide do capitalismo e de suas agências temporais do presente neoliberalismo é sustentada pelo Estado e o Direito.

Assim, o Estado administra a morte de todos para que uma racionalidade fundada na ideia de soberania gerencie os limites de morte de cada um. Isso porque a racionalidade de soberania do Estado capitalista não é consentânea de outra que não opere dentro dessa perspectiva de exercício de biopoder (biopolítica), ideia inicialmente desenvolvida por Michel Foucault.

O gerenciamento desses limites torna exigível a definição de critérios de agenciamento dessas mortes. Aqui desponta para Mbembe duas noções importantes relacionadas à sua compreensão da biopolítica: a ideia de Giorgio Agamben de estado de exceção permanente e a relação de inimizade entendida como estado de sítio. Essas noções para Mbembe constituem a base normativa do direito de matar.

Nesse sentido, Mbembe também pressupõe que a divisão e subdivisão da espécie humana em grupos e a cisão biológica são critérios importantes, no que identifica em Michel Foucault a definição de racismo, como “tecnologia para permitir o exercício do biopoder.”

Foucault dedicou especial atenção nesse caso ao arquétipo do Estado nazista, que na sua concepção então fundiu as características exemplares de um Estado racista, assassino e suicidário, ao ponto dessas características se tornarem indistinguíveis como assinala Mbembe.

Na articulação desses conceitos de biopolítica, Mbembe vai conceber uma noção de política enquanto relação de Estado e do Direito, que reúne características bélicas de administração da vida de alguns e morte de outros e, portanto, de soberania elevada à potência de matar para afirmar a vida.

O filósofo camaronês Achille Mbembe durante palestra. Foto: AFP

Associa essa percepção à afirmação do filósofo e jurista nazista Carl Schmitt de que “soberano é aquele que decide e declara a exceção”. E essa soberania está intrinsecamente, por óbvio, ligada à noção de territorialidade, ou seja, à definição de onde irá se operar a exceção.

Daí porque necropolítica sobressai como a definição de um exercício de poder que supera a biopolítica (que é a administração do direito de matar) para o de produzir mortes, porque a administração da morte já não é suficiente.

Nessa toada o racismo se apresenta como o aparelho respiratório desse modelo político-estatal de produção de mortes. E por isso tem também incidência territorial e se opera por e apesar da normatividade jurídica nas chamadas “zonas de fronteira nas quais o poder opera à margem da lei e sob o paradigma de uma guerra sem fim”.

Toda essa dinâmica está imbrincada com o modelo econômico em que a escassez geral de liquidez e a concentração de renda submete esses territórios alijados a condições cada vez mais draconianas, em que o colapso das instituições políticas formais tende a conduzir à temperatura perfeita para formação de economias de milícias, que Mbembe chama de “predadores extremamente organizados que taxam os territórios e as populações que os ocupam e se valem de redes transnacionais e diásporas que os proveem com apoio material e financeiro.”

Os sobreviventes desse caldeirão são aqueles que são submetidos a uma condição êxodo e confinados em campos e zonas de exceção. Daí porque Mbembe enxerga que essas novas tecnologias de destruição estão assim menos preocupadas em disciplinar os corpos do que em inscrevê-los em uma ordem econômica máxima, representada pelo massacre e generalização da insegurança que aprofunda a distinção entre aqueles que tem armas e os que não tem.

Ondas de protestos tomaram o Brasil após o caso George Floyd (Foto: Reprodução/Twitter)

Racismo: um aparato tecnológico

Dos processos de dinamização histórica do racismo científico a partir das teorias de eugenia e darwinismo social aos de formação de uma intelectualidade jurídica se verificam as imbricações da ordem geopolítica que conectam a formação capitalista peculiar nos países subdesenvolvidos e de histórico colonial, cuja base fundante escravista se reorganiza como racismo estrutural.

Nesse sentido, o racismo se apresenta como aparato tecnológico do modelo socioeconômico, permanentemente renovado sob ares de neutralidade para que possa conviver harmonicamente sob a égide de uma formal democracia, para a qual o papel do direito e do sistema de justiça é fundamental e estratégico.

Silvio Almeida identifica o direito como ordenador de uma relação social em que o racismo estrutura a própria relação de legalidade, porque identifica que o conteúdo da norma importa menos do que o modo como se estrutura a relação jurídica, e que portanto opera, na realidade, no sentido de preservação de uma estrutura social e econômica das sociedades contemporâneas, sem prejuízo de se reconhecer que o direito seja capaz de produzir mudanças superficiais para a redução das iniquidades contra minorias políticas.

Silenciamentos históricos sempre operaram no sentido de reduzir os tensionamentos raciais, no que desponta o papel de manipulação das instituições do sistema de justiça como instância insuspeita de metabolização dessas tensões. E isso torna compreensível suas lógicas meritocráticas e de neutralização da compreensão do racismo como estratégias de naturalização da desigualdade social.

Nesse cenário a ética vigente é a que sustenta essa produção de mortes em favor da economia e de uma ideologia de segurança estrategicamente colocada, como evidenciada na (ir)racional guerra às drogas, que serve à geração de um duplo ativo para as dinâmicas da necropolítica: o encarceramento em massa da população negra e as condições potenciais de confronto em territórios reconfigurados como de ocupação colonial, onde o exercício dos poderes sobrepostos nas suas zonas de fronteira se dá de forma legitimada e naturalizada.

Por outro lado, os crimes movidos pelo racismo ostentam baixíssimos índices de investigação e de persecução penal no sistema de justiça. Isso porque sem racismo não há institucionalidade possível dentro da operacionalidade do necropoder.

Por isso, quando Angela Davis disse que “a liberdade é uma luta constante”, estava completamente consciente de que o sistema opera uma guerra cotidiana contra nós, pessoas na linha de cor.

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