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O apoio da China a Putin é incondicional?
O risco para a Rússia é que, se descer à posição de pária, será deixada como uma suplicante, em vez de um futuro parceiro do país de Xi Jinping


A decisão da China de se abster na noite de sexta-feira 25, no fim da votação do Conselho de Segurança da ONU condenando a invasão russa à Ucrânia, pode ser uma fonte de profunda frustração no Ocidente, mas também causará nervosismo no Ministério das Relações Exteriores da Rússia, ao ver que a proteção chinesa não é incondicional.
Diplomatas baseados no Reino Unido, analisando a posição adotada pela China no meio da semana, esperavam que Pequim se unisse à Rússia na votação contra a moção patrocinada pelos Estados Unidos, mas, assim como os Emirados Árabes Unidos e a Índia, a China se absteve, deixando a Rússia isolada no uso de seu poder de veto como integrante permanente do Conselho de Segurança.
Em certo nível, a votação representa a linha de menor resistência para a China e pode ser vista como uma reversão à segurança do antigo apoio chinês à inviolabilidade das fronteiras e à não interferência nos assuntos de Estados soberanos. Mas há sinais hesitantes de que a China não se sente à vontade ao ser vista como defensora dos métodos de Putin e da potencial disrupção da economia mundial.
Putin pode ter mostrado seu respeito pela China adiando a invasão até depois das Olimpíadas de Inverno, mas Pequim não foi consultada sobre a operação militar. Diplomatas chineses ridicularizaram as previsões de um ataque russo e deixaram muitos cidadãos no local. O acordo de parceria mais profunda assinado com a Rússia em 4 de fevereiro, dia da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, não previa a invasão. A China beneficia-se da ordem mundial existente e acha a instabilidade perturbadora. A perspectiva de a Rússia ser cortada do sistema de pagamentos Swift pode beneficiar os esforços chineses para construir uma alternativa, mas a interrupção em curto prazo é preocupante.
Foi perceptível, por exemplo, na sexta-feira que a Rússia propôs conversas de alto nível com a Ucrânia em Minsk, após um contato entre Putin e o presidente chinês, Xi Jinping.
Antes da votação, o ministro das Relações Exteriores chinês recebeu três ligações da secretária de Relações Exteriores do Reino Unido, Liz Truss, do chefe de política externa da União Europeia, Josep Borrell, e de Emmanuel Bonne, conselheiro diplomático do presidente Emmanuel Macron, da França. A China disse nessas ligações que reiterou seu apoio à não interferência e à carta da ONU, mas também expressou simpatia pela sensação da Rússia de que foi ameaçada pelas cinco rodadas sucessivas de expansão da Otan.
Mesmo que a China se contorça ao se recusar teimosamente a descrever as ações de Putin como uma invasão, entretanto, está mais perto de incluir a Rússia em suas críticas. Na sexta-feira 25, Pequim enfatizou que “é absolutamente imperativo que todas as partes exerçam a contenção necessária para evitar que a situação na Ucrânia se deteriore ou saia de controle. A segurança das vidas e das propriedades das pessoas comuns deve ser efetivamente salvaguardada e, em particular, as crises humanitárias em grande escala devem ser evitadas”.
A DECISÃO DE PEQUIM DE SE ABSTER NA VOTAÇÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA DEMONSTRA CERTA CAUTELA
A Ucrânia, disse, deveria ser uma ponte de comunicação entre o Leste e o Oeste, não a linha de frente de confrontos entre grandes países. Isso, por implicação, sugere que a China favoreceria a Ucrânia como um Estado neutro.
O risco para a Rússia é que, se descer à posição de pária, será deixada como uma suplicante, em vez de um futuro parceiro da China. Dentro de dez anos, a Europa terá se libertado da dependência do gás e do petróleo russos – isso se tornou um imperativo urgente em Roma e Berlim. A Rússia dependerá da China como cliente.
Há mais um perigo para a Rússia. A China orgulha-se de sua influência na África. Todos os representantes africanos no Conselho de Segurança votaram contra a Rússia. O embaixador do Quênia o fez insistindo que havia se oposto a intervenções militares ocidentais anteriores.
Outros testes mais amplos da opinião africana são iminentes. Washington quer que a culpabilidade da Rússia seja testada ainda mais antes da Assembleia-Geral, na qual todos os 193 integrantes votam. Uma ampla aliança está se formando por trás da causa da Ucrânia. Em um debate na quarta-feira 23, países como Guatemala, Turquia e Japão condenaram a aprovação pela Rússia das autoproclamadas repúblicas separatistas, ou expressaram apoio à Ucrânia.
Em 2014, após a captura russa da Crimeia, a Assembleia-Geral adotou uma resolução declarando inválido o referendo da Rússia na Crimeia. Recebeu 100 votos a favor, 11 contra e 58 abstenções, enquanto mais de 20 países não votaram. As questões serão ligeiramente diferentes se houver mais uma votação, mas a invasão foi mais aberta do que em 2014, a mídia social mais abrangente e a China, com uma posição crescente no cenário mundial, acha menos fácil se esconder. Com maior poder talvez venha maior responsabilidade. •
Nota de CartaCapital: Na terça-feira 1°, após uma conversa com o ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, o colega chinês, Wang Yi, afirmou que Pequim está à disposição para auxiliar no cessar-fogo. A China, declarou, está “extremamente preocupada com os danos aos civis” e “entristecida com a guerra”. Os chineses recusaram-se, no entanto, a subscrever as punições ao sistema financeiro russo. O país manterá as “trocas econômicas, comerciais e financeiras normais” com o parceiro.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Pequim sussurra”
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