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Análise: Viagem de Bolsonaro buscou reforçar discurso com a direita, mas traz risco à diplomacia

A escolha de dois países que têm líderes considerados autoritários não foi à toa, mas eleitoralmente pensada

Bolsonaro e o líder da extrema-direita da Hungria, Viktor Órban. Foto: Attila KISBENEDEK / AFP
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A passagem de Jair Bolsonaro pela Hungria nesta quinta-feira (17) deixou claro que objetivos comerciais, culturais ou de direitos humanos, que geralmente perpassam o encontro entre chefes de Estado, passaram longe das razões que levaram o presidente brasileiro ao país de Viktor Orbán. Mesmo na Rússia, onde ainda havia a narrativa de comprar agrotóxicos para as plantações brasileiras, Bolsonaro não escondeu que buscava se ancorar na imagem de governantes aclamados pela direita ultraconservadora.

Para a diplomacia brasileira, o resultado das visitas de Bolsonaro a Moscou e Budapeste é muito ruim, por colocar em xeque a credibilidade do Brasil no longo prazo. A avaliação é do especialista em relações internacionais Luís Renato Vedovato, professor da Unicamp e da PUC de Campinas. Na avaliação do especialista, “essa postura do presidente Bolsonaro se reflete de uma maneira nada positiva nas relações internacionais e na imagem do Brasil, tendo em vista que o cenário internacional passa por tensão, especialmente nessa relação entre Rússia e Ucrânia”. De acordo com Vedovato, o Brasil opta por um dos lados. “Ao menos é o que passa a ser divulgado, e isso tem reflexos na nossa imagem no exterior e especialmente na diplomacia brasileira, que historicamente é tida como confiável, equilibrada, com tradição de solução pacífica de controvérsias”, recorda Vedovato.

As relações internacionais de um país, bem como seu prestígio no mundo, são construídos ao longo da história e não é um chefe de Estado que põe tudo a perder. Porém, explica Vedovato, ficará por um bom tempo a dúvida sobre a confiabilidade do Brasil nessa área.

“No primeiro momento se reconhece que essa postura é algo da gestão de Bolsonaro, mas pode haver desconfiança nos governos futuros, pois, no caso atual, o país se distanciou de uma ação de Estado, que sempre se orientou pelo artigo 4° da Constituição, que é fazer as relações internacionais pautadas nos direitos humanos, na solução pacífica, na não intervenção, na autonomia dos povos”, argumenta o analista político. “Muitos podem questionar se o Brasil é confiável, se respeita esses princípios no longo prazo, ou quando isso que vemos hoje poderá se repetir”, adverte.

Discurso para os seus

“É uma satisfação muito grande estar na Hungria. Considero nosso pequeno grande irmão. Pequeno se consideramos nossas diferenças pelas extensões territoriais. E grande pelos valores que nós representamos, que pode ser resumido por quatro palavras: Deus, pátria, família e liberdade”, disse o presidente brasileiro ao colega húngaro. A mesma fórmula que utilizou em Moscou com Vladimir Putin.

O primeiro-ministro ultraconservador da Hungria, na mira do poder Executivo europeu pelo não respeito aos princípios democráticos do Estado de direito, havia aberto a cerimônia no mesmo tom conservador. “O mundo quer aprovar como família aquilo que a gente pensa que é família: a mãe que é mãe, que é mulher, e o pai que é homem”, disse Orbán. Antes de acrescentar: “Isso tem a ver com a tradição e gostaríamos de manter isso”, afirmou.

A avaliação é unânime entre os analistas de que a escolha de dois países que têm líderes considerados autoritários não foi à toa, mas eleitoralmente pensada com o objetivo de reforçar o discurso radicalmente de direita para uma parcela de brasileiros.

“Bolsonaro sentiu que a direita está se fragmentando, que há outros nomes como o de Sérgio Moro, especialmente depois que o presidente se alinhou ao Centrão. Então, ele tenta agora recompor suas forças nesse campo. E acho que nesse ponto essa viagem foi positiva para ele. É um eleitorado entusiasta de líderes como Putin e Orbán”, afirmou à RFI o analista político Alexandre Bandeira, diretor da Associação Brasileira de Consultores Políticos.

Para Bandeira, Bolsonaro tenta reconstruir “o personagem” das eleições passadas, oferecendo a quem já tem uma disposição em votar nele argumentos para tal.

“Essa viagem é um tijolo nesse trabalho que ele vem fazendo. Não dá para dizer que isso tira voto de um ou põe em outro, mas quando as pessoas querem, elas buscam justificativas, argumentos. Ele está dando a esse eleitor mais extremo esses argumentos. E aposta que, com isso, conseguirá ir para o segundo turno. Essa viagem à Rússia e à Hungria faz parte da aposta dele”, analisa Bandeira.

Piadas e memes

Se a grande maioria dos eleitores não tem tempo para discutir a importância da Hungria nas relações com o Brasil, nem o peso da Rússia no comércio com o Brasil, dois grupos têm se deleitado nas redes sociais com os resultados dessa visita, os que amam e os que odeiam o presidente Jair Bolsonaro. E para eles não faltam narrativas cinematográficas para descrever o périplo do presidente nessa viagem.

A claque militar, incentivada por ele, tenta pregar a mirabolante conclusão de que foi Bolsonaro quem conseguiu fazer com que a Rússia recuasse da invasão na Ucrânia, ou ao menos que a viagem do presidente principiou um capítulo mais diplomático do que bélico, tamanha a aura de “predestinado” que o acompanha.

Já seus rivais não perdoaram e criaram os mais diversos memes nas redes sociais com a imagem do presidente fazendo reverência ao túmulo do soldado desconhecido, em homenagem aos combatentes soviéticos da Segunda Guerra Mundial, tempos em que ali estava a União Soviética comunista de Stálin. Prato cheio e piada pronta com um político que se põe como soldado na ladainha de um risco comunista no Brasil. Tanto que Bolsonaro se viu obrigado a justificar sua presença no ato em Moscou nas redes sociais.

Vida real

No discurso de Orbán nessa quinta-feira, ao receber o presidente brasileiro, o líder húngaro defendeu medidas severas contra a imigração. O foco dele provavelmente tem a ver com o fluxo alto em direção à Europa de refugiados que fogem de guerras e da pobreza, mas no Brasil é difícil não remeter também à situação de milhares de brasileiros deportados dos Estados Unidos em situação humilhante, como tem mostrado a imprensa nos últimos dias.

Por isso, para o eleitor médio, que vai decidir as eleições, não é simples medir o impacto, se é que ele existe, que uma viagem de alguns dias do presidente terá em sua popularidade, mais ainda nas urnas. Os analistas ouvidos pela RFI destacam que são os problemas do dia a dia que mais pesam nessa hora. E a coincidência do cenário doméstico com a agenda internacional, nesse caso, jogou contra Bolsonaro.

“A maioria da população não conseguiu entender os motivos de uma viagem dessas, mas sente que ela teve objetivos eleitorais e está muito cedo para fazer campanha. Há muitos problemas aqui. Passa a ideia de que enquanto ele se preocupa com as urnas, os problemas aqui continuam, a chuva castiga a região serrana do Rio, que é o estado do presidente, e ele está na Hungria, não se sabe fazendo o quê”, disse Luís Renato Vedovato.

“A gente vai enxergar o reflexo desses atos um pouco lá na frente. Se isso vai ter alguma ressonância nos grupos familiares, se vai render discussão entre as pessoas do trabalho, enfim, se isso será tema do debate eleitoral. O presidente já abandonou a ideia de buscar quem está fora desse espectro da direita conservadora. Então, ele joga para evitar a fragmentação desse grupo. Se vai conseguir atrair número suficiente para estar no segundo turno, é preciso esperar”, avalia Alexandre Bandeira.

 

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