Sustentabilidade

Revogações do Conama trazem incerteza jurídica e perigo à biodiversidade

Conselho ‘passa a boiada’, mas encara turbilhão na Justiça e deixa pontas soltas em relação à preservação de mangues e restingas

O Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Foto: Lula Marques/Fotos Públicas Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Foto: Lula Marques/FotosPúblicas)
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A “boiada” do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles ganhou um novo capítulo nesta semana: a revogação de quatro resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Uma situação embaraçosa para quem se disse disposto a “simplificar” a legislação para “desburocratizar” (esta foi a explicação de sua frase mais simbólica). Salles se depara agora com uma extensa sequência de decisões judiciais que não parecem trazer segurança para qualquer interessado em investir no País.

 

Ao não dar direcionamento correto ao que virá no lugar das resoluções, que têm caráter nacional, a medida também abre as portas para que cada estado decida como flexibilizar as regras ambientais referentes, principalmente, às restingas e manguezais, dizem especialistas.

Com um Conama desidratado de representação dos estados e de membros da sociedade civil – uma portaria do ano passado reduziu 96 conselheiros para 23 membros titulares -, a batalha da judicialização e das incertezas sobre quais normais passam a valer em cada região é vista como inevitável. E mais ineficiente do que o antigo debate do conselho.

Em cinco dias, o Conama revogou as resoluções, a Justiça Federal do Rio de Janeiro derrubou a decisão do Conselho alegando “risco de danos irrecuperáveis ao meio ambiente”, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu 48 horas para que o Ministério do Meio Ambiente se justificasse devido à “relevância do problema jurídico-constitucional”. Por fim, na sexta-feira 02, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região reestabeleceu a validade das revogações.

Lugar sem regra

Manguezais da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapi-Mirim, região metropolitana do Rio de Janeiro. (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Para a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, cuja gestão aprovou, em 2012, o controverso Novo Código Florestal, a principal justificativa apresentada pelo conselho para a revogação das normas não explica, com fundamentação, o que justifica a mudança 18 anos após as resoluções serem aprovadas.

Ela argumenta que o fato do Código Florestal ter mantido manguezais e restingas como Áreas de Preservação Permanente (APP) e de ambos integrarem o bioma da Mata Atlântica não substitui os comandos dados pelas resoluções, que estabeleciam, por exemplo, áreas mínimas de 300 metros de distância das restingas para qualquer interferência humana.

Os parâmetros eram baseados em extensos processos de diálogo entre academia, gestores públicos e organizações privadas. Como o Conama determina regras para todos os entes da federação, ele estabelece o requisito básico para qualquer empreendimento.

Para Teixeira, apenas revogar as resoluções é “passar a régua” em quase vinte anos de debates técnicos, científicos e jurídicos. O perigo, agora, é que cada estado decida como quer regulamentar a proteção ambiental.

Não quer dizer que não possa mudar a norma, mas precisa mudar com responsabilidade. Essas resoluções estão aí há 18 anos. Tem um papel importante no licenciamento, de indenização de áreas de interesses. Como é que você assegura a proteção das populações tradicionais que vivem dos manguezais? Como é que isso pode afetar os manguezais? Você sai do campo da administração e vai para a judicialização. Adiciona mais dúvida ao processo, mais incerteza do que soluções. Isso sugere falta de transparência ou falta de clareza de diálogos sólidos sustentados e sustentáveis na sociedade”, afirma. 

Não quer dizer que não possa mudar a norma, mas precisa mudar com responsabilidade. Essas resoluções estão aí há 18 anos, diz a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira

Em entrevista à CNN Brasil, Ricardo Salles disse que a extinção das normas já era debatida “há anos” por um grupo de trabalho dentro do Conama, que vinha “discutindo e indicando a necessidade de revogar essas normas”. A informação é verídica, mas o entendimento geral, até então, era pela manutenção das resoluções enquanto parâmetro para preservação ambiental.

Em 2017, a professora-sênior da Universidade de São Paulo e oceanógrafa Yara Schaeffer Novelli foi convocada para fazer um parecer técnico sobre a necessidade de se manter ou não a resolução 303. Novelli também participou da elaboração da resolução em 2002, e declara que o processo era minucioso a fim de procurar estabelecer o melhor consenso possível entre as diversas vozes do Conama.

“Eu colaborei com a construção dessas resoluções. Não posso concordar que elas venham a ser ceifadas de um momento para o outro. Decreta-se ‘vamos revogar’ na sexta, e revoga-se na segunda. Isso não é um ato politico, de gestão e nem de fidelidade à Constituição”, diz Novelli.  “Não houve nenhum pedido para que Câmara Técnicas voltassem a estudar”.

No parecer, a professora destacou que a proteção das resoluções possuíam uma “definição ampla que aborda esses ambientes de forma sistêmica considerando a diversidade de comunidades existentes, assim como a integração de aspectos dos meios físico e biológico, fundamentais para estabelecimento dos mesmos”.

O Ministério Público Federal também posicionou-se contrário quando consultado, argumentando que as resoluções mantinham “padrões de proteção mais favoráveis à preservação ambiental” e, portanto, não permitiam retrocessos no assunto.

Decreta-se ‘vamos revogar’ na sexta, e revoga-se na segunda. Isso não é um ato politico, de gestão e nem de fidelidade à Constituição”, diz a oceanógrafa Yara Schaeffer Novelli

Já em relação ao ato mais recente, o MPF afirmou que analisa a situação para “avaliar eventuais impactos”.

Izabella Teixeira confirma a fala de Salles sobre as longas discussões a respeito das resoluções, mas se lembra, também, dos setores mais interessados em fazer com que o Conama as derrubassem:  “Eu sou testemunha de que tinham fortíssimos interesses do segmento de turismo e da carcinicultura do Nordeste nisso. Pessoas que tentaram derrubar as APPs em dunas, e a gente manteve. O senador Luiz Henrique, relator do Código Florestal, que não era nenhum ambientalista, acolheu meus pleitos para manter [as restingas e manguezais] como APP”, relata.

Proteção ambiental e de um “modo de vida”

Restinga da Marambaia, em Itaguaí, Rio de Janeiro (Foto: Diego Maravelli/Wikimedia Commons)

A repercussão não se limitou aos percalços legais da preservação ambiental. Mais de 300 entidades de pescadores, marisqueiros, acadêmicos e ambientalistas divulgaram uma carta de repúdio à revogação das resoluções.

“Todos os dias homens e especialmente mulheres pescadoras adentram nos mangues em busca de recursos pesqueiros que alimentam diretamente suas famílias com alimento de alta qualidade. Essa é uma realidade cotidiana pouco conhecida pela maioria do povo brasileiro e negligenciada pelo Estado do ponto de vista socioeconômico, ecológico e cultural”, dizem as organizações na carta, que temem o acirramento das tensões entre produtores locais e grandes conglomerados interessados nas regiões.

“Nós estamos falando da zona costeira brasileira, e essa zona abriga não só uma comunidade tradicional, mas uma comunidade com cultura muito própria. Não podemos extirpar cultura em pleno século XXI. Cultura é um sistema ecossistêmico. Vale muito – e não dinheiro, não é preço, é valor. Os serviços ecossistêmicos têm valor. Jamais vamos confundir valor com preço”, defende Yara Novelli.

Todos os dias homens e especialmente mulheres pescadoras adentram nos mangues em busca de recursos pesqueiros que alimentam diretamente suas famílias, diz carta de repúdio à revogação das resoluções

Ao buscar exemplos recentes que comprovem a importância da resolução, Izabella Teixeira lembra-se da construção do Porto Sudeste, empreendimento do ex-bilionário Eike Batista na região de Itaguaí, no Rio de Janeiro. Na época, a obra inicialmente apresentava riscos de ameaçar a Restinga de Marambaia e teve que ser realocada.

“Ali tem a segunda maior restinga preservada do País em extensão. Essa resolução protegeu a restinga. Você teria colocado um novo complexo industrial ali e destruído tudo”, diz. “Agora, como que daqui a 10 ou 20 anos você vai manter as restingas preservadas?”.

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