Entrevistas

‘O mesmo sistema que criou o colonialismo e a escravidão está criando a destruição climática’

Pioneiro nos estudos sobre o racismo ambiental, o professor americano Robert Bullard fala sobre políticas de reparação, greenwashing, governança climática e outros temas

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Há mais de quarenta anos, o professor Robert Bullard defende o que hoje é um consenso um fato consumado: a devastação ambiental afeta desproporcionalmente as comunidades negras.

Conheci o professor Robert Bullard pessoalmente na COP26, em Glasgow, na Escócia, em novembro de 2021, na recepção de Líderes Climáticos Negros. Na ocasião, falei para ele da minha admiração e de como seus estudos me inspiraram. Muito antes da minha entrada na faculdade, ele tinha vindo ao Brasil pela primeira vez na minha universidade, a Universidade Federal Fluminense (a UFF), e inspirou a criação da rede brasileira de justiça ambiental no Brasil em 2002. 

Seu trabalho tem foco nos Estados Unidos, mas cabe a todas as comunidades marginalizadas ao redor do globo. Meu primeiro artigo sobre racismo ambiental, de 2012, tem grande parte da argumentação baseada na reflexão sobre seus estudos, em analogia com a realidade brasileira.

Eu o entrevistei em 6 de julho de 2022, na Texas Southern University, em Houston, onde ele leciona . Falamos desde a morte dos jovens negros, de políticas de reparação, urbanização, greenwashing, governança climática, e muitos outros assuntos. 

Confira, a seguir, os destaques da entrevista.

CartaCapital: Em muitas negociações, eles acham que o racismo ambiental é um problema de direitos humanos, e não das mudanças climáticas. Como conectar os dois temas? 

Robert Bullard: Eu estabeleci uma estrutura que tem 20 anos e agora está começando a entrar no mainstream da política. Temos muitos jovens, do Black Lives Matter e jovens que querem ampliar as lentes da justiça racial em todos os lugares, com essa polícia criminosa matando negros. Ou falando da saúde, assistência médica, acesso a alimentos saudáveis, justiça alimentar, justiça hídrica, parques, espaço verde, tudo isso agora está se juntando. 

Muitas vezes, a comunicação [sobre o assunto] vai na linha: “são pessoas pobres, na pobreza e desvantagem…” Mas nos EUA, negros que ganham de 50 a 60 mil dólares por ano vivem em bairros mais poluídos do que os brancos que ganham 10 mil dólares por ano. Então, não é pobreza. 

CC: Também poderíamos falar de cidades. Aquelas questões de Salvador e Rio, Houston, Nova Orleans…

RB: O transporte é uma das grandes questões. E o transporte pode influenciar o planejamento, o desenvolvimento. E em termos de acesso à água, esgoto, linhas de telefone, linhas de banda larga, tudo isso. E quando você fala sobre as cidades no Brasil, estamos falando sobre o informal, as favelas…

CC: Elas precisariam se formalizar também.

RB: Sim. Nós estamos fazendo as pessoas entenderem que a forma como alguns desses lugares se desenvolveram está relacionada ao racismo sistêmico. Como nos EUA, fazendo segregação no sul. Eu cresci em uma cidade onde os brancos tinham ruas iluminadas, pavimentadas, linhas de esgoto. Quando se chegava à comunidade negra, tudo parava. Não estou falando de 200 anos atrás. Estou falando dos anos 1950 e 1960.

Negar o acesso à infraestrutura pode criar desigualdades, quando se trata de saúde, acesso a oportunidades, educação, emprego, tudo isso. Quando falamos sobre clima, as comunidades mais vulneráveis são daqueles lugares que foram discriminados há 100 anos. É o que os estudos mostram. Os locais que foram discriminados em termos de infraestrutura há 100 anos, na década de 1920, em 2020, são mais propensos a inundações. Têm mais poluição. São mais quentes, em termos de ilhas de calor urbanas e em termos de poluição, em termos de qualidade do ar – por falta de espaços verdes, falta de árvores, falta de infraestrutura, etc. 

CC: Falando sobre isso há muito tempo…

RB: Pelo menos 40 anos.

CC: No Brasil, temos visto o setor privado falando sobre ESG e todo esse greenwashing. E também o mercado de carbono, ganhando dinheiro que deveria ir para os quilombolas e indígenas. Poderíamos exigir que grupos do setor privado criem um fundo específico para as comunidades negras dessas cidades?

RB: Sim. Eles estão fazendo comércio de carbono e agora estão falando de captura e armazenamento de carbono, CCS, muito disso é uma farsa. São bilhões e bilhões de dólares federais, dólares de impostos nessas coisas fracassadas.

Temos o Departamento de Energia dos EUA subsidiando muitos desses projetos. E o que estamos dizendo a eles é: “Pegue alguns desses bilhões de dólares e coloque em parcerias e organizações universitárias comunitárias. Construam nossa rede de infraestrutura social”.

CC: E a governança climática? Por exemplo, se tivermos alguém realmente próximo a Lula para ser ministro do Meio Ambiente, poderíamos oferecer a essa pessoa, um comitê de justiça ambiental? Ter uma pessoa como John Kerry aqui.

RB: Como um czar do clima? Eu acho que vocês precisam de alguém assim. Vocês precisam de alguém que seja o ponto de partida para isso. Que seja high-profile, que possa ir diretamente. Você pode ter um gabinete, etc., mas se você tivesse outra pessoa que fosse indicada diretamente, que seu trabalho seria estritamente climático.

CC: Pelo que li do seu trabalho, os advogados negros conectam a agenda ambiental com os direitos civis e em qualquer lugar, porque os brancos estavam apenas preocupados com a conservação do local e dos animais e com tiravam as pessoas desse contexto. 

RB: O que tentamos fazer é redefinir o ambientalismo nos EUA. Por muito tempo, grupos ambientalistas definiram que o meio-ambiente está lá fora e dizemos que o meio-ambiente é viver, trabalhar, brincar, aprender, louvar, assim como o físico e o natural. Porque é tudo conectado.

CC: Professor, você acredita que há uma diferença entre racismo ambiental, racismo climático, ou esses dois conceitos estão ligados?

RB: Todos eles se conectam. Se observarmos o clima… Nós não assumimos a responsabilidade pelos danos que causamos. A sociedade ocidental, historicamente, em termos da revolução industrial, não assume a responsabilidade. Se eles assumissem a responsabilidade pelo que fizeram, não se sentiriam tão inaptos a financiar as soluções para os danos que causaram.

É como no colonialismo. Trata-se da extração e a destruição, trata-se da escravidão. Nós não tivemos regulamentação. Estados Unidos, Brasil… Sem reparação. O mesmo sistema que criou o colonialismo, o imperialismo, a escravidão, todos esses ismos, é o mesmo sistema que está criando essa destruição climática. Não podemos confiar nele para encontrar uma solução. É por isso que eles precisam de nós na sala, para tomar decisões ou escolhas difíceis.

CC: Uau. Está tão quente.

RB: Tivemos uma nevasca em fevereiro do ano passado que nunca tivemos antes. Perdemos a energia por cinco dias. A energia apagou, acabou a água. Foi uma bagunça. Uma bagunça. As pessoas nos bairros mais acima não conseguiram restabelecer a energia. Eles restauraram a energia no lado branco da cidade primeiro.

CC: E quando chove, é forte?

RB: Ah, temos enchentes. Sim, aqui há enchentes.

CC: Porque posso ver que é muito baixo.

RB: Estamos a apenas 54 pés acima do nível do mar. E o Golfo do México fica a 54, 55 milhas de distância. Tivemos que evacuar em 2017, quando tivemos o Furacão Harvey. Subiu água até a entrada da minha garagem. Mas muitas comunidades negras e hispânicas, indígenas e indianas foram as que sofreram mais danos.

CC: Não costumávamos ter tempestades ou neve, mas no Brasil é uma loucura. Tudo está vindo ao mesmo tempo.

RB: A mudança climática já está aqui. Sim.

CC: As casas nas favelas… Mas muitos negros, não só negros, não acham que seja uma prioridade. 

RB: Temos que educar como prioridade.

CC: Sim, combater a fome é uma prioridade. Mas, vamos lá, comer e a mudança climática estão ligados.

RB: Está muito conectado.

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