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No fio da navalha

Nove milhões de brasileiros vivem em áreas de risco moderado ou alto de desastres ambientais

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Verões repetidos. Por que os governantes ainda se dizem “espantados” com as enchentes e desastres do período de chuvas? – Imagem: Mauro Pimentel/AFP
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O governador Cláudio Castro viu-se obrigado a suspender férias na Disney e retornar às pressas ao Rio de Janeiro, onde centenas de famílias padeciam com as consequências das chuvas torrenciais nas primeiras semanas de janeiro. Entra ano, sai ano, e os governantes brasileiros, inexplicavelmente, continuam a se “surpreender” com as chuvas torrenciais no verão. Graças a esse fenômeno – o cognitivo, não o climático – em 2024 o costumeiro estrago se repete em vários pontos do País, sem que medidas necessárias tenham sido tomadas.

Em condições de vulnerabilidade e perigo, segundo levantamento da Casa Civil da Presidência da República, vivem atualmente 9 milhões de brasileiros. O governo federal reservou 14,9 bilhões de reais, no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento, para obras de contenção de encostas e margens, desentupimento ou construção de vias de escoamento pluvial e drenagem de leitos de rios. As melhoras prometidas só começarão a surtir algum efeito a partir do próximo ano.

Articulador da Coalizão Pelo Clima, Pedro Aranha afirma que “a preservação da vida humana deve ser prioridade máxima em meio aos desafios impostos pelos eventos climáticos que, inevitavelmente, ainda ocorrerão neste verão”. A preocupação do ambientalista justifica-se. Segundo o governo, hoje 1.942 municípios brasileiros, 35% do total, têm em seus territórios áreas identificadas como de risco alto ou moderado. O mapa de riscos, o mais preciso e detalhado publicado até hoje, foi elaborado a partir do cruzamento dos dados coletados pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, pela Agência Nacional de Águas e pelo Serviço Geológico Brasileiro. Os resultados vão balizar o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, em produção por um grupo de trabalho formado pelos ministérios das Cidades, Desenvolvimento Regional, Meio Ambiente, Minas e Energia e Ciência, Tecnologia e Inovação.

O objetivo do governo é investir, nas obras de prevenção, 6,4 bilhões de reais em 2024. A maior parte dos recursos empenhados neste ano deverá ser destinada aos dez municípios elencados como prioritários pelo Ministério das Cidades: as capitais São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Maceió e Fortaleza, as cidades fluminenses de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, a catarinense Blumenau e a pernambucana Jaboatão dos Guararapes. Além do número de moradores em situação de risco, os critérios para a escolha das cidades prioritárias foram a quantidade de eventos ocorridos e o número de mortes e desalojamentos no período entre 1991 e 2022.

Aranha propõe uma grande articulação nacional e afirma ser “crucial fortalecer as lideranças locais para o combate aos desastres climáticos”, tanto em ambientes urbanos quanto rurais. Além das fortes chuvas e enchentes comuns ao verão, lembra, o fenômeno El Niño, decorrente do aumento da temperatura das águas superficiais do Oceano Pacífico, tem provocado secas prolongadas e afetado áreas agrícolas, causando escassez de alimentos e água potável, o que também coloca em risco a saúde e a sobrevivência de milhares de cidadãos. “É imperativo que governos, ONGs e sociedade civil unam esforços para implementar políticas eficazes de adaptação e redução das emissões de gases de efeito estufa. São passos essenciais para proteger as comunidades vulneráveis e preservar vidas.”

Governo prevê 14,9 bilhões de reais em obras de contenção, por meio do PAC

O Brasil atingiu, em 2023, um recorde nas ocorrências de desastres naturais. Segundo o Cemaden, ao longo do ano aconteceram 1.161 eventos climáticos extremos em 1.038 municípios. Foram 716 ocorrências hidrológicas como inundações ou enxurradas e 445 deslizamentos ou deslocamentos de terreno. Ao todo, foram emitidos em todo o País 3.425 alertas sobre ocorrências climáticas. Pesquisador do Cemaden, Pedro Camarinha cobra agilidade na resolução do problema: “Estudos previam o aumento desses eventos extremos e isso tem se materializado pouco a pouco, conforme a atmosfera vai crescendo. Essa projeção se mantém para as próximas décadas, e temos de nos adaptar de forma urgente”.

Ex-presidente do Ibama e hoje coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo afirma que o aperfeiçoamento das ações governamentais na área de proteção e defesa civil “é medida necessária e urgente” diante das emergências impostas pela crise climática. “Nesse sentido, o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil deve ser aplaudido.” Entretanto, pondera a especialista, o maior desafio para o governo será articular as medidas a ser anunciadas com as outras iniciativas em gestação, caso, por exemplo, do Plano Clima-Adaptação. “A atuação do Poder Público nesse campo precisa ser integrada e privilegiar a interdisciplinaridade. Espero que o conteú­do de ambos os planos esteja sendo desenhado com esse olhar, sob pena de não se alcançar eficácia.”

Além das obras de contenção e drenagem, o novo plano do governo terá recursos destinados à construção de novas moradias em locais afastados das áreas de risco, o que pressupõe um inevitável deslocamento de milhares de famílias que hoje nelas habitam. O governo trata o assunto com cautela. “A ideia é eliminar os riscos, não as pessoas”, diz Guilherme Pereira, secretário nacional de Periferias do Ministério das Cidades. Cerca de cem mil famílias devem ser atendidas em uma primeira etapa. “Vamos entender o que acontece em cada área e quais famílias precisarão ser removidas, dependendo do grau de risco.”

Em passagem pelo Fórum de Davos, realizado em janeiro na cidade suíça, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, adiantou que em determinadas situações serão necessárias remoções. “No Rio Grande do Sul, tivemos famílias que foram afetadas por três enchentes em um ano. Em casos assim, não adianta reconstruir a casa no mesmo lugar.” É preciso enxergar além da velha prática nacional de colocar cadeado em porta arrombada, destaca Aranha. “Investimentos em infraestruturas resilientes, sistemas de alerta precoce e programas de educação para a população são cruciais para enfrentar essa crescente ameaça. Isso é para ontem.” •

Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘No fio da navalha’

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