Justiça

Acusada de propaganda enganosa, fundação criada pela Samarco pode ser obrigada a pagar R$ 84 milhões

A Fundação Renova e mineradoras investiram 17 milhões em comerciais. Para Defensoria e MPs, a ação mascara a dura realidade dos atingidos

Barragem do Fundão, em Mariana, Minas Gerais (Lucas Bois) Atingidos por megaempreendimentos, conflitos e desastres ambientais buscam protagonismo no debate ambiental mundial. Governo brasileiro já aponta retrocessos
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Defensores públicos e procuradores que acompanham os desdobramentos do rompimento a barragem em Mariana querem que a Fundação Renova, formada pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, seja punida por propaganda enganosa.

A força-tarefa é formada pelo Ministério Público Federal e de Minas Gerais, mais Defensoria Pública e as defensorias de Minas Gerais e do Espírito Santo. A Ação Civil Pública foi impetrada na terça-feira 11, em caráter de urgência.

A Fundação Renova foi criada para promover a reparação dos danos causados pelo desastre de 2015. Segundo os denunciantes, a entidade desviou-se da sua finalidade com “ostensiva campanha publicitária para enaltecer os resultados da reparação”.

No final de 2020, um mês antes de se completarem 5 anos da tragédia, a Renova, que não tem fins lucrativos, gastou 17,4 milhões de reais em contratos de propaganda. As campanhas foram veiculadas entre setembro e outubro daquele ano. 

Ainda segundo a denúncia, foram veiculados na TV “vídeos de qualidade hollywoodiana” ostentando o logotipo da Fundação Renova, e que demonstravam “a certeza de se estar vivenciando um verdadeiro milagre”. Dessa forma, o conteúdo, segundo o documento, promoveu informações imprecisas, incompletas ou falsas sobre a qualidade da água e ambiente aquático, recuperação de nascentes e bioengenharia e recuperação econômica dos atingidos.

A ação contabiliza 861 inserções pagas a emissoras de TV e rádio de alto alcance, como Globo Minas/Espírito Santo (114), Record Minas/Espírito Santo (114), GloboNews (126) e CNN Brasil (63) e a rádio Itatiaia FM (84)

Essas propagandas mascaram a dura realidade vivida pelos atingidos. Além dos 19 mortos na tragédia, o total de lama com resíduos da barragem de Fundão e de Santarém chegou a 62 milhões de metros cúbicos. Todos os 226 municípios da Bacia do Rio Doce, sendo 203 mineiros e 26 do Espírito Santo foram impactados, ao longo de 622 km de leitos d’água, onde moram mais de um milhão de pessoas, segundo dados da Universidade Federal de Ouro Preto.

Água envenenada

Moradora de Naque, uma das cidades atingidas pelo desastre no leste de Minas, a técnica ambiental Patrícia Alves Barreto sente no corpo os efeitos da poluição. Ela e os filhos se sentem inseguros em relação à qualidade da água. “A gente sai do banho, sente o corpo todo coçar e a pele fica toda vermelha, bem irritada. Sabemos que esses metais pesados, com o passar dos anos, vão penetrando na nossa pele. Além disso, a gente está bebendo dessa água, o que pode colocar em ainda mais risco a nossa saúde”, afirma.

Para Patrícia, “ao invés de a Fundação Renova gastar tanto em propaganda, mostrando o que ela não está fazendo, deveria investir mais na saúde e na qualidade de vida dos atingidos. Nós temos crianças crescendo que vão enfrentar esse problema por muitos anos.”

Sem condições financeiras para comprar água e por acreditar que a mineradora fornece água envenenada do Rio Doce com o rótulo de potável, a aposentada Delcina Pereira de Lima passou a coletar e armazenar a água da chuva (Foto: Thomas Byczkowski)

Reparação para inglês ver

A denúncia aponta ainda que o público-alvo das propagandas da Fundação Renova não eram os atingidos, mas investidores e a sociedade em geral porque “além de omitir completamente toda e qualquer informação técnica considerada ‘negativa’ à imagem das empresas”, a Renova não estaria atendendo as demandas da população potencialmente atingida, cujos canais de relacionamento, centros de informação e ouvidoria clamam por informações”.

Diante disso, em 29 de outubro do ano passado, a força-tarefa fez à Fundação Renova e Vale, BHP e Samarco uma recomendação conjunta solicitando, entre outros pontos, a retirada das propagandas do ar, a retificação das informações, a divulgação de conteúdos de orientação à população atingida e investimento do mesmo valor gasto em publicidade, em ações de reparação atrasadas. 

A Fundação Renova respondeu evocando a liberdade de manifestação e propaganda prevista em Constituição e o Código de Defesa do Consumidor. Também afirmou que “os investimentos em atos de publicidade são oriundos de recursos disponibilizados pelas mantenedoras sob rubricas administrativas e, portanto, não utilizam do orçamento dos programas socioeconômicos e socioambientais executados pela Fundação Renova”.

Diante da posição da Renova, a força-tarefa não viu outra saída senão levar a questão à justiça. Entre os pedidos nesta recente ação civil pública, está a proibição de que sejam divulgadas ou veiculadas propagandas patrocinadas pela Renova e veto a despesas com publicidade em quaisquer meios.

Além disso, a Renova deverá prestar esclarecimentos sobre as campanhas consideradas parciais e falsas, num prazo de 24 horas, em todos os canais, físicos ou digitais, de comunicação social, e em disparos massificados em redes sociais e aplicativos de mensagens. Ainda em tutela de urgência, a Fundação deverá enviar ofício às empresas responsáveis pelas redes sociais “Facebook”, “Twitter”, “YouTube” e “Instagram” e pelos aplicativos de mensagens “WhatsApp” e “Telegram”, para que impeçam o tráfego de conteúdo de áudio, vídeo e imagem relativos às propagandas.

O tamanho da degradação ambiental

A pesquisadora da UFOP Dulce Maria Pereira, ex-diplomata e interlocutora da ONU, diz que já presenciou cenários de guerra e outras tragédias, mas nada do que viu até hoje em relação à destruição ambiental se compara aos resultados do rompimento das barragens em Mariana. 

Segundo ela, a degradação ambiental ainda afeta todo o ecossistema ao longo da Bacia do Rio Doce. “O que as mineradoras fazem é ‘necroengenharia’”, diz ela, inspirada no conceito cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe.

“Estamos falando de metais e metalóides que contaminam rios, nascentes e o subsolo, arrasando a fauna e a flora. Esse rejeito lançado penetra na terra e se alastra, transformando o chão em uma superfície venenosa, que absorve muito mais calor, elevando as temperaturas” explica. “Quando seca, essa mistura evapora, poluindo o ar. As substâncias causam danos físicos e mentais irreparáveis. Algumas, como o mercúrio, atingem o cérebro humano, podendo causar problemas neurológicos graves.”

Dulce diz que a Renova tem realocado de forma irresponsável os rejeitos retirados das margens do Rio Doce em lugares próximos a moradias de pessoas de baixa renda, como em campos de futebol. “Isso já torna impossível o retorno do ecossistema. Agora, se retirassem a lama, identificassem os espaços de alta contaminação, com acompanhamento anual, enfim, se adotassem o plano correto, eu arriscaria dizer que levaríamos 200 anos para reduzir o dano local”, conclui.

O subdistrito de Bento Rodrigues, em Mariana, foi assolado pelo rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco em 2015. Foto: Tv Senado

Relatos de humilhação e abandono

Estudos realizados na cidade de Barra Longa (MG) entre 2016 e 2018, mostraram que aumentou em 1000% o atendimento a doenças como hipertensão, dermatite, diabetes, depressão, transtorno mental e asma. Na família de Mirella Sant’Ana, 23 anos, todos passaram a tomar remédios controlados para ansiedade e depressão, pagos por conta própria: além dela, os pais e os dois irmãos, inclusive o caçula, que começou a ser medicado aos 8 anos de idade.

“A casa da roça, coberta pela lama, ficou na lembrança de um tempo que não volta mais. Toda minha família foi trazida para um apartamento, em Mariana e passamos a viver apenas com cerca de 3 salários mínimos”, relata. A vida na comunidade de Ponte do Gama era boa, segundo ela. Até 2015, a família vivia na fazenda, às margens do Rio Doce. Depois do rompimento, o pai de Mirella entrou em depressão profunda, precisando ela mesma assumir o lugar de luta por direitos junto à Renova.

Esclarecimentos

Em nota, a Fundação Renova se limitou a informar que “não foi citada até o momento e se manifestará no prazo legal”.

A reportagem entrou em contato, por telefone, com o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão de Minas Gerais, mas não foi atendida. Até o fechamento desta edição, não conseguimos contato com os representantes das redes sociais Facebook, Twitter, YouTube e Instagram e dos aplicativos de mensagens WhatsApp e Telegram.

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