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Distopia
Os líderes do G-20 ignoram a urgência climática, apesar das catástrofes recentes e recorrentes


O número de vítimas das tragédias naturais ao redor do mundo não para de crescer. No Rio Grande do Sul, o ciclone tropical, maior incidente nos últimos 40 anos, deixou um saldo até o momento de 47 mortos e nove desaparecidos, além de milhares de desabrigados e prejuízos milionários. No Marrocos, que não enfrentava um terremoto de grandes proporções havia mais de um século, a última contagem aproximava-se de 3 mil mortes, a mesma quantidade de desaparecidos e cerca de 300 mil habitantes afetados. Embora o epicentro tenha ocorrido nos arredores da estância turística de Marrakesh, os tremores, na escala Richter de 6.8 graus, foram sentidos no sul de Portugal, a quase 1,2 mil quilômetros de distância (reportagem à página 17). Na Líbia, as chuvas torrenciais e incomuns para esta época do ano provocaram o rompimento de uma barragem. Saldo: 5 mil mortos e 20 mil desabrigados, segundo as últimas informações. Após o calor no verão atingir novos recordes na Itália e nos Estados Unidos e os incêndios florestais castigarem a Grécia e o Havaí, com dezenas de vítimas fatais, as inundações colocaram em estado de alerta países tão geograficamente distantes quanto China, Espanha e Brasil. “Não precisamos de mais avisos. O futuro distópico já está aqui. Precisamos de medidas urgentes agora”, implorou Volker Turk, alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, na segunda-feira 11, durante conferência em Genebra. Turk alertava para um dos aspectos do aquecimento global, a fragilidade dos mais pobres diante dos eventos cada vez mais extremos. “As alterações climáticas têm empurrado milhões de seres humanos para a fome. Destroem esperanças, oportunidades, casas e vidas. Nos últimos meses, os alertas urgentes tornaram-se realidades letais repetidas vezes em todo o planeta”, acrescentou.
Turk tem razão. Não se trata mais de discutir projeções ou modelos abstratos elaborados por cientistas. A própria natureza emite sinais de que as coisas vão de mal a pior. Junho e agosto tornaram-se os meses mais quentes no verão do Hemisfério Norte desde o início das medições, no século passado. O mapa publicado à página 18, elaborado pelo grupo de pesquisa norte-americano Climate Central, mostra a disseminação das ondas de calor pelos continentes. Entre junho e agosto, 98% da população global, quase 8 bilhões de indivíduos, foi submetida a temperaturas elevadas em uma proporção duas vezes maior que a média histórica. E quase metade dos seres humanos enfrentou 30 dias ou mais de sol abrasador no mesmo período, situação que passou de rara a corriqueira por conta do aumento da poluição. Ao fenômeno os cientistas deram o nome de “a era da fervura”.
O verão no Hemisfério Norte, o mais quente da história, foi marcado por enchentes na China e na Espanha e queimadas no Havaí, entre outros eventos extremos – Imagem: STR/AFP, Sgt. Andrew Jackson/National Guard e Oscar Del Pozo Canas/AFP
Os alertas assertivos, quase desesperados, dos especialistas ou os gritos de socorro de Pachamama, a Mãe Terra, segundo os nativos dos Andes, não comovem, no entanto, os líderes mundiais. Reunidos na Índia, os representantes das 20 maiores economias tripudiaram sobre os cadáveres no Marrocos, no Rio Grande do Sul e na Líbia. Sem consenso, o G-20 divulgou um comunicado vago sobre a emissão de gás carbônico na atmosfera. O grupo comprometeu-se a acelerar os investimentos em energia renovável, particularmente nos países em desenvolvimento – 5,4 bilhões de dólares até 2030, além de 4 bilhões anuais a partir de então –, mas não estabeleceu qualquer meta de redução no uso de combustíveis fósseis, sobretudo carvão e petróleo. O texto ignora a principal sugestão do balanço global do Acordo de Paris, uma análise dos oito anos do compromisso dos signatários de limitar o aumento da temperatura planetária a 1,5 grau Celsius até 2050. Produzido por uma equipe independente reunida pela ONU e divulgado às vésperas da reunião na Índia, o balanço evita rodeios ou floreios e vai direto ao ponto: sem a redução gradual e imediata do consumo de combustíveis fósseis, qualquer promessa de descarbonização não passará disso mesmo, de promessa.
O G-20, responsável por três quartos do PIB planetário e 80% do consumo de carvão e petróleo, reflete as disputas geopolíticas e os conflitos internos dos países. Há quem tenha buscado culpados pelo tom tímido da declaração conjunta – China, Rússia e Arábia Saudita, como representantes da Opep –, mas a responsabilidade pode claramente ser compartilhada. Mais de 90% das usinas à base de carvão em atividade e 88% dos novos projetos em construção estão localizados nesses países, o que torna as acusações individualizadas meras fofocas da geopolítica. A invasão da Ucrânia pela Rússia, ressalte-se, não colabora para o consenso.
António Guterres, secretário-geral da ONU: “Os produtores de combustíveis fósseis devem compreender uma verdade simples. Perseguir megalucros quando tantas pessoas perdem suas vidas e direitos é totalmente inaceitável”
Em seu discurso em Nova Délhi, o presidente Lula, que assumirá o comando do bloco em dezembro, associou as enchentes do Rio Grande do Sul e o terremoto no Marrocos às mudanças climáticas e lançou o lema da presidência rotativa do Brasil no próximo ano: “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”. Depois de quatro anos de descaso e destruição sob Jair Bolsonaro, o planeta reconhece os esforços do petista para preservar o meio ambiente e retornar às negociações internacionais, mas observa, preocupado, o avanço de um debate no País. Lula está diante de um dilema: deve ou não autorizar a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, fronteira com o Suriname? O presidente voltou a mediar a queda de braço entre a Petrobras e o Ibama, contrário à iniciativa, e, outra vez, mostrou-se favorável à demanda da estatal. “Não foi pesquisado ainda. É impossível saber antes de pesquisar”, declarou na segunda-feira 11. “Você pode pesquisar, descobrir que tem muita coisa, aí vai se discutir como fazer.” Explorar ou não explorar? Para os ambientalistas, perfurar o leito do rio não só jogaria pela janela os esforços de garantir a influência do Brasil nos debates climáticos, como também apressaria a deterioração da Floresta Amazônica, a caminho do que os cientistas chamam de “ponto de não retorno”, degradação profunda e irreversível. Para os especialistas em energia, entre eles Guilherme Estrella, “pai do pré-sal”, a extração de petróleo na margem equatorial geraria receitas suficientes para financiar a transição sustentável da economia. “É uma questão de Estado, de política pública, de garantir a soberania nacional. A Petrobras tem todas as condições de resolver a parada”, declarou Estrella.
Os europeus, por sua vez, mostram-se incomodados com a inevitável constatação de que, desde ao menos a Revolução Industrial, o “Ocidente”, ou melhor, o Hemisfério Norte é o maior vilão do aquecimento global. Atualmente, sete dos dez principais emissores de gás carbônico são considerados emergentes – a China lidera o ranking e o Brasil ocupa a sexta posição. As economias desenvolvidas carregam, porém, um passivo histórico e seus líderes sabem, ou deveriam saber, que soluções individuais não vão resolver o problema. Quem expressou o incômodo de forma mais clara após o encontro na Índia foi o presidente da França, Emmanuel Macron. “Estou muito preocupado com o espírito que começa a prevalecer, um discurso demasiadamente fácil que está a tomar conta de certos países emergentes para dizer que apenas os países mais ricos têm responsabilidade”, discursou.
*Média diária de anomalias entre 1° de junho e 31 de agosto de 2023 Análise baseada no EMCWF Era; Temperaturas comparadas ao período 1991–2020 Fonte: Climate Central
A propósito da declaração de Macron, voltemos ao balanço global do Acordo de Paris e aos relatórios recentes de outros cientistas. Apesar de os efeitos das mudanças climáticas se espalharem pelo planeta, os países menos desenvolvidos e os Estados insulares, que respondem por menos de 1% das emissões de gases de efeito estufa, têm sido os mais atingidos pela elevação das temperaturas e pelos eventos naturais extremos. “Enquanto esses países, o G-20, mantiverem as políticas que subsidiam os combustíveis fósseis, vão matar as suas populações, matar os vulneráveis e tornar as suas vidas extremamente difíceis”, afirmou Friederike Otto, do Imperial College. António Guterres, secretário-geral da ONU, reforça as palavras da climatologista: “Os produtores de combustíveis fósseis devem compreender uma verdade simples: perseguir megalucros quando tantas pessoas perdem suas vidas e direitos, agora e no futuro, é totalmente inaceitável. A menos que a humanidade abandone agora o seu vício em combustíveis fósseis, os pontos críticos do clima vão esmagar os direitos humanos de gerações vindouras”. No fim de novembro, os líderes mundiais terão nova chance de ousar. Os Emirados Árabes sediarão, em Dubai, a Cop28, reunião anual do clima que o Brasil organizará em 2025. “É uma excelente oportunidade para repensar e reorientar a agenda climática. Trabalharemos para realizar a conferência mais inclusiva possível”, promete Sultan Ahmed Al Jaber, presidente do comitê organizador. Os resultados modestos dos encontros passado recomendam cautela.
Para quem não se importa com os direitos humanos, os afogados pelas inundações do Rio Grande do Sul e os soterrados em Marrakesh ou nem sabe onde fica Vanuatu, ilhota na Oceania ameaçada de ser engolida pelo mar, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, em inglês) dos Estados Unidos fornece um argumento econômico. Neste ano, os prejuízos norte-americanos com os desastres climáticos foram os maiores registrados na história, 56,7 bilhões de dólares. A NOAA lista, entre outros, duas inundações, 18 eventos severos, uma tempestade de inverno, os incêndios no Havaí que devastaram Maui em agosto, o furacão Idalia, na Flórida, e as fortes chuvas de granizo em Minnesota.
De origem grega, Ioanna Stamataki, professora de Hidráulica e Energia Hídrica da Universidade de Greenwich, descreveu de forma didática em um artigo no site The Conversation os efeitos das mudanças climáticas no regime de chuvas na Grécia, atingida por dois fenômenos distintos: seca e queimadas seguidas de inundações. A “tempestade bíblica” atingiu a região da Tessália, depois de passar por Bulgária e Turquia e seguir para o Marrocos. Em 18 horas, descreve a acadêmica, caíram 754 milímetros de chuva, o equivalente a um ano e meio de precipitações. Fato isolado? Não, diz a acadêmica. “As inundações repentinas não se limitam à Grécia. Na verdade, fazem parte de um padrão mais amplo de condições meteorológicas extremas que se tornou mais intenso e frequente em toda a região do Mediterrâneo.”
Andrew Pershing, vice-presidente da Climate Central: “Não há pausa e não há escapatória. Todos os lugares estão sentindo o impacto (das mudanças climáticas)”
Embora uns (os pobres de sempre) sofram mais e primeiro do que outros, as tragédias constantes não deixam dúvida sobre o desfecho dessa história, se nada for feito imediatamente: cedo ou tarde, todos pagarão o preço. Os cínicos podem até recorrer a uma constatação espirituosa do economista inglês John Maynard Keynes para desdenhar dos fatos – “no futuro, estaremos todos mortos” –, mas viver como se não houvesse amanhã deixou de ser uma opção. Por enquanto, o sonho dos bilionários de colonizar Marte ou se mudar para uma estação espacial a caminho da Lua só rende (mais) dinheiro a exploradores privados como Elon Musk ou Richard Branson, que se preparam para oferecer a preço de ouro viagens regulares ao espaço. A quem não pode pagar para ao menos sentir o gosto de uma fuga momentânea restam os livros e filmes de ficção científica, embora, como ressaltou Turk nas aspas do primeiro parágrafo, a realidade distópica do planeta tem, de longe, superado a arte. “Uma das grandes lições deste verão”, afirmou Andrew Pershing, vice-presidente da Climate Central, na divulgação dos dados sobre o aquecimento global, “é que não há pausa e não há escapatória. Todos gostaríamos de imaginar que poderíamos nos mudar para algum lugar e tudo ficaria ótimo, mas todos os lugares estão sentindo esse impacto. As mudanças climáticas acontecem muito mais rapidamente do que as sociedades mudam.”
Até nossos remotos ancestrais têm enviado mensagens do que pode acontecer – desta vez, por exclusiva responsabilidade dos seres humanos. Segundo um estudo publicado recentemente na prestigiosa revista Science, baseado em trabalhos arqueológicos, a humanidade esteve à beira da extinção há cerca de 900 mil anos, quando a população global com capacidade reprodutiva se viu reduzida a 1.280 indivíduos. A causa, de acordo com os pesquisadores: mudanças climáticas extremas e secas severas. Naquele momento, a natureza permitiu a sobrevivência da espécie. Teremos uma segunda chance? •
Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.
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