Sociedade

‘Surto’ de Bolsonaro vai da pandemia às relações internacionais

No mesmo dia, presidente ataca vacina, minimiza Covid-19 e manda indireta a Joe Biden

Foto: Evaristo Sá/AFP
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Em menos de 24 horas, o presidente Jair Bolsonaro celebrou a suspensão dos estudos clínicos da vacina Coronavac pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), disse que a pandemia do novo coronavírus foi superestimada, afirmou que o Brasil “tem de deixar de ser um país de maricas” e ainda declarou, ao falar sobre a Amazônia, que “tem que ter pólvora” quando “acaba a saliva”, em recado indireto ao presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden.

Nesta quarta-feira 11, a Anvisa autorizou a retomada dos testes da vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac Biotech e pelo Instituto Butantan. Mas, na véspera, horas após o anúncio da suspensão determinada pela agência, Bolsonaro afirmou, sem provas, que a Coronavac causa “morte, invalidez e anomalia”. Ele também ironizou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), seu adversário político. “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, escreveu.

Para Arthur Chioro, médico sanitarista e ex-ministro da Saúde, essa atitude de Bolsonaro sinaliza que “a vida humana não vale nada”. “Ele comemora a morte de uma pessoa, independentemente da causa, da motivação, de estar ou não vinculada à vacina. Ele se regozija com a morte. Por isso eu vejo, acima de tudo, a atitude de Bolsonaro como um crime, um desrespeito contra a vida. Aliás, mais um que se soma a todas aquelas atitudes irresponsáveis e criminosas que ele vem tendo à frente da Presidência da República. Mostra o seu despreparo, a sua desqualificação moral, a sua incapacidade de conviver em um ambiente democrático e a sua total falta de empatia e de respeito em relação à vida”, diz o ex-ministro em entrevista a CartaCapital.

Chioro classifica como “um fracasso” a postura do governo Bolsonaro frente à pandemia do novo coronavírus. “Todo o excesso de casos e óbitos que o Brasil enfrenta – ou seja, tudo aquilo que excede os 2,7% dos casos em relação à população mundial, que é o que a população brasileira representa – está na cota dessa irresponsabilidade, desse negacionismo, dessa falta de empatia. Não estou dizendo que nós não teríamos um grave problema, um grande desafio, mas a maneira como o Brasil vem lidando [com a pandemia], essa onda que não cessa nunca tem um responsável principal, que é mais grave, mais perigoso que o coronavírus, que se chama Jair Bolsonaro”, dispara Chioro.

Pelos dados mais recentes do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), atualizados na noite desta quarta-feira 11, o Brasil já perdeu 163.368 vidas para a Covid-19.

Ameaça com pólvora

Bolsonaro também intensificou na terça-feira 10 sua narrativa contra o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, a quem se referiu – sem citá-lo – como “candidato a chefia de Estado”.

“Assistimos há pouco a um grande candidato a chefia de Estado dizer que se não apagar o fogo da Amazônia, vai levantar barreira comercial contra o Brasil. Apenas diplomacia não dá. Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora. Senão não funciona”, afirmou Bolsonaro, que ainda não reconheceu a vitória de Biden sobre Donald Trump.

Segundo Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, mais do que uma ameaça a Biden e aos Estados Unidos, a declaração foi uma tentativa do presidente de atiçar sua base de apoio nas mídias sociais.

“Tanto que se você acompanhar as redes bolsonaristas logo depois do discurso do presidente, [verá que] já existiam respostas prontas, com pensamentos dos mais absurdos possíveis, com teorias da conspiração, todos voltados para que o Brasil poderia ganhar a guerra dentro da Amazônia contra soldados americanos. Bolsonaro faz isso constantemente, porque o presidente não governa para o País, governa para seus seguidores, seu grupo eleitoral”, afirma.

Se uma fala dessa vai trazer prejuízo, mal-estar ou prejudicar a imagem do País, isso parece que não interessa nem um pouco ao presidente. O presidente fala aquilo que faz sucesso nas suas bases. Se o Brasil sai prejudicado, para ele, paciência. É o famoso ‘e daí?’

Para o especialista, o negacionismo é a marca do governo de Jair Bolsonaro. “No caso da pandemia e no caso ambiental, o negacionismo do presidente custa nossa biodiversidade e custa vidas. Custa vidas dos animais que morrem carbonizados no Pantanal, custa vidas de pessoas que são acometidas pelo coronavírus porque o governo brasileiro falhou miseravelmente em coordenar uma ação de resposta do Brasil a essa pandemia, custa à imagem do País porque ela está danificada por causa do desmatamento da Amazônia, custa acordos comerciais – o Acordo Mercosul-União Europeia está parado, por exemplo. Então, tem um custo enorme o negacionismo do governo Bolsonaro, não só na área ambiental, mas em várias áreas, com o custo mais grave, que é o custo de vidas humanas”, analisa.

Mas, conforme Astrini, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas tem o potencial de transformar a dinâmica em torno das pressões sobre o Brasil no contexto da devastação da Amazônia.

“O governo Bolsonaro é negacionista na questão climática: tirou o Brasil da solução de ser um país que ajudava na resolução de conflitos para passar o País a pária ambiental. Atrapalha as negociações internacionais de clima. E, na verdade, o Brasil tende a ficar mais isolado agora, uma vez que o atual presidente derrotado dos EUA é um negacionista climático e fazia um par com o presidente brasileiro. Agora a moeda inverteu. A situação é totalmente contrária”, opina.

“Um presidente americano eleito que, pelo que a gente ouviu, vai ter a agenda climática como um foco principal da sua administração vai isolar ainda mais o governo brasileiro, com consequências econômicas”, prossegue o secretário-executivo do Observatório do Clima.

Um governo isolado do mundo, andando na contramão do que o planeta inteiro quer, passa a ser um país indesejado. E um país indesejado passa a ter mais dificuldades comerciais para vender seus produtos e ser aceito internacionalmente. Isso pode afetar o emprego dos brasileiros e a retomada econômica no pós-pandemia

‘País de maricas’

Ainda na tarde de terça-feira, Bolsonaro tornou a minimizar os efeitos da pandemia de Covid-19, durante evento no Palácio do Planalto sobre a retomada do setor de turismo. Ao falar sobre o enfrentamento ao coronavírus, o presidente disse que o Brasil “tem que deixar de ser um país de maricas”.

“Tudo agora é pandemia, tem que acabar com esse negócio. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia, aqui todo mundo vai morrer. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas. Olha que prato cheio para a imprensa. Prato cheio para a urubuzada que está ali atrás. Temos que enfrentar de peito aberto, lutar”, declarou. Ele também disse que a pandemia “foi superdimensionada”.

Logo após a declaração de Bolsonaro, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, reagiu pelas redes sociais. “Entre pólvora, maricas e o risco à hiperinflação, temos mais de 160 mil mortos no país, uma economia frágil e um estado às escuras. Em nome da Câmara dos Deputados, reafirmo o nosso compromisso com a vacina, a independência dos órgãos reguladores e com a responsabilidade fiscal. E a todos os parentes e amigos de vítimas da covid-19 a nossa solidariedade”, tuitou.

Em contato com a reportagem de CartaCapital, a microbiologista Natalia Pasternak criticou a declaração de Jair Bolsonaro: “É lamentável. É uma declaração de uma pessoa que certamente não tem nenhuma conexão com a realidade e continua vivendo, pelo visto, no País das Maravilhas, sem entender que a pandemia não é uma grande brincadeira em que ele disputa quem ganha – ‘essa’ ou ‘aquela’ vacina. A pandemia é um problema global, sério, de saúde pública e que precisa ser enfrentado com maturidade”.

Mas, além de chamar a atenção pela truculência, o discurso de Bolsonaro pode ter um perigoso efeito sobre as frágeis medidas de distanciamento social ainda aplicadas no Brasil.

“Certamente a postura do presidente pode causar na população uma falsa impressão de segurança, de que tudo já acabou e que a população pode, sim, afrouxar ainda mais as medidas de distanciamento social que restam. Parte da população ainda acredita no presidente e ainda olha para o presidente da República como um modelo a ser seguido. Se o presidente se posiciona dizendo ‘não sejamos maricas’ e ‘isso tudo é uma frescura’, as pessoas adotam a mesma postura, o que pode colocar todo o resto da população em risco”, completa Pasternak.

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