Saúde

Servidores ligados ao governador Zema furam fila de vacinação em MG

Estado acumula mais de 20 mil mortes por Covid-19, mas os funcionários públicos só pensam no próprio umbigo

O governador Romeu Zema. Foto: Divulgação/Novo
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As denúncias de fura-filas da vacina espalham-se pelo Brasil, mas nada se compara ao “trem da alegria” colocado nos trilhos em Minas Gerais. Uma CPI na Assembleia Legislativa vai apurar a denúncia de que ao menos 3 mil servidores, vários vinculados ao partido do governador Romeu Zema, o Novo, aquela legenda que prometia mudar a política, foram imunizados na frente de profissionais de saúde, idosos e outros grupos prioritários. A situação da pandemia no estado é calamitosa: faltam leitos e insumos básicos e mais de 22 mil mineiros morreram em decorrência da Covid-19. O porcentual de vacinados, 4,7% da população, está abaixo da média nacional. Inicialmente relutante em tomar medidas duras de isolamento social e defensor da cloroquina, Zema viu-se obrigado a decretar a onda “roxa” em todas as regiões, o que inclui um toque de recolher das 8 da noite às 5 da manhã. Mesmo assim, os hospitais continuam lotados.

O esquema de fura-fila era tão organizado que uma espécie de open bar de vacinas para os privilegiados funcionava na capital mineira. Havia um endereço específico para a imunização. De estagiários a funcionários públicos em regime de home office foram imunizados. O único critério era trabalhar no governo. Até agora vieram a público três listas de fura-filas. O escândalo resultou na demissão do secretário estadual de Saúde, Carlos Eduardo Amaral, e do adjunto Luiz Marcelo Cabral. Tanto a Polícia Federal quanto o Ministério Público investigam as denúncias. Os crimes apurados pela CPI incluem peculato, crime contra a saúde pública e improbidade administrativa.

O escândalo está sob investigação na Polícia Federal e motivou a criação de uma CPI

Só na primeira lista aparecem 828 nomes de diversos setores do governo. Uma segunda elenca 1.852 servidores das superintendências de saúde e uma terceira cita 55 funcionários da própria Assembleia. Entre os mais de 1,8 mil privilegiados ligados às superintendências, apenas 75 têm mais de 60 anos de idade. Da relação de 828 nomes enviada pela pasta de Saúde, 464 nem constam como funcionários públicos, diretos ou indiretos, de acordo com o Portal da Transparência. Segundo denúncias investigadas pela CPI, uma servidora da área da comunicação da Secretaria de Saúde, também filiada ao Novo, organizava a vacinação e controlava o uso de celulares para evitar que os vips distribuíssem vídeos ou fotos. Exonerada da função, a funcionária será convocada a prestar depoimento à comissão parlamentar nos próximos dias.

O esquema de vacinação privilegiada teria sido oferecido a outros secretários estaduais, mas ainda não há informações sobre se algum aceitou participar. “Tem mais de cem vacinados que ficaram em home office durante o último ano inteiro. Para que vacinar alguém que tem a possibilidade de trabalhar de casa, enquanto milhões morrem e se arriscam no transporte público ou no trabalho? Claro que alguns se encaixam em critérios, no mínimo, plausíveis, mas vamos separar o joio do trigo”, declarou o presidente da CPI, João Vitor Xavier, do Cidadania. Por extensão, os parlamentares vão se debruçar sobre a política de combate à pandemia implementada por Zema.

O tamanho do fura-fila levou a uma reação, ainda tímida, de integrantes do governo interessados em barrar a investigação do Ministério Público Estadual. Descrita como uma profissional “que costuma ir a fundo” em suas tarefas, Josely Ramos Pontes, promotora de Justiça de Defesa da Saúde, instaurou um inquérito para apurar as denúncias. Haveria uma pressão para afastá-la do caso. Integrantes do MP, preocupados com a interferência política nos trabalhos, alertaram a CPI. Resultado: os ­deputados decidiram antecipar a audiência com Pontes. “A solução é ouvi-la agora e garantir o seu depoimento”, declarou um assessor técnico da Casa.

No ano passado, o governo mineiro reduziu os gastos com a saúde

O esquema começou a fazer água quando Amaral teve de admitir, em uma audiência pública na Assembleia, que havia sido vacinado antes da hora. O então secretário tentou se justificar. A iniciativa, disse, teria o intuito de servir de “exemplo” e estimular a população a aceitar o imunizante. Na sequência, surgiu uma primeira lista de fura-filas, com 500 nomes, sem timbre ou qualquer vínculo oficial. Logo depois descobriu-se que o buraco era bem mais embaixo. Nesse meio-tempo, enquanto os deputados de oposição colhiam assinaturas, servidores vinculados à base de governo tentaram brecar a instalação da CPI, sem sucesso. Zema saiu em defesa de Amaral, mas, à medida que o total de beneficiados aumentava, o governador perdeu as condições de bancar o subordinado no cargo. A demissão não foi, porém, capaz de conter os danos.

Zema, aliás, tem muito a explicar nesta história. A primeira informação a respeito dos fura-filas surgiu em 24 de janeiro, por meio de uma denúncia anônima encaminhada à Ouvidoria Estadual.­ Os deputados da CPI querem saber o motivo de o governo não ter apurado as acusações. Simone Siqueira, ouvidora, foi convocada a prestar esclarecimentos aos parlamentares. A comissão trabalhará em três etapas. Além dos fura-filas, serão investigados os baixos investimentos em saúde e a falta de leitos. Segundo dados do Tesouro, Minas Gerais foi o único estado a diminuir os gastos totais com saúde durante a pandemia. Em 2020, os valores caíram 3,7%. Goiás,­ unidade da federação que menos investiu no período, aumentou as aplicações em 3,4%. Um demonstrativo dos recursos em serviços de saúde obtido pelo relator da CPI, Cássio Soares, aponta um gasto empenhado de 6,6 bilhões de reais, pouco acima de 12% do orçamento. Trata-se, no entanto, de um número ilusório. O montante efetivamente pago teria sido de 4,5 bilhões.

A CPI vai investigar o descaso do governador Zema no combate à pandemia

A comissão será um palco para a oposição desvelar a ineficiência, a demora na aquisição de vacinas, os erros de planejamento e a burla no porcentual mínimo de investimento em saúde determinado pela Constituição. “As escolhas que ele sustentou durante todo esse tempo estão vindo à tona agora. Minas está um caos total por falta de investimentos e leitos. Vamos apurar tudo isso”, garante o deputado Ulysses Gomes, do PT. O parlamentar cita, entre os exemplos de má gestão, o programa Minas Consciente,­ uma tentativa de manter a flexibilização das normas de isolamento social. “O governador anunciou lockdown para as regiões Noroeste e do Triângulo Norte e colocou outras três em observação: Triângulo Sul, Leste do Sul e Norte. O que ele não contou é que foram justamente essas as regiões que ele deixou mais tempo nas ondas verde e amarela.”

Em meio ao caos, Zema defendeu o chamado “tratamento precoce” em entrevista recente à jornalista Leda ­Nagle. O kit Covid, composto de ivermectina (remédio para verme) e cloroquina (remédio para malária), não combate ou previne a Covid. Pior, ele provoca efeitos colaterais. Politicamente, a defesa faz, no entanto, parte da estratégia central do bolsonarismo de negar a oferta de vacina, enriquecer alguns empresários amigos e reforçar os vínculos com os mais radicais apoiadores.

Seis dias depois de o governador defender o kit, o setor de saúde de Minas entrou em colapso. As unidades de terapia intensiva da capital superaram a marca de 100% de ocupação. “Criamos a CPI por causa da gravidade dos fatos, mas a comissão não vai tirar a própria Assembleia do foco do combate à pandemia. Vamos seguir tentando minimizar os danos ao povo, nossa prioridade”, ressalta Soares.

Outro lado:

A Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) informa que o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 enfatiza que são trabalhadores dos serviços de saúde todos aqueles que atuam em estabelecimentos vinculados à saúde. É o caso dos vacinados ligados ao Poder Executivo citados. Foram vacinados somente servidores e colaboradores que prestam serviço na área de saúde, ao contrário do afirmado na reportagem.

Dessa forma, a lista de vacinados engloba servidores que atuam na Secretaria de Estado de Saúde (SES), reunindo servidores lotados na SES, servidores cedidos por outros órgãos e terceirizados. Nomes que não apareceram na busca pelo Portal da Transparência podem representar servidores terceirizados, erros de grafia ou de busca. Os dados do Portal da Transparência são atualizados constantemente.

Sobre o local de vacinação dos 828 vacinados que constam da primeira lista da SES enviada à ALMG, a imunização foi feita na Rede de Frio do Estado. Sobre a segunda lista, com 1.852 nomes de servidores imunizados nas Unidades Regionais de Saúde, a vacinação foi feita atendendo a chamamentos dos municípios onde as regionais estão localizadas. Então, o local depende dos municípios, que são os responsáveis pela imunização desses servidores.

Informamos ainda que a Controladoria Geral do Estado (CGE) abriu investigação para apurar eventuais irregularidades no processo de vacinação de servidores, assim como outros órgãos de controle. Como a apuração ainda está em andamento, não é possível prestar mais informações neste momento.

Sobre manifestações que chegaram à Ouvidoria, a denúncia recebida no dia 24 de janeiro foi respondida com pedido de complementação. Como este não foi enviado, ela foi arquivada. Outra denúncia, recebida no dia seguinte, 25 de janeiro, apresentava indícios de materialidade e plausibilidade. Então foi encaminhada para análise da CGE, que é o órgão responsável pela apuração das denúncias.

Sobre a aplicação das despesas em Saúde, o Governo de Minas reforça que os investimentos em saúde cumprem o índice exigido pela legislação federal. Informamos ainda que a atual gestão do Governo de Minas é marcada pela eficiência na aplicação dos recursos públicos. Desde o início da pandemia de Covid-19, Minas mantém uma das menores taxa de óbitos por 100 mil habitantes do Brasil. O número de leitos de UTI abertos passou de 2 mil, no início da pandemia, para mais de 4,4 mil leitos de UTI em todas as regiões do estado.

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