Justiça

Segunda instância da Justiça de MG corta em até 80% indenizações a atingidos de Brumadinho

Pesquisa obtida com exclusividade pela Repórter Brasil analisou 319 processos julgados em segunda instância pelo TJ-MG; De cada 4 decisões, 3 foram desfavoráveis aos atingidos

Casa destruída pela lama de Brumadinho (Foto: AFP)
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Por Fábio Corrêa | Fotos: Flavio Tavares

Quando o mar de lama desceu no fim daquela manhã, levando tudo que estava pela frente, Ricardo Aparecido da Silva, de 49 anos, estava no volante do caminhão, transportando minério entre duas empresas de pequeno porte em Brumadinho (MG). A poucos quilômetros dali, o gari Alcione Oliveira Borges, de 45 anos, fazia a coleta de lixo.

O motorista de caminhão Ricardo Aparecido da Silva teve seu pedido julgado "improcedente" na primeira instância da Justiça de Minas Gerais (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil) O motorista de caminhão Ricardo Aparecido da Silva teve seu pedido julgado “improcedente” na primeira instância da Justiça de Minas Gerais (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil)

O veículo de Ricardo, que passava próximo à porta da mina da Vale, chegou a ser arrastado por 200 metros e teve o para-brisa destruído. Já Alcione precisou sair correndo desesperadamente enquanto assistia ao avanço da avalanche de rejeitos de mineração. Tudo em volta virou terra arrasada.

Por pouco, os dois não tiveram o mesmo destino dos 270 mortos no rompimento da barragem do Córrego de Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG), que completa cinco anos em 25 de janeiro. Desde então, eles buscam na Justiça, ainda sem sucesso, reparações pelos danos causados pelos traumas gerados.

O ex-gari Alcione Borges segura receita de remédios contra o trauma provocado pelo rompimento da barragem de Brumadinho (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil) O ex-gari Alcione Borges segura receita de remédios contra o trauma provocado pelo rompimento da barragem de Brumadinho (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil)

Um estudo obtido com exclusividade pela Repórter Brasil – e recém-publicado pelo Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), uma das organizações não governamentais designadas pelas próprias comunidades para fazer a assessoria técnica na região do Rio Paraopeba – traz detalhes sobre as batalhas travadas na Justiça por pessoas impactadas pela tragédia, como Ricardo e Alcione, contra a Vale.

A pesquisa analisou 319 processos julgados entre janeiro de 2019 e março de 2023 por 11 câmaras cíveis do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), a chamada “segunda instância”. Desse total, 75% das decisões foram desfavoráveis aos atingidos. Alcione, por exemplo, chegou a ganhar R$ 100 mil em sentença de primeiro grau. Porém, o valor foi reduzido em 80% pelo TJMG, após recurso da Vale.

Em posicionamento enviado por sua assessoria de imprensa, o TJMG afirma que juízes e desembargadores têm autonomia para tomar as decisões nos processos que julgam, “segundo as particularidades de cada ação judicial e o preenchimento dos requisitos legais”.

Questionada, a Vale informou que, até o momento, já pagou cerca de R$ 3,5 bilhões em acordos de indenização fechados com mais de 15,4 mil pessoas – nem todos decorrentes de processos judiciais. “Desde 2021, ao menos um familiar de todos os empregados falecidos, próprios e terceirizados, celebraram acordos de indenização”, afirmou a mineradora, em nota.

Painel em protesto contra a tragédia de Brumadinho, que completa 5 anos no próximo dia 25 (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil) Painel em protesto contra a tragédia de Brumadinho, que completa 5 anos no próximo dia 25 (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil)

O trauma que não passou

Tanto Alcione quanto Ricardo foram diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático, distúrbio psicológico caracterizado pela repetição do terror causado por situações extremas, como guerras ou desastres.

Dormindo, Ricardo chegou a incendiar um uniforme de trabalho. “Estava sonhando e, quando assustei [sic], tinha colocado fogo na roupa que estava para passar”, conta. Alcione, que perderia o emprego de gari um ano depois, diz ter passado 24 meses vagando pelas ruas de Brumadinho. “Tentei suicídio três vezes”, desabafa o sobrevivente da tragédia, que hoje mantém um lava-jato na cidade.

O ex-gari entrou na Justiça ainda em 2019. Na primeira instância, a 2ª Vara de Brumadinho condenou a Vale ao pagamento de uma indenização por danos morais. O montante de R$ 100 mil teve como base um Termo de Compromisso firmado entre a Defensoria Pública de Minas Gerais e a mineradora para acordos extrajudiciais, que fixa esse valor específico como compensação para danos à saúde mental dos atingidos.

A mineradora recorreu e o TJMG reduziu a indenização em 80%, sob a justificativa de que a quantia de R$ 20 mil “compensa o dano moral, sem provocar enriquecimento da parte lesada”. A ação ainda está em trâmite.

Questionado, o TJMG afirma que o Termo de Compromisso, usado como referência pelo juiz de primeiro grau, regula a compensação financeira apenas para os acordos firmados sem a intervenção da Justiça, e que os magistrados têm autonomia para definir outros valores, de acordo com os requisitos legais.

Já o motorista Ricardo não recebeu nem o auxílio mensal de meio salário mínimo pago pela Vale desde fevereiro de 2019. Atualmente, 132 mil pessoas são contempladas por um programa de transferência de renda criado pela mineradora e gerido pela Fundação Getulio Vargas (FGV) desde 2021. Segundo a empresa, R$ 4,4 bilhões já foram depositados.

Um dos critérios para seleção dos beneficiários é o local de residência. Foram contempladas as pessoas que, em 25 de janeiro de 2019, residiam em Brumadinho ou em um raio de 1 km das margens do Rio Paraopeba e do Lago de Três Marias. De acordo com as regras, até mesmo moradores de condomínios de alto padrão de Brumadinho recebem o valor.

Vista aérea do Rio Paraopeba, em Brumadinho (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil) Vista aérea do Rio Paraopeba, em Brumadinho (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil)

Ricardo, que mora em Mário Campos, a 14 km do município onde ficava a barragem, não foi aceito pelo programa. Sem acesso a tratamento psicológico ou suporte financeiro por parte da mineradora, o motorista entrou com uma ação individual ainda em 2019, pedindo R$ 150 mil pelos abalos psíquicos, psicológicos e emocionais.

A ação foi negada na primeira instância pela 2ª Vara de Brumadinho. Além disso, o juiz responsável pelo caso condenou Ricardo a pagar as custas do processo e mais 10% do valor da causa em honorários de advogado. A defesa recorreu e a sentença foi revertida para R$ 30 mil, em favor de Ricardo. Mas o processo corre até hoje e o motorista ainda não recebeu um centavo da mineradora.

“Esses R$ 30 mil não cobrem o que eu gastei com remédio, com médico, com a vida dentro de casa, com a perda de pessoas que estavam comigo no dia a dia”, desabafa o motorista. “Tem pessoas que moram em condomínios, todos com dinheiro da Vale, sem precisar. Só queria entender onde está essa diferença entre nós que fomos atingidos e essas pessoas que nem lá estavam”, completa.

Redução sistemática de indenizações

Os dois atingidos são representados pelo escritório Rossi Advogados. De acordo com um dos sócios, Bruno de Oliveira Silva, a banca defende cerca de 850 clientes em demandas individuais e familiares no caso da Vale. Segundo ele, a maioria desses processos seguiu o mesmo padrão da ação de Alcione, com o TJMG reduzindo de 70% a 80% as indenizações concedidas na primeira instância.

A gerente jurídica do Nacab, Sarah Zuanon, que participou do estudo, diz que o Termo de Compromisso pactuado entre a Vale e a Defensoria Pública de Minas Gerais, e que define os valores indenizatórios, deveria servir de orientação para acordos extrajudiciais entre a mineradora e as vítimas do rompimento da barragem. “Só que, em muitos casos, a Vale não quis fazer acordo ou oferecia um valor muito abaixo. Então, as pessoas ficam sem alternativa e ajuízam uma ação”, explica.

Mina do Córrego do Feijão em Brumadinho (MG): Vale afirma que mais de 15,4 mil pessoas fecharam acordos de indenização, num total de cerca de R$ 3,5 bilhões (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil) Mina do Córrego do Feijão em Brumadinho (MG): Vale afirma que mais de 15,4 mil pessoas fecharam acordos de indenização, num total de cerca de R$ 3,5 bilhões (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil)

Em dezembro, esse termo foi objeto de discussão no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A terceira turma da corte entendeu que juízes podem usá-lo como referência para estipular indenizações em ações individuais contra a Vale, no caso de Brumadinho. A decisão, no entanto, não é definitiva, o que não obriga os tribunais a seguirem o termo nas decisões.

Ainda em dezembro, uma decisão de primeiro grau da 2ª Vara de Belo Horizonte determinou que a Vale reparasse coletivamente os danos causados pelo rompimento da barragem, após uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em nome de um conjunto de atingidos.

O juiz responsável pelo caso também indicou a criação de uma plataforma digital para que os atingidos contemplados pela ACP peçam o pagamento das indenizações de maneira mais simples. A intenção é acabar com a “avalanche de ações individuais”, afirmou o magistrado.

Atualmente, 132 mil pessoas são contempladas por um programa de transferência de renda criado pela mineradora e gerido pela Fundação Getulio Vargas (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil) Atualmente, 132 mil pessoas são contempladas por um programa de transferência de renda criado pela mineradora e gerido pela Fundação Getulio Vargas (Foto: Flavio Tavares/Repórter Brasil)

A gerente jurídica do Nacab explica que a Vale ainda pode recorrer e eventualmente derrubar em segunda instância a ação coletiva. “Para ela, é melhor que as pessoas entrem com ações com os advogados e briguem sozinhas”, afirma Sarah.

A nota da Vale sustenta que a empresa vem realizando ações para a reparação além do pagamento de indenizações. Segundo a Vale, mais de 5.600 pessoas foram atendidas pelo Programa de Assistência Integral ao Atingido (Paia), que oferece suporte e orientações gratuitas depois que as indenizações individuais são pagas. O objetivo é “auxiliar as famílias a planejar a melhor forma de utilizar o recurso”, declarou a mineradora.

A empresa também afirmou respeitar os instrumentos celebrados, entre 2019 e 2020, com entidades como a Defensoria Pública de Minas, o Ministério Público do Trabalho e com os sindicatos de trabalhadores para o pagamento de indenizações individuais “referentes a danos materiais e morais” pelo rompimento da barragem de Brumadinho.

ÍNTEGRA DAS RESPOSTAS 

Vale

A Vale respeita e cumpre o Termo de Compromisso firmado, em abril de 2019, com a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais para pagamento de indenizações individuais referentes a danos materiais e morais pelo rompimento da Barragem B1, em Brumadinho.

A empresa segue comprometida com a reparação de Brumadinho, priorizando as pessoas, as comunidades impactadas e o meio ambiente. Até o momento, mais de 15,4 mil pessoas fecharam acordos de indenização, com pagamentos que somam cerca de R$ 3,5 bilhões. Desde 2021, ao menos um familiar de todos os empregados falecidos, próprios e terceirizados, celebraram acordos de indenização.

O compromisso da Vale com a Reparação vai além do pagamento das indenizações. Com este foco, mais de 5,6 mil pessoas optaram por serem atendidas pelo Programa de Assistência Integral ao Atingido (PAIA), com suporte e orientações gratuitas após o pagamento das indenizações individuais. O objetivo foi auxiliar as famílias a planejar a melhor forma de utilizar o recurso recebido, sempre respeitando a vontade de cada pessoa.”

A Vale respeita e cumpre o Termo de Compromisso firmado, em abril de 2019, com a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, os acordos celebrados com o Ministério Público do Trabalho, em 15 de julho de 2019, e com os sindicatos representantes de trabalhadores, em 22 de abril de 2020, para pagamento de indenizações individuais referentes a danos materiais e morais pelo rompimento da Barragem B1, em Brumadinho.”

TJMG

“As decisões judiciais dos magistrados devem se pautar pelo livre convencimento motivado, conforme princípio previsto no Art. 371 do Código de Processo Civil (CPC), ou seja: “o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”.

Portanto, juízes e desembargadores possuem autonomia para arbitrar os valores das indenizações segundo as particularidades de cada ação judicial e o preenchimento dos requisitos legais.

Destaca-se que Acordo Judicial de Reparação firmado entre o Governo de Minas, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), no dia 04/02/2021, mediado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), não abrange os danos individuais.

O Termo de Compromisso entabulado entre a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e a Vale S.A., é do dia 05/04/2019.  O referido Termo prevê, em sua cláusula 1.2, o seguinte: “O presente TC regula a indenização pecuniária, extrajudicial e individual ou por núcleo familiar, dos atingidos pelo rompimento da barragem de Brumadinho, para aqueles que optarem por esta modalidade reparatória, não servindo de parâmetro para outras modalidades de reparação, que seguirão procedimentos e critérios próprios, a serem construídos oportunamente com os interessados”.

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