Sociedade

“Se na periferia nenhuma bala me acertou, não vou ter medo de robô”, diz Emerson Osasco

Manifestante pró-democracia hostilizado na Paulista conta que viveu momento de ‘nojo’, mas que expôs caráter autoritário de bolsonaristas

“Se na periferia nenhuma bala me acertou, não vou ter medo de robô”, diz Emerson Osasco
“Se na periferia nenhuma bala me acertou, não vou ter medo de robô”, diz Emerson Osasco
(Foto: Reprodução/Facebook)
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Ele tinha saído para procurar um lanche com o colega, quando, ao voltar, percebeu que outras bandeiras se misturavam às verde-amarelas, tradicionalmente utilizadas por apoiadores do governo. Vestido de preto e com o rosto de Malcolm X estampado na camiseta, sentiu o sangue ferver. “Tinha um grupo de pessoas… de bandidos com essas bandeiras fazendo exaltação ao nazismo, tirando foto, fazendo live. Eu falei: ‘Cara, olha aquilo: os caras com bandeiras de grupos fascistas da Ucrânia.’ Não aguentei.”

“Ele” é Emerson Marcio, um desenvolvedor de software de 35 anos, protestante do grupo pró-democracia organizado por torcidas de times paulistas que, no domingo 31, foi à Avenida Paulista reivindicar direitos, e não pedir intervenção militar, como tem sido praxe nas últimas semanas. As bandeiras de movimentos de extrema-direita da Ucrânia e as frases por fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, no entanto, ainda guardavam o pior.

De punhos cerrados e semblante sério frente a uma cena que dura segundos, mas reflete um ódio germinado pela história, Emerson fala em meio a xingamentos, empurrões, cusparadas, apitos, chutes e gritos de “mito”: “O Brasil tá cansado do fascismo, e esses caras vieram com uma bandeira, mesmo com tudo que tá acontecendo nos Estados Unidos, com uma bandeira de racistas da Ucrânia. Acham que a gente vai recuar? Não vamos recuar. Não vamos. Nenhum passo pra trás. Aqui é democracia”,

A cena viralizou nas redes sociais e ajudou a contextualizar os protestos que, já com nova data marcada para o próximo domingo 07, acompanham a série de atos ao redor do mundo que pedem por justiça racial frente à violência policial, racismo estrutural dos estados e, também, governos que avançam por uma escalada autoritária suscitada por grupos radicais, como é o caso do Brasil em tempos de Jair Bolsonaro.

Nos EUA, a morte de George Floyd por um policial que ajoelhou em seu pescoço por minutos, apesar das súplicas de “eu não consigo respirar”, foram a fagulha necessária para levar os manifestantes às ruas. Para Emerson, o estopim também foi o “e daí?” de Jair Bolsonaro às vítimas da pandemia. “Teve um amigo nosso que perdeu a esposa, que deixou duas filhas pequenas. Isso acabou com o cara psicologicamente, todos nós nos solidarizamos, então quando a gente viu ele falando “E daí?”, isso revoltou todo mundo”, relatou Emerson à CartaCapital.

A revolta foi o suficiente para encarar um questionamento chave: sair às ruas com o perigo do coronavírus valia a pena? Associado ao movimento Somos Democracia, do qual os torcedores das organizadas participavam, ele conta que uma votação foi feita. “Todo mundo tá preocupado com a pandemia, mas temos um medo maior do vírus do totalitarismo, do fascismo que quer se implantar no nosso país. Colocamos na balança, e foi unânime”.

A balança também pesou na vida do programador, que viu suas redes sociais explodirem de seguidores, elogios, homenagens e agradecimentos – mensagens que o “revigoraram” e o “colocaram de pé novamente”. Já são mais de 15 mil seguidores no Instagram e quase 50 mil compartilhamentos do vídeo no perfil do youtuber Felipe Neto, maior influenciador digital brasileiro, um reconhecimento importante para fazer passar o “nojo” vivido, relata.

“Foi horrível. Eu não pensei, só agi, e me coloquei à mercê de tudo que poderia acontecer, já sabendo que poderia sair dali até mesmo sem respirar. De alguma forma, eu tinha que mostrar quem são aquelas pessoas e o que elas queriam fazer com o país. Ainda bem que muitos jornalistas filmaram e retrataram [a cena], mostrando que não tem nada de legítimo naqueles movimentos. São atos criminosos.”

Emerson conta que o amigo puxou-o pelo braço quando percebeu que as hostilidades não se intimidariam com as câmeras, e que, na caminhada pela Avenida Paulista, ouviu mais xingamentos de ódio, que também se propagaram nas redes sociais. Entre os comentários, “preto filho da p***” e “os adjetivos mais bonitos que eles devem usar na casa deles”, como define o manifestante.

Apesar do horror, Emerson não se sente intimidado. Em Osasco, nome da cidade que adotou como sobrenome nas suas contas online, ele conta que “tá acostumado a conviver todo dia com uma cena de violência e opressão.”, diz. Bandeira neonazista e racismo escancarado são incabíveis num país construído por nordestinos, negros, e principalmente, em cima de luta, diz: “Desde criança vemos essas cenas, e infelizmente isso acaba se tornando um cenário pra nós. Não ia ser essa meia dúzia de pessoas gritando no meu ouvido que iria me intimidar. Se, até hoje, morando e vivendo na periferia, nenhuma bala me acertou, eu que não vou ter medo de robôs das redes sociais.”

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