Sociedade

Por baixo da batina: livro expõe casos de pedofilia envolvendo padres católicos no Brasil

O trabalho, que reúne 108 casos reais, é resultado de três anos de pesquisa e apuração

Missa é celebrada em igreja. Foto: iStock
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Victtor tinha 11 anos quando a família se mudou. O caminhão-baú velho era pequeno, mas tinha espaço suficiente para transportar a mobília de duas casas, composta por móveis antigos, imagens bíblicas e a fé abalada. A família virava a esquina rumo ao recomeço, mas Victtor somente olhava para trás, com o peso da dor provocada pela violência e as marcas de um abuso gravadas na alma.

O convívio com a Igreja Católica veio do berço para Victtor Dos Reis Duarte, hoje com 29 anos. Ainda bem pequeno, ele passou a frequentar as missas do padre Edson Alves dos Santos, na Igreja Imaculado Coração de Maria – logo tornou-se coroinha e chegou a ter papel de destaque na missa de Páscoa, para a alegria de toda a família.

Um segredo mantido entre ele, o padre e Deus, porém, transformou a felicidade em dor e tristeza. Desde os primeiros meses no posto de coroinha, Victtor foi abusado sexualmente pelo padre Edson. A família só soube dos abusos após a confidência de outro coroinha, mais velho, que também era vítima do clérigo.

A denúncia rapidamente estampou as manchetes dos jornais à época, em 2005, mas não foi o suficiente para moldar a opinião pública. Na cidade, a família foi desacreditada: ‘querem dinheiro da igreja’ diziam. A influência do pároco se revelou inclusive na Justiça. A promotora do caso se disse impedida de julgar Edson. O motivo? Seu casamento havia sido celebrado anos antes pelo padre.

Há 1,3 bilhão de católicos no mundo, segundo o Anuário Estatístico da Igreja, publicado em 2019. O Brasil reúne cerca de 10% dos fiéis e, segundo o IBGE, mais de 123 mil brasileiros se declaram católicos.

Apesar do gigantismo na mídia, a judicialização de casos de abusos sexual praticadas por membros da Igreja são ainda são escassas. Segundo o livro Pedofilia na Igreja, dos jornalistas Fábio Gusmão e Giampaolo Morgado Braga, a força da religião no País faz com que a comunidade católica e as próprias famílias se coloquem contra as vítimas, o que desencoraja denúncias. Outro obstáculo é o sistema judicial, que opera os casos em segredo de justiça quando envolve menores – o que, indiretamente, protege a imagem dos abusadores, que mantém seus postos e influência.

O trabalho de reportagem reúne 108 casos reais e é resultado de três anos de pesquisa e apuração. O dossiê, porém, não se restringe apenas ao levantamento de crimes judicializados: avança sobre os desdobramentos judiciais, o impacto na vida das vítimas e a impunidade da Igreja no País.

Em entrevista a CartaCapital, Gusmão e Braga comentam o longo processo de apuração que resultou nas 256 páginas do livro.

Confira a seguir.

CartaCapital: A Igreja católica tem lidado nos últimos 20 anos com diversos escândalos sexuais ao redor do mundo. Mas qual o ponto de partida para realizar um dossiê especificamente no Brasil?

Giampaolo Morgado Braga: O convite para a investigação veio dos nossos editores, o Bruno Thys e o Luiz André Alzer, com a percepção de que, embora explorado pela mídia internacional, esse era um tema a ser discutido no Brasil. Nunca havia sido feito no Brasil um trabalho que reúna casos com aprofundamento, principalmente nos últimos 20 anos. Sentimos que era um vácuo informacional.

Fábio Gusmão: Nós encerramos esse trabalho, após três anos, com a sensação de que é uma fração do que pode ser de fato o número de abusos cometidos por sacerdotes no Brasil. Mas reunir, levar e ver que fim levou um caso – justamente pela possibilidade de aprofundar, coisa que não temos na imprensa diária – é a grande importância desse trabalho.

CC: Casos de pedofilia na Europa vem de países imperialistas, onde a Igreja atuou ao lado da coroa. No Brasil, temos um cenário de País colônia, onde a Igreja entra desde 1500 com um forte poder moral coercitivo e educador. Esse ‘poder’ da Igreja na sociedade brasileira dificulta a investigação?

FG: Nossa maior fonte de informação foi documental, o que foge um pouco desse cenário colocado. O que vimos foi, pontualmente a Igreja – e aí estou falando das dioceses – exerce uma ‘pressão’ para duas coisas: desacreditar a vítima e a família da vítima – isso quando a família apoiava – principalmente em cidades pequenas; a capacidade de transferir esses problemas para outro lugar.

De resto, todas as vezes que acionamos o vaticano fomos prontamente recebidos e bem atendidos. O que eu senti falta é deles terem aproveitado essa oportunidade para ‘passar a limpo’ essas informações e pontualmente falar sobre os casos. Nada nos foi negado, mas eles não foram proativos em tratar nossas denúncias. De resto, não recebemos pressão.

O que vimos é que, como na Justiça os abusadores eram os processados, as dioceses tentavam todas as vezes se esquivar da denúncia e tirar o corpo fora, como se elas não tivessem participação naquele cenário.

GB: Vimos também que a maioria dos casos acontecem em cidades pequenas e que existe uma tendência a, em um primeiro momento, a diosese se colocar a favor do padre e contra a família, desacreditando as vítimas.

CC: Durante a análise de documentos, algum caso emblemático veio à tona e mudou o rumo da investigação?

FG: Não. Mas o que ocorria era que nós queríamos explorar e esmiuçar cada caso analisado – o que é impossível. A maior dificuldade que tivemos foi o segredo de justiça, que serve para proteger a vítima, mas também protege o abusador, torna-se muito difícil ter um dado público para descobrir sobre eles. Nós entendemos que contar melhor os casos tornaria impossível escrever esse livro, foram 108 casos selecionados. Nossa solução foi criar um apêndice de casos que não foram aprofundados, para honrar as vítimas e a apuração.

GB: Esse livro é um mosaico de história. Ele não tem um fio condutor do início ao fim. Nós entendemos que não deveríamos esquecer casos que não poderíamos aprofundar. Escolhemos não prolongar o tempo de produção também por entender que esse livro pode trazer a tona novos casos, novas vítimas que tenham coragem de denunciar, até mesmo pessoas que tenham sido vítimas dos mesmos padres em casos que estão publicados nessas páginas.

O livro ‘Pedofilia na Igreja – Um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil’, lançado pela editora Máquina de Livros, já está disponível para venda nas principais livrarias e portais pelo preço médio de R$ 72.]

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