Política

Plano de Moro gera temor de maior letalidade policial

A preocupação é que medidas signifiquem uma “licença para matar” para a já violenta polícia brasileira

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O pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, na segunda-feira 4 prevê alterações em 14 leis. Com 34 páginas, o documento que será enviado ao Congresso Nacional vem sendo intensamente debatido no meio jurídico. Um ponto em especial, que diz respeito à legítima defesa, vem recebendo críticas por entidades que atuam na área dos direitos humanos.

Pela legislação atual, é compreendida como legítima defesa a situação em que a pessoa, “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. O projeto de Moro sugere que a pena de um crime seja reduzida à metade ou, até mesmo, não aplicada, caso a legítima defesa decorra de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Segundo esse entendimento, o caso só será julgado se houver excesso, como um número de disparos considerado alto. O texto ainda propõe que policiais ou agentes de segurança pública sejam livrados de penas caso matem alguém em serviço nas situações de “conflito armado ou em risco iminente de conflito armado”, assim como para “prevenir injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”, como pessoas mantidas reféns durante a prática de crimes.

Atualmente, já é definida como legítima defesa a situação em que o policial em serviço age moderadamente para repelir agressão, atual ou iminente, a si ou a terceiros. Mas, com a alteração, os agentes que matarem alguém em razão de confronto não responderiam a processo criminal se apresentarem provas de que a morte ocorreu em legítima defesa.

A medida de Moro está em linha com o que defendeu o presidente Jair Bolsonaro durante a campanha — uma isenção de culpa e punição para quem atira em legítima defesa. A preocupação de setores ligados à defesa dos direitos humanos é que as mudanças tragam uma “licença para matar” para os agentes de segurança pública. Esse receio é compartilhado pela socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, que aponta o caso do Rio de Janeiro como particularmente sensível.

“A proposta traz um estímulo à violência policial, que já tem níveis assustadores no Brasil. No Rio, particularmente, vamos precisar de atenção redobrada. Mesmo antes de ser formalizada a proposta do Moro, o governador Witzel já falava em abater quem estivesse armado nas favelas. Na história recente do Estado, houve vários eventos em que policiais confundiram pessoas que estavam com guarda-chuva ou furadeira na mão”, critica.

Historicamente, as classificações utilizadas pelos órgãos de segurança pública para classificar e contabilizar as mortes cometidas por policiais receberam críticas das organizações de direitos humanos. Termos como “autos de resistência”, “resistência seguida de morte” e “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” são interpretados por esses grupos como mecanismos para evitar o indiciamento dos agentes que cometem abusos.

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Por outro lado, as classificações em questão trazem um custo político ao registrarem publicamente, de forma mensurável, a atuação violenta das forças policiais. Com as mudanças propostas por Moro, teme-se que esse caráter seja ocultado, como expressa a especialista em Direito Penal Aline Passos.

“A excludente ‘legítima defesa policial’ tem o condão de fazer desaparecerem essas classificações, e não pela via reivindicada pelos defensores de direitos humanos, ou seja, para transformá-las em Inquéritos Policiais, em que há a possibilidade de indiciamento”, critica. “Estamos diante da possibilidade de fazer desaparecer o custo político da visibilidade desses procedimentos, que continuarão, como já acontecia, não dando em nada, mas sob a forma de Inquérito Policial ‘comum'”, avalia

A socióloga Julita Lemgruber, especialista em segurança pública, também critica a visão contida no projeto de associar mudanças na legislação penal e o endurecimento de pena para reduzir os índices de criminalidade. Ela lembra que a Europa Ocidental apresenta taxas três vezes menores do que os EUA, onde esse processo foi adotado, inclusive com a pena de morte.

“O ministro deveria se organizar para investir parte do seu orçamento no estímulo à polícia investigativa, a programas de prevenção da violência, com ações que envolvam os jovens que não trabalham e nem estudam. O Brasil precisa injetar recursos nessa quantidade enorme de jovens que está no limiar entre a criminalidade e o respeito à lei. São medidas que realmente significam investimento em segurança pública, e não propostas primárias e imprecisas, que parecem ser feitas a toque de caixa”, defende.

De acordo com o Fórum de Segurança Pública, as polícias brasileiras foram responsáveis por 5.144 mortes no país em 2017, uma média de 14 por dia. O número representa um aumento de 20% em comparação a 2016. No ano passado, o estado do Rio registrou o maior número de mortes por policiais em 16 anos, quando iniciou a série histórica do Instituto de Segurança Pública (ISP). Até novembro de 2018, houve 1.444 vítimas, o correspondente a uma morte a cada cinco horas e meia. O indicador recorde não computou as ocorrências de dezembro.

Ante a imediata reação às medidas envolvendo os trechos do pacote relativos a legítima defesa, o ministro da Justiça negou que a subjetividade do texto apresentado sirva de estímulo para que agentes de segurança pública atuem com violência desmedida.

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“Não estamos ampliando a legítima defesa. Estamos apenas deixando claro, na legislação, que determinadas situações a caracterizam”, comentou Moro. “O que a proposta faz é retirar dúvidas de que aquelas situações específicas ali descritas caracterizam a legítima defesa”, disse o ministro, argumentando que a proposta só regulamenta algo que já é feito pelos juízes na prática.

O advogado criminalista Fábio Tofic direciona sua crítica justamente ao detalhamento da lei. Ele argumenta que, segundo a teoria do Direito Penal, a lei deve ser genérica e abstrata, para não correr riscos de ter uma aplicação muito restrita.

“Deve ser assim para haver um espaço de individualização dos casos concretos, que cabe ao Judiciário. A gente fala muito na intromissão do Judiciário na esfera legislativa, mas quando o Legislativo restringe demais uma previsão normativa, acaba interferindo na própria independência do Judiciário, que faz a operação lógica, formal, de adequar o fato a uma norma jurídica”, aponta.

A possibilidade de um caso sequer vir a ser julgado por ser associado à legítima defesa é conflitante com o Código Penal, na visão da advogada constitucionalista Vera Chemin. Ela lembra que essa justificativa não exclui a imputabilidade penal. Porém, acredita que, se aprovadas, as mudanças não trarão mudanças concretas no funcionamento jurídico macro.

“Na prática, as coisas vão continuar da mesma maneira, porque o que vai determinar a atuação do juiz serão as provas. Precisaria haver provas muito robustas para que o magistrado deixasse de aplicar uma eventual pena”, afirma.

O advogado criminalista João Paulo Martinelli,  professor do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP), endossa a visão de que as modificações propostas não trazem alterações concretas à legislação. Entretanto, ele receia os efeitos desses acréscimos no contexto do país com a mais alta letalidade policial do mundo.

“Sob o ponto de vista puramente técnico, o policial que atenda aos requisitos da legítima defesa não responde pelo crime. A dúvida é como isso vai ser interpretado pelos policiais que já têm esse viés criminoso, como aqueles envolvidos em grupos de extermínio, milícias, ou que fazem acertos de contas em nomes de terceiros”, diz. “Eles podem achar que têm essa autorização mesmo não estando em legítima defesa. O texto não dá essa licença, o problema é como isso vai ser interpretado e utilizado pelos policiais”, acrescenta.

Para Fábio Tofic, ao apresentar um parágrafo específico para agentes policiais, sem que o trecho acrescente modificações concretas à legislação, o texto passa o simbolismo de um salvo-conduto adicional à polícia em situações de risco.

“Em qualquer julgamento de legítima defesa, a grande discussão é sobre quando a agressão é iminente. Muitas vezes, há um erro de avaliação do cidadão. Há uma interpretação de que ele pode ser beneficiado pelo erro, mas, não caracterizada a iminência de agressão, ele pode acabar respondendo pelo homicídio doloso”, explica.

“Dessa forma, como é possível afrouxar essa previsão justamente para profissionais que deveria ter uma expertise justamente na identificação de uma real situação de perigo? Em outras palavras, o cidadão pode fazer um erro de cálculo. O policial não”, conclui.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, esse ponto do pacote anticrime de Moro pode criar um fator discriminatório pelo simples fato de o agente ser policial ou membro de uma força de segurança. E isso deve elevar a um questionamento no Supremo Tribunal Federal (STF).

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