3ª Turma

“Pacote de Moro radicaliza a política criminal”, diz especialista

Segundo Cristiano Maronna, ex-presidente do IBCCRIM, o Brasil já tem leis repressivas que pouco funcionam

(Foto: ABr)
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Foi durante uma coletiva de imprensa diante de 12 governadores e secretários de segurança pública de diversos estados do país que o ministro da Justiça, Sérgio Moro, apresentou seu projeto anticrime, uma série de mudanças legislativas tanto no Código Penal, quanto no Código de Processo Penal e na Lei de Crimes Hediondos. O enfoque, de acordo com o ministro, é o combate ao crime organizado, à corrupção e aos crimes violentos, eixos que devem ser tratados no mesmo pacote, conforme justificou: “O crime organizado utiliza a corrupção para ganhar impunidade. Por outro lado, o crime organizado está vinculado a boa parte dos homicídios do país”.

São ao menos 14 alterações legislativas e propostas que vão desde a introdução dos acordos penais norte americanos, os “plea bargain”, até a ampliação da definição de legítima defesa, criminalização do caixa 2 e prisão em segunda instância. Nos próximos dias, Moro enviará o projeto ao Congresso e ainda essa semana pretende apresentar suas propostas na Câmara dos Deputados.

Para entendermos melhor os principais pontos apresentados por Moro, CartaCapital conversou com Cristiano Maronna, advogado e ex-presidente do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) para entender melhor o que significam essas mudanças e se serão de fato efetivas no combate à criminalidade.

CartaCapital: Como você avalia o pacote anticrime recém apresentado pelo Sérgio Moro?

Cristiano Maronna: Em resumo, eu acho que ele propõe suprimir diversas garantias fundamentais do cidadão com o objetivo de dar mais efetividade ao processo penal, o que, ao meu ver, além de contrário às regras jurídicas, é um equívoco, porque isso já vem sendo praticado nos últimos 40 ou 50 anos.

A gente já viu que o recrudescimento da punição, a supressão de garantias e o aumento do encarceramento têm gerado maus resultados, incluindo o fortalecimento do crime organizado e o aumento dos índices de criminalidade. Eu vejo o pacote do Moro como mais do mesmo, ele está radicalizando uma política criminal que já era muito repressiva e que não apresentava bons resultados.

CC:Qual a sua opinião sobre as alterações na definição da legítima defesa?

CM: A mudança proposta no Código Penal, adicionando o parágrafo que considera legítima defesa “o agente policial ou de segurança pública que em conflito armado ou em risco iminente de risco armado previne justa e iminente agressão a direito seu ou de outrem” me parece uma espécie de carta branca.

A legítima defesa já prevê todos os requisitos necessários e as regras que orientam o uso letal da força. Na minha opinião, nesse dispositivo apresentado por Sérgio Moro, há uma mensagem simbólica no sentido de empoderar as forças de segurança pública e de assegurá-las um maior conforto jurídico para o uso abusivo da força.

CC: Houve também a ampliação da legítima defesa envolvendo o medo, a surpresa ou a forte emoção, que são super subjetivos. Deixou ainda mais aberto o conceito de legítima defesa.

CM: Exato, e a gente já sabe como o subjetivismo é definido pelo Sistema de Justiça, que é um sistema que blinda amigos e persegue inimigos. Então já dá pra saber qual vai ser o efeito prático disso.

CC:A proposta anticrime também propõe a introdução do plea bargain, muito criticado internacionalmente.  Há diversos estudos mostrando que réus negros têm menos chances de conseguir um bom acordo do que réus brancos, ou seja, envolve racismo, aumento do encarceramento e um punitivismo exacerbado. Como você vê essa alteração?

CM: Vejo o plea bargain com muita preocupação. É a importação de mais um instituto jurídico próprio do direito norte americano, para um sistema como o nosso que é baseado em outra tradição. Nós temos na Constituição a obrigatoriedade da ação penal e também a regra da inafastabilidade da jurisdição sempre que houver risco de lesão ao direito, portanto, pensar em um acordo que é feito pelo Ministério Público e pelo acusado, em circunstâncias nada transparentes e não submetidas a um controle jurisdicional efetivo, representa o aniquilamento do direito de defesa e da própria advocacia.

Agora nós teremos corretores de acordos e não mais advogados de defesa, isso é muito preocupante. A advocacia é resistência e esse tipo de proposta, além de totalmente descabida para o nosso sistema, virá acompanhada de resultados muito ruins e quem vai sofrer as piores consequências são os mais vulneráveis.

Além disso, o que me preocupa também é o fato de que nos Estados Unidos esse sistema levou ao super encarceramento, quer dizer, é uma porta aberta para o punitivismo. Ao meu ver, essa proposta cria o Código Penal da Acusação, como o Marcelo Semer já dizia a respeito das 10 medidas contra a corrupção do Ministério Público Federal.

CC: É absurdo pensarmos que enquanto o modelo de plea bargain está sendo revisto pelos norte americanos, o Moro está querendo copiar isso aqui.

CM:Exatamente, isso já é superado e muito criticado nos Estados Unidos, e agora é colocado aqui como se fosse uma solução. Vejo que a “única vantagem” disso é que vai acabar com o número excessivo de processos. Os juízes certamente terão menos trabalho, mas juízes com menos trabalho a um custo tão alto, de violação de garantias constitucionais tão importantes, parece injustificável.

CC: Estamos trocando uma eficiência administrativa por direitos…

CM:Sim, e a partir de uma premissa completamente imune à autocrítica sobre o funcionamento do sistema. Para um diagnóstico verdadeiro e claro do sistema, é preciso apontar também as responsabilidades do Judiciário e do Ministério Público, que são instituições que pertencem ao 0,1% mais rico da população e que acabam agindo contra a Constituição e não a favor dela.

CC:O que podemos concluir disso tudo?

CM:O que a gente percebe é que ele está no fundo cumprindo a proposta de campanha do Bolsonaro, o que não é uma surpresa. Na verdade, a surpresa é que isso venha de um magistrado que hoje ocupa o Ministério da Justiça, mas como o histórico dele é de extrema direita, então na verdade também não há surpresa nisso. Ou seja, é um governo que nesse ponto está fazendo o esperado.

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