Sociedade

Padre Júlio Lancellotti: Todos querem acabar com a Cracolândia, mas métodos são insuficientes

Lancellotti conta como foi receber ligação do Papa, retoma real motivo das ameaças que sofreu e diz se algum cargo político já o interessou

Há mais de 35 anos, o padre Júlio Lancellotti dedica-se a apoiar os mais vulneráveis. Foto: Reprodução/TV Brasil.
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No último domingo, dia 11 de outubro, um número sem identificação apareceu na bina do Padre Júlio Lancellotti. O relógio marcava 14h15 na capital paulista.

Ao longo desta semana, a reportagem de CartaCapital tentou contato algumas vezes com o coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo. Lancellotti só conseguiu uma brecha em sua corrida rotina de luta pela população em situação de rua em um momento tipicamente paulistano: parado no trânsito.

Mas naquele dia 11, aparentemente, o Papa Francisco teve sorte.

Em entrevista a CartaCapital, Padre Júlio fala sobre como foi receber a ligação do pontífice, que o incentivou a não desanimar de seu trabalho de mais de 35 anos com o povo de rua, reflete sobre como a pauta tem sido tratada por alguns políticos no contexto das Eleições 2020, e responde, também, se algum cargo político o interessa para o futuro ou já o interessou ao longo de sua trajetória.

CartaCapital: Padre Júlio, gostaria de começar perguntando sobre como foi a ligação do Papa Francisco para o senhor. Pode recapitular o momento em que a recebeu? Alguém tinha avisado que o Papa ligaria?

Padre Júlio Lancellotti: Eu não esperava, ninguém avisou que ele iria ligar. Aqui em São Paulo eram por volta das 14h15, aí meu telefone tocou e estava sem identificação de chamador. Quando aparece assim, em geral, estou acostumado que é ligação de jornalistas que ligam da redação.

Eu disse: “Alô?”. A voz do outro lado disse: “Padre Júlio?”. “Sim?”, e ele perguntou: “Parla italiano ou hablas castellano? [fala italiano ou espanhol?]”. Eu respondi que os dois. Aí ele falou que era o Papa Francisco. Eu estava sentado, me levantei.

Ele disse que recebeu fotos, leu sobre as dificuldades e dos desafios que existem. E me perguntou: “Como é o seu dia?”. Eu expliquei para ele como era a rotina de partilha com os irmãos de rua, mas que tudo isso é um instrumento, que o principal é conviver. E disse: “É isso mesmo, conviver sempre com os pobres como Jesus. Não desanime. Continue convivendo com os pobres e transmita a eles o meu carinho e meu afeto. Eu lhe dou a minha benção.”

CC: O senhor já tinha falado com ele?

PJL: Não. Só tinha mandado cartas, que a gente sabe que passam pelas assessorias. A resposta é assinada sempre pelo secretário. Uma que eu escrevi uma mais longa, veio uma resposta mais pessoal, mas ainda assinada pelo secretário. Diretamente dele, ele mesmo ligando, não.

CC: Qual foi a sensação no momento?

PJL: É uma sensação boa, né? Você está falando com alguém muito importante dentro do seu mundo de significados e sentidos. Receber apoio, força, carinho, uma palavra de proximidade pessoal. É uma sensação boa, de comunhão, de atenção, carinho e afeto.

CC: E agora, depois de todos esses meses de pandemia, como é a rotina do senhor?

PJL: Eu convivo todos os dias com a população de rua. No começo da pandemia era mais difícil, porque nem sequer tínhamos máscaras. Não tínhamos álcool em gel suficiente. Ainda está nebuloso, imagine no começo.

Eles me perguntavam muito: “Onde vamos ficar? Onde é a ‘casa’?'”, porque falavam ‘fique em casa’. Lavar a mão? Onde vai lavar a mão? Como ter acesso à água potável, à higienização? Desde o começo, tivemos que mudar a forma da convivência – antes, era mais coletiva. A partir disso, foi preciso manter o distanciamento, dar álcool para todos, medir a temperatura, chamar as equipes de saúde para que quem tivesse algum sinal [da Covid-19] pudesse passar pelo atendimento médico.

Com a abertura, o número de pessoas isoladas foi diminuindo. Lanchonetes que nos ajudavam foram reabrindo, então nós passamos a ter essa convivência em instituição social que se chama Espaço de Convivência São Martinho de Lima. Lá um lugar para tomar banho, almoço, tem uma tenda na frente do prédio pra não concentrar. Todos os dias de manhã depois da missa eu vou para lá e levamos para lá as coisas que nós temos.

A convivência é um instrumento para estabelecer vínculo. Ontem, nós distribuímos cuecas novas. Para moradores de rua, ter uma cueca nova é uma novidade muito grande. Além da cueca ser nova, é nova a situação. Um dia, um deles me disse: “eu estou com essa cueca faz um mês”. E muitas vezes eles lavam e deixam secar no corpo, e tem muitos que já não usam mais, pois não faz parte do rol do vestuário de uma pessoa que está na rua.

O que acontece com a população de rua é que eles nunca podem escolher nada. Eles ficam atônitos em fazer escolhas. A estrutura que existe para a população de rua é de negação da subjetividade, então alguém vai dizer: “Por que escolher, se é tudo a mesma coisa? O que importa é tomar banho!”.

Nós entregamos os sabonetes fora da embalagem para evitar a tentação de vender, e a primeira reação que eles têm é de cheirar, sentir o perfume, o cheiro. São de cores diferentes, e eles escolhem entre elas. Amanhã entregarei sabonetes e desodorantes. É uma coisa estranha para eles ter um desodorante, não é uma coisa básica. E isso aproxima, porque humaniza.

CC: Nessa questão que as pessoas em situação de rua não podem fazer escolhas, como o senhor vê esse tipo de discurso agora no período eleitoral, com debates sobre internação compulsória de pessoas em situação de rua com dependência química, por exemplo?

PJL: A ação institucional é sempre de tutela, o que tira um ponto que é fundamental na vida de cada um de nós: a autonomia. Nenhum de nós gosta de ser tutelado 24h. Você é tutelado porque tem a hora de entrar, a hora de sair, a hora de dormir, a hora de acordar, a hora de comer, a hora de tomar banho.

Você até estabelece na sua vida uma rotina, mas estabelece a partir da convivência. Muitas vezes a regra quer facilitar a convivência, mas facilitar a convivência num lugar com 400 pessoas e 10 banheiros. Então é uma coisa mais complicada. Numa casa com 2 banheiros e 5 pessoas, você estabelece uma rotina de utilização no banheiro; mas você imagina ter 10 banheiros com 400 pessoas? Ou dormir num quarto com 100 pessoas? Na periferia, tem cômodos com 10 pessoas. Mas tem lugares que têm duas pessoas em um quarto.

CC: As pessoas que convivem com o senhor estabelecem essa relação de proximidade?

PJL: Sim, e eu tenho um certo método que não é de ficar fazendo pergunta, inquérito. Normalmente, todo mundo quer saber o nome, RG, data de nascimento, nome da mãe, se estudou até que série… coisas que você conhece das pessoas na convivência. Você não fica amigo de alguém depois de ter feito um questionário.

Dificilmente alguém pergunta para um morador de rua: “Você está bem? O que você está sentindo?” Se não está bem, “o que aconteceu com você?”. Ou “nossa, que bom que você veio, onde você estava que eu não te vi? Você emagreceu, o que aconteceu?”.

Dificilmente alguém vai perguntar para um morador de rua: “você está cansado, quer descansar um pouco?”. O que eles ouvem?: “O que você tá fazendo aqui? Vai trabalhar, vagabundo. Tá aí ainda? O que você quer?”.

CC: Nesse período de eleição, os candidatos  precisam fazer propostas e alguns fazem promessas – não só à Prefeitura, mas também aos cargos de vereador. Qual seria o melhor ponto de partida para refletir de uma forma mais humana sobre a população em situação de rua?

PJL: Eu acredito que todos coloquem as coisas, propostas, que alguém quer ouvir. Uma questão da cidade de São Paulo que envolve a população de rua é a questão da moradia. Hoje nós teríamos em São Paulo 30 mil pessoas em situação de rua. Nem todos são da cidade. Muitos são da Grande São Paulo. É uma questão que envolve a área metropolitana.

Se nós tivéssemos uma resposta de locação social, diminuiria e muito o número de pessoas que estão na rua. Se tivéssemos uma renda universal municipal com critérios, a partir de mulheres com crianças, que é uma população que cresce nas ruas, ou de pessoas com problemas de saúde… Uma renda para quem está na cidade. A situação do aumento da população de rua está ligada à renda, à moradia, ou como prevenir que outras pessoas venham para essa situação.

CC: Em relação aos comentários dos candidatos, como o último, do Celso Russomanno, de que a população de rua poderia ser “mais resistente” por não tomar banho, ou alguns que prometem “acabar com a cracolândia”: O que o senhor acha?

PJL: Eu li o texto da entrevista, e ele [Russomanno] estava falando sobre a questão do isolamento social, e usou [a população de rua] como um exemplo. O plano de fundo da fala dele, e o que ele queria criticar, porque estava falando com uma associação comercial, o fechamento e o isolamento.

Uma coisa que é verdade é que, no começo da pandemia, considerava-se que a população de rua seria dizimada, que todos iriam morrer. Uma das coisas que infectologistas e cientistas estão estudando é porque que a população de rua não foi [‘dizimada’]. Nós temos que acompanhar e ver.

Outros quando dizem “vou acabar com a cracolândia”, penso: alguém é contra que a cracolândia não acabe? Não conheço ninguém que diga “quero que a cracolândia permaneça porque é muito boa e faz bem para as pessoas”.

Todos querem acabar com a cracolândia. Os métodos que não são suficientes. Eu já ouvi vários governadores e prefeitos falando que a “cracolândia acabou”, e não acabou porque aquilo é uma coisa rentável e alguém ganha em cima disso. No sistema neoliberal que a gente vive, nada funciona se não dá lucro. Nem a cracolândia.

CC: Alguma candidatura política é ou já foi de interesse para o senhor? 

PJL: Não tenho nenhum interesse. Eu não sou candidato a nada e nunca serei – na idade que eu estou, só sou candidato para morar em um asilo [risos]. Nunca tive pretensão política, até porque na norma disciplinar canônica, um padre não pode ser candidato a nada. Se ele for candidato, tem que deixar o ministério.

CC: Após as ameaças que recebeu depois dos ataques virtuais do deputado Arthur do Val (Podemos), houve mais alguma situação de hostilidade?

PJL: As ameaças… conviver com os que perdem numa sociedade que só valoriza os que ganham é conflitivo. Conviver com os que não têm em uma sociedade que valoriza os que têm é conflitivo. Conviver em uma sociedade onde há um primado do trabalho, ter a um grupo que não encontra trabalho, mas atua em muitas coisas informais e mesmo assim não tem nada, nem uma cueca para trocar, nem um par de meias para pôr, uma coberta na cama porque ficou mais frio… vai gerar conflito. Em uma sociedade que tem um padrão de estética muito estabelecido, conviver com aqueles considerados sujos, feios, suspeitos, indesejáveis, vai gerar conflito.

Isso é antigo. É tão antigo quanto a humanidade.

CC: A pandemia não acabou, e o pós-pandemia tem vários desafios, especialmente para o campo da saúde mental. A Igreja muitas vezes entra, para os fiéis, como algo importante para se amparar. Mas até a nova encíclica do Papa Francisco fala sobre a amizade social e da fraternidade em um tempo que há muitas dúvidas sobre o futuro. Eu gostaria de saber do senhor: Qual o maior desafio para uma maior fraternidade? As prioridades mudaram com a pandemia?

PJL: A pandemia explicitou mais a desigualdade. Eu reflito muito sobre uma questão: se você pegar todas as revistas que saem aos domingos, ou que saem na semana, todos os jornais, quantas vezes você encontra a palavra solidariedade? Compaixão? Misericórdia? Ou quantas vezes você encontra a palavra humanização? É difícil, né?

Eu acredito que o Papa coloca essa fraternidade, essa amizade social, justamente porque ela está ausente nas relações. A solidariedade não é uma dimensão religiosa, ela é uma dimensão humana, porque os ateus também são solidários, e os sem religião, que são um grupo que cresce na sociedade, também são solidários.

A solidariedade não é privativa dos religiosos. Por isso que o Papa faz uma grande abertura da aceitação das diferenças humanas, culturais. O Papa Francisco cita na encíclica Mahatma Gandhi, Martin Luther King e Desmond Tutu, e o poeta e compositor Vinícius de Moraes, que, até onde eu sei, também não era católico. Mas isso não significa que ele não fosse humano, e que ele não tivesse a solidariedade, a proximidade, a companhia, o afeto.

O que distingue a humanidade é a capacidade de ser solidária. O nosso mundo é solidário com a África? É solidário com os refugiados? Deixá-los morrer afogados no Mar Mediterrâneo é a mesma crueldade do que deixar os índios sem terra, os animais sem o Pantanal. Quem não se comoveu de ver os animais queimados no Pantanal? Assim também como a maioria das pessoas não se sentem bem em ver alguém deitado na rua, coberto com cobertor que parece mais um trapo do que um papelão.

A gente pode ir para a indiferença e o individualismo, essa é uma encruzilhada, ou você pode ir para a solidariedade. A solidariedade pode ser um gesto fraterno, mas também pode ser um gesto político.

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