Sociedade

Os “anos de chumbo” e movimentos cristãos

Prisões e torturas de leigos cristãos ocorreram no Rio de Janeiro e em São Paulo, relata Helio Amorim

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José e Lya Sollero foram coordenadores nacionais do Movimento Familiar Cristão (MFC) entre 1977 e 1980. Sollero, em São Paulo, e sua filha, no Rio, foram presos pelo poder militar repressivo nos anos da ditadura. Guida Sollero foi torturada no aparelho do DOI-CODI no Rio, mantida isolada por um ano da família, que somente pode vê-la na audiência da instrução do processo militar. Assisti ao seu depoimento perante uma junta de cinco oficiais militares e um juiz civil, sentados em mesa colocada num palco de auditório, para que a presa ficasse dois metros abaixo, ladeada por dois gigantescos policiais fardados, para completar o cenário de intimidação.

Guida relatou corajosa e detalhadamente as torturas que sofreu reiteradamente: pau-de-arara, choques elétricos, socos e humilhações de todo tipo. Testemunhei a cena, único presente, admitido por engano, além dos pais e irmãos com suas lágrimas e sofrimento. Em 1980, na missa de abertura do VIII Encontro Latinoamericano do MFC, em Porto Alegre, nas preces da comunidade, Sollero foi ao altar, relatou as torturas na filha e perdoou publicamente os torturadores. Pode-se imaginar o impacto desse ato e as lágrimas provocadas.

Alguns chilenos presentes se assustaram com esse depoimento e as músicas de Vandré e Violeta Parra cantadas na celebração e retornaram para casa naquela mesma noite. Guida foi libertada finalmente, depois de um ano quase invisível, e trazida para casa de Mariana e Cyro Miranda, do MFC, ele seu advogado. Guida foi recebida com festa e alívio pelas famílias da Comunidade da Barra da Tijuca, sem qualquer condenação, o que confirmava a barbárie gratuita que durou um ano.

Essa nossa comunidade, com dez famílias do MFC e outros movimentos cristãos, foi invadida por um comando militar armado e teve também dois casais presos. Fernando e Letícia Cotrim foram presos sob acusação de pertencer a uma organização política denominada Movimento Popular de Libertação. Fernando sofreu o horror de ser obrigado a assistir às estúpidas torturas da esposa. Seu depoimento está na Revista Eclesiástica Brasileira (número 47). José e Zilda Villela foram presos pelo aparelho repressivo da Aeronáutica por esconder Luiz Bustini, o filho de um amigo que, torturado, revelou o endereço do abrigo.

Fácil imaginar o alvoroço dos filhos das dez famílias diante daquele aparato militar que exibia fuzis e metralhadoras nos nossos jardins…

As pessoas que foram abrigadas na nossa comunidade foram muitas, enviadas pelas diversas organizações que já não tinham como fazer isso. A Igreja, vários padres, bispos, conventos e outras Instituições religiosas faziam isso também. Em dezembro de 1978, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação, no Rio, coletou vasto material sobre a repressão sofrida pela Igreja naquela década.

Cláudio e Lygia Campos, membros do MFC, tiveram seu filho Cláudio, médico, também do MFC, preso e estupidamente torturado a ponto de baixar na UTI do Hospital do Exército, no Rio, depois de forçado a beber grande quantidade de água salgada, com danos graves nos rins. Seus pais foram chamados para entrevista pessoal pelo comandante da repressão militar, general Sílvio Frota, que os alertou sobre o risco de vida do filho por moléstia anterior à prisão. Queixou-se do custo elevado do tratamento que o Exército Brasileiro estava despendendo para tentar salvá-lo. Fui ao hospital e monsenhor Trevisan, capelão militar, me relatou a verdade e a gravidade do caso. O jovem médico sobreviveu e meses depois foi absolvido de uma acusação irresponsável.

O MFC foi ainda perseguido com a prisão de Jorge Hue, presidente nacional do Movimento nos anos 60, e seu filho estudante. Fui à CNBB, ainda no Rio, relatei o fato interrompendo a reunião geral dos bispos que acontecia naquela manhã. D. Aloysio Lorscheider saiu do auditório, telefonou para o general Frota, aos berros e socando a própria mesa, exigindo a imediata liberdade de Jorge. Foi atendido pelo general, constrangido diante do discurso nada eclesiástico do presidente da CNBB. Mas seu filho continuou preso.

A Comissão Bipartite

Dom Eugênio é considerado ter sido demasiado moderado no combate à tortura e repressão durante os anos mais brutais da ditadura militar. Não foi omisso. Foi um dos idealizadores e participante ativo da Comissão Bipartite, integrada por membros importantes da hierarquia da Igreja, leigos e militares de até quatro estrelas. Participaram, dentre outros, dom Aloísio Lorscheiter, dom Ivo Lorscheider, o professor Cândido Mendes e o general Andrade Muricy.

As reuniões, durante alguns anos da ditadura, avaliavam comportamentos do aparato militar repressivo e de atores considerados subversivos pelo general Muricy, cabendo-lhe levar os casos denunciados ao governo militar e trazer explicações nas reuniões seguintes, realizadas no Sumaré (Casa de Retiros) ou na própria sede da diocese. Nada era evitado, tudo podia ser discutido sem reservas. Mas os resultados foram pouco relevantes, levando a Comissão a dissolver-se.

D. Eugênio Sales

Pessoalmente, D. Eugênio interveio nos casos das prisões de membros do MFC por sua relação direta, telefônica e imediata com o general Sílvio Frota. Dele recebia notícias e nos retornava com informações tranquilizadoras, sempre falsas, sobre os presos. Mas me bastava atravessar a rua e fazer as mesmas denúncias à CNBB, especialmente a dom Ivo Lorscheiter, secretário-geral da Conferência. Dom Ivo se enfurecia a cada caso levado e logo movia todos os seus contatos e advogados da CNBB. Seu perfil era oposto ao de dom Eugênio mas, de certa forma, os dois estilos se completavam.

Uma das atuações de grande destaque da trajetória de dom Eugênio foi quando, de maneira silenciosa, abrigou no Rio mais de quatro mil pessoas perseguidas pelos regimes militares do Cone Sul, entre 1976 e 1982. A maioria vinha da Argentina, mas havia também chilenos, uruguaios e paraguaios. Discretamente, o cardeal cultivou relações com os militares no poder no Brasil e ajudou a salvar vidas. O capítulo inicial dessa história se desenrolou num fim de tarde do outono de 1976, quando um jovem bateu na porta do Palácio São Joaquim, escritório e residência de dom Eugênio, na Glória. Sem documentos, dizia-se refugiado do regime militar instaurado seis semanas antes na Argentina. Dom Eugênio contou ter vivido um conflito.

“Foi um drama. Com o crucifixo na mão, eu pensava: “Como cidadão brasileiro, não posso receber montonero, tupamaro, aqueles refugiados que vinham (…)”. Em seguida, repensava: “Agora eu, como pastor, tenho o dever de receber”, relembrou ele, numa entrevista, na época.

O cardeal pegou o telefone, um instrumento de trabalho fundamental à sua ação política nos bastidores, e ligou para o general Sylvio Frota, então ministro do Exército.

“Chamei o Frota no telefone (…) e falei: ‘Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final’”, recordou.

Esse gesto acabou se transformando numa grande operação. Para dar conta de tantos pedidos de abrigo de refugiados políticos, dom Eugênio autorizou o aluguel de quartos e depois apartamentos. Foram 80 imóveis alugados em 14 bairros da cidade, como Centro, Lapa, Flamengo, Copacabana e Botafogo. Dom Eugênio mandou abrir os cofres da Mitra e liberou dinheiro também para gastos pessoais, assistência médica e auxílio jurídico. Em pouco tempo, o número de foragidos das ditaduras do Cone Sul chegando ao Rio chegou a 15 por semana.

A ajuda aos perseguidos políticos não se restringiu aos nossos vizinhos. Ajudou presos brasileiros, sem distinções ideológicas, como Sebastião Paixão, dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que foi mandado para o presídio da Frei Caneca após ser torturado por 83 dias. Num episódio significativo, dom Eugênio deixou embaraçado o general Abdon Sena, que lhe pediu uma missa pelo aniversário do AI-5…

“Vocês que estão satisfeitos com o AI-5 podem agradecer a Deus, mas não por meu intermédio”, respondeu.

*Helio Amorim é engenheiro, membro do Movimento Familiar Cristão (MFC). Seu depoimento é parte do especial Ecos da Ditadura, sobre os 50 anos do golpe militar

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