Esporte

O que a morte de Gabriela Anelli diz sobre a violência no futebol brasileiro

Morte de torcedora palmeirense é a oitava do gênero em 2023; CartaCapital conversou com Heloisa Reis, pesquisadora do tema

Créditos: Arquivo pessoal
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A morte de Gabriela Anelli, a torcedora do Palmeiras que foi atingida por uma garrafa de vidro antes do jogo entre o seu time e o Flamengo, em São Paulo, foi a oitava relacionada a brigas entre torcedores de futebol no Brasil em 2023. 

Casos como o da jovem de 23 anos despertam a comoção pública e movimentam, há décadas, o debate sobre a violência no ambiente futebolístico.

Para além das mortes, em si, brigas de torcidas – entre elas mesmas ou em confrontos com policiais – se repetem nos arredores dos estádios ou em pontos espalhados das cidades do país. Preferência nacional absoluta no passado, o futebol vem experimentando o crescimento do desinteresse da população. Pesquisas recentes do instituto Datafolha comprovam o fato.

A explicação envolve uma série de elementos – a dificuldade de acesso aos estádios, por exemplo. A violência, nesse conjunto, não passa despercebida. Após a morte de Gabriela Anelli, os três principais clubes paulistanos – Corinthians, São Paulo e Palmeiras – repudiaram o ocorrido, ressaltando que, diante da tragédia, o futebol deve ficar em segundo plano.

O ato de torcer é tão inerente ao futebol que, sem ele, o esporte se reduziria a uma mera prática técnica. Em que momento, porém, a paixão por um clube extrapola o afeto e descamba na violência? Como solucionar esse problema? 

Desde que entrou em vigor o Estatuto do Torcedor, em 2003, os torcedores passaram a ter que cumprir deveres estabelecidos em lei. Um deles impõe que membros das torcidas organizadas só podem entrar uniformizados e em partes específicas dos estados. 

De lá para cá, um conjunto de restrições tentou reconfigurar a presença das torcidas nos estádios, o que elas poderiam fazer e ao que não poderiam ter acesso. Garrafas de vidro, como a que foi arremessada na torcedora palmeirense, são proibidas em estádios.

Torcidas organizadas são agremiações. Servem para apoiar, mas, também, para criticar os clubes, quando discordam de decisões das diretorias, por exemplo. Recentemente, estiveram envolvidas na defesa do sistema democrático do país. Anelli era vinculada à torcida Mancha Verde, que esteve presente no enterro da jovem. Historicamente, porém, torcidas organizadas também estão ligadas a casos de violência. 

Jogos de futebol são eventos privados. O que acontece nos estádios, porém, assume uma dimensão pública: dias de jogo modificam as dinâmicas das cidades, definem as conversas cotidianas, acirram – para bem e para o mal – os ânimos de parte importante da população. Quando um caso de violência acontece nesse ambiente, a questão se torna ainda mais coletiva. 

Para entender se o Brasil vive um momento de crescimento da violência no futebol e quais os erros e acertos recentes do País nessa seara, CartaCapital conversou com Heloisa Helena Baldy dos Reis, professora da Unicamp e que, há décadas, pesquisa o tema. 

Confira a seguir.

CartaCapital: A violência no futebol persiste no Brasil? Por quê?

Heloisa Helena Baldy dos Reis: Até 2003, nós não tínhamos, praticamente, nenhum trabalho de prevenção [à violência no ambiente do futebol]. Até hoje, a gente, infelizmente, ainda pertence a um país que vê o problema da violência no futebol como um problema de polícia e repressão, somente. É uma parte da política, mas, só com isso, a gente nunca vai resolver totalmente o problema. Eu acho que, recentemente, aumentou a violência. 

No final de 2014, quando se decide, no governo federal, que o ministro Aldo [Rebelo, ex-ministro dos Esportes] deixa o Ministério e entra o ministro George [Hilton, também ex-ministro dos Esportes], ali já tem uma grande ruptura com a política nacional que vínhamos desenvolvendo, que foi sugestão minha. Isso explica um pouco o retrocesso que nós tivemos. De lá para cá, houve um desprezo às políticas de Estado sobre o tema. 

Soma-se a isso o incentivo, nos últimos anos, à arma de fogo. Isso é uma realidade que não acontece, por exemplo, na Europa.

CC: O que os países que, atualmente, têm baixos índices de violência no futebol fizeram para resolver o problema?

HHBR: Eles levaram a sério esse problema e fizeram políticas nacionais centralizadas no governo federal, obviamente, e que têm ramificações nos governos estaduais e municipais. E, também, responsabilizando os clubes, as federações e as confederações. Esse é um evento de organização privada, mas de interesse público. 

CC: Desde que o Brasil foi escolhido para sediar a Copa de 2014, vários estádios se tornaram “arenas”. Uma das promessas era garantir ambientes mais seguros. Funcionou?

HHBR: A arenização foi uma desculpa para tirar as classes mais pobres dos estádios. Foi uma medida econômica e que tem, também, um aspecto que contraria a intenção. O raciocínio é: “eu vou elitizar pensando que membros da elite não vão brigar”. Só que foi comprovado que brigam. Você tem um monte de episódios de pessoas que não são das classes mais pobres e cometeram violência. A arenização serviu para encarecer os preços dos ingressos e dar uma falsa sensação de segurança. 

Esse processo, porém, não foi totalmente falho. Um exemplo foi fazer com que as arquibancadas dos estádios passassem a ter cadeiras. Os estudos comprovam que a chance de violência diminui com essa medida. Outra medida, inspirada no que foi feito na Europa, foi a adoção do sistema do circuito fechado de televisão, que filma o interior do estádio. O problema no Brasil, porém, foi que a maioria dos clubes deu as centrais de monitoramento para empresas particulares trabalharem e gerenciarem as imagens. A imagem tem que ser utilizada para ajudar no trabalho da segurança pública. Houve, na minha percepção, uma deturpação completa. 

CC: Desde 2016, os jogos entre os quatro principais clubes de São Paulo devem ser realizados com torcida única. A morte de Gabriela Anelli aconteceu em um jogo que não impunha essa necessidade. A torcida única diminuiria a violência nos estádios?

HHBR: Essa medida é ineficaz. Ela não traz vantagem para absolutamente ninguém. A imposição da torcida única transferiu as brigas para fora dos estádios. 

Ao estudar o tema, in loco, na Espanha, a gente se deparou com o que a Espanha chama de torcida única. Lá, a torcida única não é a proibição de que entre torcedores de outro time. 

A torcida única quer dizer, por exemplo, que torcedores do Real Madrid, em clássicos em Barcelona, só podem ir em pequenas quantidades. Isso facilita o ato de escoltar o grupo de torcedores. No Brasil, se os torcedores moram em São Paulo, não importa se o jogo vai ser no Morumbi, no Allianz Parque ou em Itaquera. 

Os empresários do futebol, na verdade, estão dando um tiro no pé. À medida que não podemos mais levar os nossos filhos e netos aos estádios, estamos deixando de perpetuar a cultura torcedora nessas novas gerações. 

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