Opinião

O exército do crime organizado

O encarceramento em massa só contribui para o fortalecimento das facções

Apoie Siga-nos no

Diversos meios de comunicação noticiaram os resultados pífios da intervenção federal no Rio de Janeiro,  o que se verifica  por fatos e índices, não obstante a negativa dos interventores.

De fato aconteceu o que todos aqueles que se interessam pelo tema da segurança e o abordam com racionalidade sabiam e haviam anunciado. Tratou-se de medida populista, vazia de sentido real, ato de marketing, não de gestão publica.

A violência no Brasil tornou-se um gravíssimo problema público, embora os índices de homicídio desde o inicio dos 2000 tenham perfil vacilante quando vistos ano a ano. Desde o fim dos 80 até os dias de hoje, traduzem um sentido de aumento, conformando números próprios de uma guerra e não de criminalidade comum

As causas de mais de 60 mil mortes ao ano são diversas e complexas, mas a observação do paulatino aumento das mortes a par da intensa elevação do encarceramento a partir dos anos 90 permite formular duas proposições.

Leia também:
Judiciário inocenta juíza que mandou prender advogada negra
A ponte dos horrores

Primeira: todos os dados e pesquisas criminológicas sérias demonstram a intensa relação entre desigualdade social e violência. Ninguém que procure indagar das causas da selvageria pode olvidar deste aspecto fundante

Segunda: a desigualdade social não é causa isolada da violência. Figura como outro motivo relevante a adoção, pelo Brasil, de política pública inspirada no programa norte-americano de guerra às drogas, por meio da realização de encarceramento massivo de nossa população jovem, pobre e, em geral, negra.

Com o aumento de consumo de cocaína nos EUA e Europa nos anos 80, o Brasil transformou-se num dos maiores polos de distribuição da droga, conforme apontam diversos estudos a respeito. Isso resultou na criação de um grande mercado interno de consumo, não contando o País com condições orçamentárias e estruturais para reprimir adequadamente tal fluxo de distribuição nem o consumo interno.

Mesmo assim, em vez de cogitar outras medidas, a guerra às drogas é adotada como política, entremeada por uma visão formada por afetos e um moralismo primitivos, mais do que por qualquer reflexão racional.

O encarceramento em massa, em vez de mitigar a violência social e a criminalidade, as implementam e amplificam.

O aprisionamento de milhares de jovens pobres, por crimes de baixo potencial ofensivo, em geral de pequeno tráfico ou de caráter patrimonial de menor valor, a maioria sem direito prévio a defesa, usando o encarceramento preventivo como inconstitucional forma de controle social, de fato traz como principal consequência a formação, nas prisões, sob tutela estatal, portanto, de um exército para o crime organizado

A política pública de encarceramento massivo serviu para o fortalecimento do crime organizado, foi seu principal veículo de recrutamento. Ao ingressar na prisão, o jovem não tem outra alternativa. Para manter sua vida e integridade física, precisa se filiar a uma das organizações criminosas que controlam o presídio

De pequeno traficante ou ladrão, torna-se perigoso homicida, disposto à guerra contra organizações diversas da sua ou contra a polícia, nossa polícia, a que mais mata e morre no mundo.

O Brasil, nunca é demais repetir, aprisiona muito e mal. E remunera indecentemente seus policiais.

A solução de tal problema certamente demandará reflexão e medidas mais complexas que o simplismo de senso comum que orientou sua causa. O primeiro passo é reconhecer que a tal guerra ao crime serve mais para angariar votos do que para resolver tão complexo problema social.

Medidas de curto, médio e longo prazo terão de ser adotadas, sujeitas ao crivo de avaliação racional de resultados, mas creio que certamente deverão contemplar iniciativas que em nada agradarão ao senso comum.

Estão entre elas a redução de condutas penalmente tipificadas, para que os órgãos repressivos possam se focar nos crimes violentos,  libertação de prisioneiros ainda não condenados que tenham cometido crimes de baixo potencial ofensivo, em especial mulheres mães. Cada mãe aprisionada por crime não violento destina seus filhos ao cometimento futuro de crimes. Prende-se uma, condena-se alguns

Nossas prisões, além de abrigos de intensa vileza moral, por tratarem de forma integralmente desumana e degradante os cidadãos, precisam ser esvaziadas para deixar de ser berçários da violência.

No Brasil não se prende o criminoso violento, ao contrário do que acredita a opinião pública. Nossos aprisionados, em sua maioria, são acusados de crimes de menor relevo e parte muito significativa das investigação de homicídio não resulta na identificação de autoria

Certamente não são medidas que trazem votos, mas a sociedade precisa ser informada sobre a realidade social da violência, sob um ponto de vista racional, pois no plano político urge combater o populismo punitivo, cujo único sabido resultado sempre será o de agravar o problema, nunca soluciona-lo.

Nenhum candidato aborda tal tema, embora todos conheçam os dados e pesquisas. Natural, todos desejam se eleger, afirmações viris, de tom violento que faz transparecer sinceridade ao ingênuo, simplificadoras da complexidade do real, são mais encantadoras do que analise de estatísticas, oitiva de policiais e profissionais da segurança pública, estudo de pesquisas interdisciplinares etc.

Quem tem um mínimo de maturidade e razoabilidade sabe que questões complexas são resolvidas por reflexões longas, monótonas, verificadas no mundo da experiência, sujeitas a erros de percurso que exigem sua correção.

Quanto à opinião publica, cunhada por afetos primitivos, nossos candidatos e governantes devem se lembrar que a virtude maior do estadista é a coragem.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.