A ponte dos horrores

O aplicativo toca pela oitava vez naquele dia. Aparentemente é só mais uma segunda-feira e lá vou eu buscar a Camila.

Camila é uma daquelas passageiras que dá gosto de conversar. Jovem, cheia de amor pelo seu namorado e esbanjando vida. Mal sabia ela que caminhávamos em direção à morte, senão à morte da vida, à morte da empatia.

Saímos do endereço inicial e em três minutos estávamos na Terceira Ponte, principal ligação entre Vila Velha e Vitória, a capital do Espírito Santo. Sou obrigado a parar um quilômetro à frente por causa de uma interdição. Depois de cerca de três minutos parado, peço licença a Camila para sair do carro e verificar o que se passa.

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Logo à frente vejo um jovem senhor pendurado na ponte. Apenas 10 carros na minha frente. Uns 200 metros me separam daquele homem, além de uma viatura da PM e uns 20 curiosos fora dos carros.

A sensação é de desespero, medo e algumas outras indescritíveis ao ver a cena. Ainda meio chocado com tudo, acompanho a chegada dos bombeiros, que de maneira eficiente isolam o local e iniciam a “negociação”.

São exatamente três e meia da tarde. A fila de carros começa a aumentar. A cena, antes lamentável, torna-se desumana, quase indescritível.

Quarenta minutos de espera. Os motoristas começam a fazer amizades, enquanto se multiplicam as lives, postagens e piadas. Estranho… No entorno de um homem que tenta tirar a vida, se apartar da sociedade, germinam as interações sociais. Não há silêncio , empatia ou preces. Ouço buzinas. Sim, alguém está impaciente.

Sociólogos e psicólogos poderão discorrer a respeito. A buzina foi a senha, a força motriz, a faísca que faltava para o caos. Resumo o show de horrores que durou cinco horas, até a ponte ser liberada.

A buzina estimula uma sugestão: “Pula, vai, que boi tem asas…” Diante da recepção positiva de parte da plateia, o humorista prossegue e ganha seguidores.

“Se quiser eu te empurro.”

“Pula daí, macaco.”

“Ah, se eu tivesse uma arma, eu mandava um tiro daqui mesmo.”

“Dor de corno.”

“É falta de sexos”

“Chama o Bolsonaro (enquanto faz um gesto de arma)”

“Se mata, mas nao ferra a minha vida.”

Nada foi dito na surdina, mas em alto e bom som.

Andei pela ponte, queria ouvir, acompanhar as reações. Alguém me sugere: “Fortão, vai lá e empurra ele logo”.

A Camila preferiu ficar no carro a maior parte do tempo. Ela disse não ter estrutura para aguentar certas declarações.

Em uma roda, o assunto era política, na outra, futebol. Em uma terceira, o dono de uma BMW discorre: “Gente, tá na cara que é morador de rua. Dá um tiro no pé dele. Se ele cair para frente tá salvo. Para trás, morreu, menos um bandido no mundo”.

O “suicida”, por ser negro e mal arrumado, havia sido sentenciado.

Dois cobradores de ônibus sugerem: “Bora furar o cerco e empurrar ele”. “Prefiro orar”, retruca um senhor.

Às oito da noite, um homem é preso por tentar furar o cerco. A PM recorre a bombas de gás. De repente, irrompe o coro: “Puuula… Puuuula… Puuuula”.

Basta? Não. Moradores de prédios nos arredores da ponte começam a soltar fogos na direção do homem pendurado. De uma janela, alguém direciona uma espécie de sinalizador em direção aos olhos do desesperado. Na ponte, até quem usava fitas amarelas, para lembrar, triste coincidência, do Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, protestava.

Uma bombeira se prepara: “Vou fazer de tudo, ali está uma vida. Sei que vocês estão cansados de esperar na ponte, mas nao vou desistir. É uma vida…”

Às 20h40, a ponte é liberada. Deixo Camila em casa às 20h55. Paro de trabalhar às 21h30. Às onze e vinte da noite ouço a notícia de que o homem foi retirado da ponte. Com vida.

* Pastor, estudante de Ciências Sociais e motorista de aplicativo