Saúde

O comércio fala mais alto no combate à Covid-19 nas cidades

A pressão dos comerciantes funciona e os prefeitos encontram mais dificuldades para impor as medidas de isolamento

Foto: Daniel Texeira/Estadão Conteudo
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Na quarta-feira 3, o governador paulista João Doria anunciou a suspensão da fase vermelha, de rígidas restrições à circulação e ao funcionamento do comércio e dos serviços. As medidas, que estabeleceram o lockdown diário entre as 8 da noite e 6 da manhã, e durante as 24 horas nos feriados e fins de semana, duraram apenas uma semana. O recuo nada tem a ver com a melhora nos indicadores de contágio, internações e mortes.

Ao contrário, a Covid-19 continua progredindo de forma acelerada no estado, bem como no resto do Brasil. O que pesou foi a pressão dos empresários, pequenos e grandes. Após uma sequência de protestos e dos temores de uma nova onda de quebradeira no setor privado, Doria cedeu à tese do hoje adversário Jair Bolsonaro de que a economia vale mais que a vida. Em entrevista na terça-feira 2, o tucano contou sofrer ameaças por causa do endurecimento das regras de isolamento.

Em meio à alta de casos, o País enfrenta uma mutação do vírus descoberto no Amazonas

Nem a variante brasileira do vírus, chamada de P1, cujo poder de transmissão é muito maior, assusta a população. Em Belo Horizonte, o comércio voltou a abrir neste início de fevereiro, após o prefeito, Alexandre Kalil, ter decretado a interdição das atividades não essenciais em 11 de janeiro. A cidade começou o segundo mês do ano com permissão para abrir museus, clubes, academias, cinemas, teatros, shoppings e feiras, além de bares e restaurantes – desde que a venda de bebidas alcoólicas aconteça apenas das 11 da manhã às 3 da tarde. O comércio varejista não essencial pode funcionar das 9 da manhã às 8 da noite, mas é obrigado a adotar medidas como o uso de máscara e o distanciamento social no caso de bares e restaurantes.

Depois da terceira fase de restrições em BH, Kalil pediu desculpas por ter sido obrigado a fechar o comércio e disse que a queda nos índices de mortes e infectados na capital mineira justificam a suspensão das medidas.  A ocupação dos leitos na cidade estava, no entanto, em 76,4% em 28 de janeiro, porcentual considerado de alerta vermelho pelos especialistas. Em uma cena comum em todo o país, BH, que acumula mais de 91 mil casos de Covid-19 e 2.282 óbitos até a segunda-feira 2, conviveu com os protestos de lojistas. Apesar das aglomerações provocadas pelos agrupamentos, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve o direito às manifestações. 

No cabo de guerra entre prefeituras e comerciantes, João Ricardo Costa Filho, economista e professor da Fundação Getulio Vargas, resume o embate pela lei do mais forte. “Parece uma questão de quem grita mais alto. Os governos estão com dificuldades diante da pressão dos comerciantes e agora a única saída parece ser a vacinação”, afirma Costa Filho. Segundo o professor, o constante “abre e fecha”, desde o começo da pandemia, contribuiu para uma situação de pouco controle e baixa eficácia das medidas, de modo que era preciso ter feito, no início, um fechamento bem mais rigoroso, mas de menor duração.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Foto: GOVSP

Da maneira como as restrições aconteceram, afirma Costa Filho, o comércio sofreu por mais tempo e agora luta desesperadamente pela sobrevivência. “O setor de bares e restaurantes, por exemplo, tem um bom poder de barganha, porque consegue se organizar melhor e pressiona com uma eficácia que nem todos os outros serviços conseguem.”

Ainda segundo o economista, identificar e socorrer especificamente os segmentos mais atingidos com linhas de créditos a juros baixos, além de estender o auxílio emergencial, seriam respostas eficientes para os comerciantes, que projetam um ano bem ruim economicamente. A economia, avalia, deve apresentar alguns sinais de melhora neste ano, mas insuficientes para reverter os danos. “É provável que teremos uma massa enorme e não computada de desempregados quando a pandemia acabar.”

Sem saber como serão as novas fases da vacinação, por falta de matéria-prima e planejamento, o Brasil ainda se vê diante de um novo desafio: pesquisar e entender o comportamento da P1, a variante da Covid-19 encontrada em Manaus. Os especialistas em sequenciamento genético correm para desvendar o DNA da mutação. Com alterações na espícula, proteínas que se ligam aos receptores das células humanas, essa versão tem maior poder de transmissão, uma vez que consegue aderir mais facilmente à parede celular.

Ainda que não haja provas sobre o aumento da letalidade na P1, sua capacidade de propagação tende a induzir uma difusão acelerada da doença, segundo se descobriu até agora no sequenciamento do material colhido no Amazonas. Do total de 35 amostras sequenciadas em janeiro, 91,4% continham a variante. A mutação, tudo indica, espalhou-se durante as aglomerações de fim de ano e do início do verão, e está associada à tragédia sanitária no estado. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a P1 foi encontrada até agora em sete países além do Brasil e registra ao menos um caso de reinfecção causada pela cepa. “Não há como esconder, estamos muito preocupados”, diz José Eduardo Levi, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo, que trabalha no sequenciamento genômico do vírus.

 

Segundo Levi, a crença de que Manaus atingiria certa “imunidade de rebanho” foi solapada pela alta quantidade de moradores que se acredita estarem infectados com a nova variante. “Há três hipóteses: ou o nível de anticorpos dos infectados caiu, ou a variante é capaz de escapar da resposta natural do organismo, ou os atingidos agora pela variante não tinham contraído o vírus antes.” 

Também à frente do sequenciamento genético do vírus pelo Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia), o virologista Felipe Naveca lembra que a variante ainda não foi descrita como resistente às vacinas em uso no País. Além disso, aponta o especialista, os métodos diferentes utilizados nos imunizantes podem ser suficientes para combater a P1.“Algumas vacinas, como a de Oxford e da AstraZeneca, induzem à resposta celular, não só à resposta de anticorpos, o que pode ser suficiente para as novas variantes.”

São necessárias, no entanto, mais análises para entender a quais resultados certas mutações podem levar, além de descobrir se a variante P1 tem maior ressonância em certos grupos, o que depende do cruzamento de dados. Além do Coronavírus amazônico, outras duas mutações com maior poder de transmissão também preocupam a comunidade científica, a N501Y, descoberta na África do Sul, e a B.1.1.7, encontrada no Reino Unido. A melhor resposta, dizem os especialistas, seria a vacinação em massa. Mas a alternativa continua a ser uma miragem no Brasil.

Publicado na edição nº 1143 de CartaCapital.

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