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O agro não poupa ninguém

O setor que mais cresce no País busca exercer sua influência não apenas na política, mas também na cultura e na sociedade

Ana Castela orgulha-se de ser “boiadeira”, enquanto a dupla Leo & Raphael comemora a ascensão social “dos menino da pecuária” – Imagem: Redes sociais
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Ana Flávia acabou de sair da adolescência, tem apenas 19 anos, mas já é considerada um fenômeno da música pop no Brasil, chegando a ter sete músicas entre as 50 mais tocadas no Spotify, muitas vezes ocupando o primeiro lugar no ranking da plataforma. A fazendeira patricinha do sul-mato-grossense agora reivindica a alcunha de boiadeira, deixando para trás o nome Flávia e se assumindo como Ana Castela, Prêmio Revelação Multishow de 2022. Principal artista do “agronejo”, uma variação da música sertaneja, Castela é uma espécie de embaixadora do mundo rural, porta-voz do agronegócio, uma voz feminina que fura a bolha do campo e dialoga com muita facilidade com o mundo urbano. Além da jovialidade e estilo descontraído, a cantora agrega à suas canções ritmos consagrados nas grandes cidades como o funk, o rap e o batidão da música eletrônica, além do arrocha e ritmos latinos como o ­reggaeton. Mas a inovação não para por aí. Entre uma música romântica e outra, a artista traz em suas letras uma verdadeira ode ao Brasil profundo, ao orgulho de ser do interior, à ostentação dos ricaços da roça e ao estilo de vida dos jovens herdeiros do agronegócio. Tudo isso sem deixar de desejar o luxo dos grandes centros urbanos.

Não é porque eu sou da roça que eu não rodo no asfalto/ eu posso até andar de carro, mas prefiro o meu cavalo/ não é porque eu gosto de bota que eu não posso andar de salto/ eu gosto do cantar do galo, mas prefiro som no talo/ DJ, essa batida tá espetacular, canta Castela, em um trecho da música Néon. A boiadeira é o carro-chefe da Agroplay, produtora do Paraná que a descobriu e a lançou no mercado da música. A empresa desenvolve seu trabalho com um claro direcionamento ideológico na sua produção artística. Os jovens cantores patrocinados emprestam sua voz e carisma para vocalizar uma “realidade” que tende a conquistar mentes e corações em prol do campo. Os próprios sócios da Agroplay, Raphael Soares e Rodolfo Alessi, são cantores sertanejos e autores de músicas ufanistas em relação ao agronegócio.

No topo das paradas do Spotify, o agronejo celebra a “vitória da roça” e ostenta a riqueza dos agroboys

Canções como Hino Agro ou A Roça Venceu mostram não apenas um campo promissor, mas rivalizam com a cidade grande, tentando se mostrar superiores aos grandes centros, uma guerra cultural entre agroboys e playboys. A pesquisadora Ana Manoela Chã, autora do livro Agronegócio e Indústria Cultural – Estratégias das Empresas Para a Construção da Hegemonia, explica que a modernização do campo foi transportada para a comunicação, seja na publicidade, seja nos programas televisivos ou na música. “As raízes caipiras que tinham inspiração num interior bucólico e atrasado foram perdendo espaço para um campo que se tecnificou. Se a gente pode olhar para a agricultura como um grande show, com maquinários, grandes extensões de plantações da mesma cor, com desenhos que podem ser vistos de avião e que têm formas geométricas curiosas, o sertanejo trouxe isso também para a música, essa coisa eletrificada do grande show que hoje se faz dentro da plantação de milho transgênico. Do ponto de vista cultural, o agronejo se apresenta como um porta-voz do agro.”

A historiadora Heloísa Starling, professora da UFMG e coautora do livro Brasil: Uma Biografia, diz que a música sertaneja expressa um conjunto de imaginação e valores do interior, mas que produz também caldo ideológico reacionário vinculado ao mundo do agronegócio. Ela lembra que muitos dos compositores ou são ou se tornaram proprietários de terra. “É como se a gente tivesse um novo recorte na música sertaneja, que não trata mais as dores de amor, nem o caipira, nem o trabalhador. Expressa um caldo ideológico. O agronegócio não está preocupado com o bem comum, quer viabilizar o seu interesse. Está organizado politicamente e precisa também se organizar no campo cultural. Por isso a canção é tão importante como veículo de transmissão de pensamento e de ideias”, avalia. “Existe uma necessidade de limpar a imagem daquilo que era o latifúndio atrasado e trazer o moderno representado pelo agronegócio”, completa Ana Chã.

Lula destinou ao Plano Safra um volume de recursos quase 27% superior ao do último ano de Bolsonaro. Ainda assim, os empresários do setor preferem convidar o ex-capitão para as festas – Imagem: Alan Santos/PR e Cláudio Neves/Portos do Paraná/GOVPR

Sobre o quanto o agro tem influenciado o estilo de vida social, a socióloga Maria Eduarda da Mota Rocha, pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco, diz ser preciso considerar uma relação de consumo hierarquizada por classe. “Se eu fosse fazer um estudo desse estilo de vida, começaria com o lugar do automóvel. Qual o lugar da caminhonete no ideário dessas pessoas e como é que isso vai se configurando ao longo do tempo?”, questiona. De fato, dentro do discurso entusiasta do agro, as letras do agronejo retratam uma ostentação vivida pelas camadas mais abastadas e movimentam o mercado de luxo. Um exemplo é o aquecimento da comercialização da picape Dodge­ RAM, personagem constante das canções. Não por acaso, as vendas dessas caminhonetes cresceram mais de 500% no primeiro trimestre deste ano. O modelo top de linha ultrapassa a casa dos 500 mil reais. “Essas pessoas se situam nas frações ricas em capital econômico e pobres em capital cultural.”

‟Esse modo de vida de ostentação me parece ser uma tentativa de disputar ideologicamente o espaço pela imagem. Na era das redes digitais, da comunicação midiática, a disputa vai ser nas imagens, a partir do poder de construir narrativas benéficas sobre si. O agronejo e o agronegócio têm uma relação temática e de imagem muito forte. As músicas têm clipes que viralizam, o que também implica uma adesão ideológica”, analisa Thiago Soares, professor da Universidade Federal de Pernambuco, coordenador do grupo de pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop. O agronejo é especialista em explorar o imaginário e não hesita em retratar certa pujança do interior puxada pelo agro. A canção Os Meninos da Pecuária, por exemplo, cita: Não é à toa que o PIB começa com P de pecuária. Não fala, porém, dos incentivos que o setor recebe do governo federal.

O Plano Safra prevê o aporte de 364,22 bilhões de reais para financiar o agronegócio, que cresceu 21,6% no primeiro trimestre

O PIB do setor agropecuário realmente registrou, no primeiro trimestre deste ano, o maior crescimento desde 1996, alcançando 21,6%, quase 20 pontos acima do índice nacional, que foi de 1,9%. A expectativa é de que o PIB do agro em 2023 chegue a 2,65 trilhões de reais, quase 36% a mais que no ano passado, segundo previsão da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. “Olhando as áreas litorâneas, que outrora eram o centro da base industrial mais moderna do País, onde havia os melhores empregos, os melhores centros de ensino, hoje, de maneira geral, essas faixas litorâneas concentram o atraso. É aí que está localizado o maior número de desempregados, de moradores de rua, de dependentes de programas sociais. São áreas que padecem com o impacto da desindustrialização”, analisa Marcio­ ­Pochmann, economista e professor da Unicamp. Esse cenário pode até colocar o interior na vanguarda econômica do ­Brasil, mas não o suficiente para conduzir os ruralistas ao status de burguesia, ainda concentrada nos grandes centros urbanos.

“O peso do agro na geração da riqueza é uma coisa, não significa a apropriação da riqueza. Se a gente for atrás da grande burguesia brasileira, provavelmente vai ver que ela ainda está na cidade de São Paulo. Essa grande burguesia se apropria da geração da riqueza através do mercado financeiro, não precisa produzir soja, nem laranja, nem cana. Ela não precisa produzir absolutamente nada. Precisa só do Roberto Campos Neto no Banco Central. Se for para situar o agronegócio dentro da burguesia, eu o colocaria na condição de uma espécie de baixo clero”, opina Rocha.

Arte: Regina Assis

Marcela Teles, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, diz que a migração econômica da cidade para o interior influenciou a música sertaneja. “A canção caipira originária de São Paulo vai acompanhando o movimento de expansão dos negócios para o interior do Brasil. Se você for recuperar essa música sertaneja, as paisagens que ela narra, canta e os ritmos que desenha, vai encontrar quase que um mapa da expansão dos empresários paulistas para o interior do Brasil”, destaca Teles, autora do livro Canção Sertaneja e Legislação Agrária Durante a Ditadura Militar, que deve ser lançado ainda neste ano. “Você tem a decadência da cultura brasileira de maneira geral e isso tem a ver com o sentido que a produção urbana vem se reproduzindo no Brasil. Por outro lado, existe uma tentativa de recuperar valores próprios, porque somos uma população com alguma identificação com o campo. Somente após a década de 1970 o Brasil se torna urbano”, diz Pochmann.

Essa migração do urbano para o interior está retratada no Censo 2022. No Centro-Oeste, região onde há a maior concentração do agronegócio, o crescimento populacional foi de 1,23% ao ano, quase três vezes mais que o índice nacional, de 0,52%. Em Abadia de Goiás, o crescimento chegou a 178%. O mercado imobiliário no estado está aquecido e faturou 5,1 bilhões de reais em 2022, quase 9% a mais do que no ano anterior. Na capital Goiânia, a procura por imóveis comerciais deu um salto e o metro quadrado pode chegar a 15 mil reais. É também no Centro-Oeste, mais especificamente em Mato ­Grosso, que está o maior produtor agropecuário do ­País, gerando uma receita de 204 bilhões de reais. Líder mundial na produção de soja, o Brasil produziu mais de 150 milhões de toneladas na safra 2022/2023.

As vendas das caminhonetes Dodge RAM, celebradas nas músicas do agronejo, cresceram 519% no primeiro trimestre deste ano – Imagem: Ram/Brasil

No fim de junho, o governo federal anunciou o novo Plano Safra 2023/2024, com o aporte de 364,22 bilhões de reais para financiar o agronegócio, valor quase 27% maior que aquele destinado em 2022. Para a agricultura familiar, o plano vai investir 77 bilhões de reais, com taxas de juros menores para o financiamento de pequenos agricultores. “Se enganam aqueles que pensam que o governo vai fazer mais ou fazer menos porque tem problemas ou não problemas com o agronegócio. A cabeça de um governo responsável não age assim, a cabeça de um governo responsável não tem a pequenez de ficar insultando, insuflando o ódio entre as pessoas. Este país só vai dar certo se todo mundo ganhar”, ressaltou Lula ao lançar o Plano Safra. O discurso do presidente é um recado direto ao agronegócio, majoritariamente bolsonarista e identificado com a extrema-direita. Uma parcela, inclusive, está envolvida com os atos golpistas do 8 de janeiro.

A força do agronegócio é perceptível no Congresso Nacional. A bancada ruralista é uma das mais estruturadas, com 57 deputados e 24 senadores. A Frente Parlamentar da Agricultura, por sua vez, reúne 300 participantes. “A bancada coloca-se como anti-PT para se justificar junto ao seu eleitorado. É um discurso para as redes sociais. Os moderados da bancada dialogam e negociam muito bem com o governo Lula”, explica André Santos, analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e diretor da Contatos Assessoria Política. Santos ressalta a profissionalização da frente, pensada para atender a um projeto político e econômico do setor agropecuário. “A estrutura é tão robusta que um parlamentar que faz parte da frente recebe uma lista de propostas que estão em tramitação em determinadas comissões, e aí tem lá a indicação de como votar, se é para retirar de pauta ou emendar. Com essa profissionalização, a bancada ruralista ampliou a presença no Legislativo e ganhou força para pressionar o Executivo. Isso acaba refletindo em políticas públicas que geram benefícios para o setor.” Não por acaso, os parlamentares dessa frente lideram a agenda antiambientalista e anti-indigenista no Congresso Nacional, pautas que vinculam o agro a Bolsonaro. Essa associação ao ex-presidente está presente ainda nos eventos de entretenimento.

Com 300 integrantes, a Frente Parlamentar da Agricultura lidera a agenda antiambiental no Congresso Nacional

Considerada a maior feira agrícola da América Latina, a Agrishow deste ano, realizada no início de maio em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, optou por levar Bolsonaro ao evento, em detrimento de Carlos Fávaro, ministro da Agricultura de Lula. O mal-estar fez o governo retirar o patrocínio do Banco do Brasil à feira e o ministro ameaçar não comparecer ao evento, onde o ex-capitão chegou a ser ovacionado pelo público, majoritariamente bolsonarista. Em um show de Ana ­Castela em Santa Fé do Sul, também no interior paulista, um dia antes do primeiro turno das eleições do ano passado, um telão sugeriu ao público uma contagem regressiva para a cantora subir ao palco. Ela começava pelo número 22, o mesmo de Bolsonaro nas urnas. Ao som de música ufanista, a regressão numérica seguiu e, quando chegou no 13 (número de Lula nas urnas), o telão exibiu “12+1”. A cena gerou enorme repercussão. Ao cabo, a cantora negou fazer campanha para o ex-capitão e responsabilizou os organizadores do evento.

Gustavo Alonso, pesquisador e professor do curso de comunicação do campus Agreste da UFPE, é cauteloso ao atrelar a música sertaneja a Bolsonaro ou à extrema-direita. Segundo ele, a vertente “está onde o Brasil está”, e a prova está no fato de ser o ritmo mais tocado no País. Diz ainda não haver unanimidade entre os artistas desse estilo. A classe artística está rachada ideologicamente, assim como o Brasil e as famílias. “A direita fica falando que a música sertaneja a apoia e a esquerda reforça, dizendo que os cantores estão do lado de lá. Os dois lados enxergam isso, mas não é bem assim. A música sertaneja está rachada, como o País também está.” O pesquisador lembra que a cantora ­Marília ­Mendonça, falecida em 2021, chegou a engrossar o cordão do #EleNão em 2018.

Arte: Regina Assis – Imagem: Redes sociais

Enquanto artistas como Gusttavo­ ­Lima, Leonardo, Zezé Di Camargo, ­Chitãozinho e Sula Miranda declararam apoio a Bolsonaro, outros nomes de peso preferiram não se posicionar. Alguns fizeram questão de expor o racha dentro da música sertaneja. Xororó não declarou apoio a Lula, mas disse estar ao lado da “democracia”. Júnior (da antiga dupla com Sandy) se posicionou nas redes sociais pelo “fora Bolsonaro”. João Guilherme, filho de ­Leo­nardo, pediu desculpa pela opção política do pai. Em 2002, a própria dupla Zezé Di Camargo e Luciano emprestou sua voz para a campanha vitoriosa de Lula, ainda que em troca de uma pequena fortuna.

É bom destacar que dentro da música sertaneja há um movimento que defende pautas progressistas, sem falar que o conservadorismo do agronegócio se dá basicamente no campo da economia. Nas pautas morais, o rural moderno do agronegócio não abraça o radicalismo dos bolsonaristas ou evangélicos. Tanto que no próprio agronejo é possível encontrar canções que defendem a emancipação da mulher, a exemplo da música Dona de Mim, de Ana Castela: Eu criei filha minha pra ser boiadeira/ na volta desse mundo, não ficar por baixo/ Não vai ter frescurinha pra abrir porteira/ e nunca nessa vida depender de macho. Inspiradas em Ana Castela, muitas meninas do Brasil profundo se aventuram na música ou no mundo de influenciadores digitais, com pautas femininas, movimento chamado de “feminejo”.

No universo masculino e machista do interior começa a surgir espaço também para o movimento agrogay, personificado na figura do influencer e apresentador Odorico Reis. “Não acho que está tudo dominado, está ainda em disputa. Agora, para fluir na disputa, precisa ouvir esses caras com atenção, com empatia, e não os jogar no colo da direita. Se a gente carimba isso, aí é que eles vão virar mesmo de direita. É preciso estar aberto para dialogar com o diferente”, sugere Gustavo Alonso. •

Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.

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