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Nem Freud explica

Após acusação de estupro de vulnerável, Gabriel Monteiro reforçou a legião de seguidores nas redes sociais e será puxador de votos para o PL no Rio

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“Fenômeno”. Bezerra ganhou 10 mil seguidores após a divulgação do crime na mídia - Imagem: Reginaldo Pimenta/Ag.O Dia/Estadão Conteúdo
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Catapultado à condição de “celebridade nacional” assim que vieram à tona os crimes em série que protagonizou, o influenciador digital e agora ex-vereador carioca Gabriel Monteiro, do PL, foi cassado na última semana com os votos de 48 de seus colegas. “Tirar meu mandato, senhores, é decretar a minha morte”, disse, com os olhos marejados, ao plenário. Nada poderia estar mais longe da verdade. Apesar dos episódios de estupro de vulnerável, assédio sexual e exploração e exposição de crianças pobres e pessoas em situação de rua nas redes sociais, crimes elencados pela Comissão de Ética da Câmara dos Vereadores do Rio, Monteiro não tem motivos para choramingar, já que é candidato a ­deputado federal e, segundo estimativas de seu partido, deverá ser o puxador de legenda e obter algo em torno de meio milhão de votos.

Com a bênção do clã Bolsonaro (é amigo de Carluxo), Monteiro apoia-se nos espantosos 4,4 milhões de seguidores no Instagram, número que quadruplicou desde que foi eleito há dois anos pelo PSD, quando ainda era policial militar e foi o terceiro candidato a vereador mais votado no Rio. Curiosamente, cerca de 1 milhão de seguidores chegaram ao rebanho após terem se multiplicado as comprovações dos crimes cometidos por Monteiro, que, entre outras coisas, filmou relações sexuais com uma menina de 15 anos, vídeo que, em outra demonstração nada nobre da natureza humana na internet, viralizou nas redes sociais.

youtuber não está só. O anestesista Giovanni Bezerra, flagrado ao estuprar uma paciente, e o agressor DJ Ivis também ganharam milhares de fãs

Mas o que explica a atração de parte dos brasileiros por agressores, predadores sexuais e afins? Vale dizer que, no quesito número de seguidores, o ex-vereador não está sozinho. Outro exemplo recente e estarrecedor é o anestesista Giovanni Quintella Bezerra, flagrado ao estuprar uma paciente durante o parto em um hospital do Rio e em seguida acusado do mesmo crime por diversas outras pacientes. Após ganhar 10 mil novos seguidores no dia seguinte à divulgação do crime na mídia, ele teve o perfil desativado pelo Instagram antes que virasse um novo “fenômeno”.

A lista não é pequena. O músico ­Iverson de Souza Araújo, conhecido como DJ Ivis, protagonista no ano passado de um vídeo no qual agride a mulher na frente da filha, ganhou 300 mil novos seguidores desde o ocorrido e hoje totaliza 1,1 milhão no Instagram. Casos considerados “polêmicos” também despertam a doentia curiosidade nas redes. O ex-morador de rua Givaldo Alves, que ficou famoso como o “mendigo pegador” após o incrível episódio em que manteve relações sexuais com uma mulher em surto psicótico, dentro do carro dela, tem 429 mil seguidores no ­Instagram e hoje sobrevive do que fatura nas redes sociais. Preconceito e violência verbal são outros ímãs para atrair adeptos, como prova o ex-deputado paulista ­Arthur do Val, oriundo do mesmo MBL que pariu Gabriel Monteiro. Apesar do impacto do áudio no qual afirma que as refugiadas ucranianas “são fáceis porque são pobres”, ele perdeu o mandato na Assembleia Legislativa, mas não teve o sucesso abalado no Instagram, onde mantém 647 mil seguidores.

Capital. Monteiro possui espantosos 4,4 milhões de seguidores no Instagram – Imagem: Fernando Frazão/ABR

Na tentativa de entender o que vai à alma daqueles brasileiros que seguem esse tipo de “celebridade”, a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl afirma que “as pessoas se sentem empoderadas ao quebrar tabus” ou ficam fascinadas com quem o faz: “Nossas conquistas civilizatórias se alicerçam em alguns tabus. A dignidade de todas as pessoas, por exemplo. A inviolabilidade dos corpos. A igualdade de direitos acima de diferenças de credo, classe social, cor da pele etc. Aquele que se declara acima de todos os tabus, de todos os limites estabelecidos pelas regras implícitas que propiciam a vida em sociedade, pode parecer mais corajoso, mais ousado, mais forte do que os que respeitam tais limites. Pode tornar-se uma celebridade em cinco minutos”, diz. Mas, alerta, “poucos se dão conta de que com fre­quência tais manifestações de ousadia advêm de um tipo de doença de caráter, a qual chamamos sociopatia”.

Para o sociólogo e cientista político Rodrigo Prando, a atração por figuras como Monteiro pode ser explicada pelo fato de os brasileiros terem vivenciado ao longo dos séculos um encontro quase cotidiano com situações de violência: “Não podemos esquecer que a violência esteve presente no bojo de uma sociedade cuja escravidão era mobilizadora da força de trabalho. A escravidão sustenta-se em larga medida com base na violência, e esta acaba se espraiando para o cotidiano”, diz. Ele cita Gilberto Freyre em Casa-Grande e Senzala, quando este faz a advertência de que o brasileiro gosta de um governo autoritário porque a cultura nacional tem a violência como algo intrínseco: “Hoje, esses influenciadores têm amplificação porque, de certa maneira, isso está presente na sociedade brasileira, que, queiramos ou não, é muito violenta dentro de casa, no trabalho e nas relações afetivas. Há uma raiz sociológica evidente que torna a violência um elemento cotidiano e desperta muita atenção porque mobiliza sentimentos e tem um conteúdo emocional que leva a um apelo quase imediato”.

Virada. Givaldo Alves, o “mendigo pegador“, agora sobrevive com a renda obtida pela fama nas redes sociais – Imagem: Redes sociais

O papel de Jair Bolsonaro não é esquecido pelos especialistas. “Temos um presidente que incita a violência, o desrespeito e a crueldade, como nos episódios em que imitou, debochado, pessoas com Covid que não conseguiam respirar. A autoridade máxima da nação despreza ostensivamente a dor alheia e incita a violência social”, diz Kehl. Ela acrescenta que a contaminação das redes pela difusão dos discursos de ódio é evidente: “Aliás, contágio é a palavra do momento, pois se presta a definir várias modalidades de difusão de doenças, sejam físicas ou sociais”. Para Prando, o bolsonarismo “é mais sintoma do que causa” da glorificação da violência, mas o sociólogo ressalta que um líder político sempre serve como exemplo: “Se ele tem um comportamento considerado aceitável, republicano e virtuoso, muitas pessoas buscarão se comportar da mesma maneira. Se o comportamento for distinto disso, acontecerá também de o comportamento na sociedade ser diferente”.

Relator do processo que levou à cassação do mandato de Monteiro, o verea­dor Chico Alencar, do PSOL, tem um ponto de vista interessante: “Eu não diria que os brasileiros em geral têm preferência por pessoas violentas. Vivemos em uma sociedade muito violenta e a visibilidade de um heroísmo atravessado que alguns bandidões poderosos e fortões adquirem – mais pelo argumento da força do que pela força dos argumentos – tem seus adeptos e imanta uma parte da nossa sociedade em todas as classes sociais. Os oprimidos muitas vezes veem naquela figura um justiceiro em uma sociedade injusta e os ricos sabem que, na verdade, essas pessoas defendem a ordem desigual estabelecida, inibindo o aumento da consciência popular e a revolta organizada. São válvulas de escape individualizadas”.

“Bolsonaro representou a ‘libertação’ dos sociopatas que até então, provavelmente, agiam apenas em família”, analisa Kehl

Alencar, que durante o processo recebeu ameaças dirigidas a ele próprio e a integrantes de sua família nas “redes antissociais”, como chama, afirma que, além das fartas provas contra si, ­Monteiro tinha prestígio zero entre os vereadores: “Era uma figura considerada arrogante e prepotente, em um viés absolutamente individualista e característico desse fenômeno novo na política brasileira: os ­influencers e youtubers. Ele exercia o mandato nessa perspectiva”. Para o vereador, a Câmara cumpriu seu papel no processo ético e disciplinar: “Agora, é com a Justiça Criminal e Eleitoral”.

Nessas duas searas, as investigações não devem impedir que Monteiro chegue à Câmara dos Deputados. Do ponto de vista eleitoral, apesar de existir o entendimento de que a inelegibilidade de dez anos decorrente da cassação em nível municipal já deva ser considerada na atual disputa, provavelmente não haverá tempo para que os recursos contra Monteiro apresentados por Rede e PSOL sejam analisados pelo Tribunal Superior Eleitoral antes do pleito em outubro. Isso não impede que o mandato de deputado venha a ser cassado mais tarde, mas, se seguir os trâmites habituais, todo o processo pode durar até dois anos. O PL mantém a aposta, de olho em uma bancada fluminense que, com os votos esperados para o influenciador digital, pode ultrapassar os dez deputados.

Alerta. O ódio semeado pelo capitão não será neutralizado da noite para o dia, diz Kehl – Imagem: Ana Paula Paiva/Valor/Folhapress

O Ministério Público Eleitoral pede que Monteiro não use recursos do Fundo Partidário, mas isso não deverá ser problema para o ex-vereador, que chega a faturar 300 mil reais mensais com a monetização de seus vídeos pelo ­YouTube. Na esfera criminal, ele responde a dois processos: um por importunação e assédio sexual, movido por uma ex-assessora, e outro por ter filmado relações sexuais com adolescentes. Não há previsão para a conclusão de ambos.

Com a expectativa da chegada de Monteiro a Brasília, resta a apreensão acerca dos perfis dos novos influenciadores digitais que fatalmente serão eleitos para a próxima legislatura. “Os políticos não nascem em uma horta de onde são colhidos e saem para o Congresso. Nascem no seio da sociedade. Em larga medida, a qualidade da democracia e de seus representantes depende da qualidade dos valores que a sociedade considera mais importantes e relevantes para a vida coletiva”, diz Prando.

Na avaliação de Kehl, é preciso examinar o passado para tentar entender como chegamos até aqui: “Bolsonaro representou a ‘libertação’ dos sociopatas que até então provavelmente agiam apenas em família: pais e mães espancadores de crianças, pessoas racistas, homofóbicas, estupradores de mulheres, pessoas com ódio aos pobres etc. Bolsonaro liberou o discurso que essa turma precisava para sair do armário”, diz. Um eventual retorno ao normal não será tarefa fácil, opina a psicanalista: “Com a provável substituição do sociopata do Planalto por um presidente no mínimo respeitador das leis, os dispositivos de ódio não serão automaticamente desarmados, mas, na melhor das hipóteses, sua sustentação simbólica será abalada. Torço por isso, com esperança e angústia”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nem Freud explica “

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