Sociedade

Não há política de direitos humanos sem pensar na questão racial, diz ministro brasileiro em Genebra

Silvio Almeida é o primeiro homem negro a ser ministro de Estado de Direitos Humanos do Brasil

No comando do Ministério dos Direitos Humanos, Silvio Almeida assume a missão de combater o discurso de ódio. Foto: José Cruz/Agência Brasil
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Daqui para frente, tudo vai ser diferente. Essa é a mensagem que o ministro brasileiro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, quis passar esta semana em que esteve em Genebra, na Suíça, participando de reuniões do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

“Não é só porque eu quero, é que precisa ser diferente. Precisa ser diferente, em primeiro lugar, por conta do que todo mundo viu, que foram esses últimos quatro anos. Ou seja, quatro anos de vergonha. Vergonha para nós brasileiros de uma maneira geral, vergonha para a história do Brasil, daquilo que o Brasil construiu de melhor. Pode parecer que tudo aquilo que falamos é cheio de ambição, mas sem ambição não haveria necessidade de estarmos aqui hoje, de contribuir para um Brasil novo”, disse ele à RFI.

O ministro explicou que a vinda dele à Genebra teve a “intenção de reconectar o Brasil com o sistema internacional de direitos humanos, que é um palco importantíssimo da atuação política do Brasil”. Ele diz acreditar que “essa reconecxão é muito importante para a recondução, para a reorientação da política nacional de direitos humanos”.

“Nos últimos anos, o Brasil teve uma série de prejuízos por conta desse afastamento. Acho que muitas das conquistas que o Brasil teve em termos de direitos humanos são resultado desse diálogo, desse debate em que o Brasil não só recebeu uma série de subsídios importantes para construção da sua política nacional, mas também o Brasil contribuiu e muito com o mundo, para demonstrar que existem outras perspectivas em relação aos direitos humanos, que não aquelas perspectivas conduzidas a partir de uma visão do Norte do mundo”.

Yanomamis: preocupação com candidatura de Damares

O ministro vê com “com muita preocupação” a candidatura da senadora Damares Alves, ex-ministra dos direitos humanos, a uma vaga para comissão que monitora a crise dos Yanomami. Ele lembre que ela foi integrante do governo Bolsonaro que negligenciou a assistência aos Yanomami. Isso demonstra, segundo Almeida, um “grave problema da institucionalidade brasileira”.

Segundo o ministro, “não somos capazes de estabelecer formas de contenção desse tipo de ação, de movimentação que, na verdade, tem o propósito de minar, de descredibilizar as próprias ações institucionais em prol dos direitos humanos”. Ele afirma que um relatório com conclusões das investigações realizadas sobre a situação dessa população indígena, resultado de visitas das equipes à Roraima, será divulgado na próxima semana.

“O relatório que vai demonstrar todas as coisas que foram feitas e deixaram de ser feitas e que redundaram nessa tragédia. Encontramos alguns documentos que demonstram que houve negativa para envio de ajuda emergencial aos povos yanomami. Havia, inclusive, uma ordem judicial da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determinava a tomada de providências para garantir a vida, a sobrevivência, que foi descumprida”, afirmou.

Segundo o ministro, as conversas todas nas Nações Unidas foram no sentido de apresentar que o Brasil tem uma série de projetos que demandam apoio internacional. Ele disse também que o que ele pediu e que o que pediram a ele nas reuniões e encontros na ONU foi a mesma coisa: cooperação.

“Pedir aos Estados e seus representantes e aos organismos internacionais que pudessem dar suporte a essa nova visão que a nova administração brasileira traz, que é pensar os temas dos direitos humanos a partir de uma perspectiva que leva em consideração a questão econômica, a necessidade de fortalecer os mecanismos democráticos, o combate aos discursos de ódio. Ao mesmo tempo, nós fomos solicitados para a mesma coisa. O que nos foi pedido é aquilo que pedimos também: uma cooperação no esforço para que nós pudéssemos fazer uma política de direitos humanos coordenada”.

Fortalecer sistema de proteção social para enfrentar trabalho escravo

Ao ser questionado sobre a situação dos mais de 200 trabalhadores resgatados em condição de escravidão, o ministro disse que esse episódio “nem de longe é um caso isolado”. Segundo ele, “o Brasil ainda possui uma série de problemas que levam à reprodução desse tipo de violência contra os trabalhadores e as trabalhadoras”. Também disse não ter se surpreendido com declarações das próprias empresas.

“A luta contra o trabalho escravo envolve o fortalecimento do sistema de proteção social dos trabalhadores. Precisamos fortalecer as representações dos trabalhadores, os sindicatos. É isso que vai garantir que os trabalhadores não fiquem à mercê desse tipo de exploração”.

Segundo o ministro, está marcada uma reunião em que será tratada a possibilidade de revisão do plano nacional de erradicação do trabalho escravo.

Ele diz que o Brasil é um país forjado no autoritarismo, na dependência econômica que gera desigualdade e no racismo. “Toda e qualquer política de direitos humanos que se pense tem que levar em consideração a questão racial”, disse ele, que escreveu o livro “Racismo Estrutural”. “Eu sou o primeiro homem negro a ser ministro de Estado de Direitos Humanos do Brasil. Pra mim, é um compromisso ético e político dos mais relevantes”.

Guerra na Ucrânia: “Alguns fantasmas continuam muito vivos”

Sobre a guerra na Ucrânia, o ministro frisou que a posição do Brasil “prioriza a abertura de espaços de diálogo, de conversação, de compreensão, que é a única forma, na verdade, de encerrar um conflito dessa proporção, que é chamando as pessoas para conversar, mas nunca transigindo com violação de direitos humanos”.

“O fato de o Brasil estar aberto ao diálogo não significa que o Brasil não reconhece que haja violação de direitos humanos. Não significa que o Brasil se cale diante disso e não significa que o Brasil tenha uma posição de, digamos, de neutralidade diante da violação de direitos humanos”.

De acordo com o ministro, essa é uma guerra “que interessa a todos nós, do mundo inteiro”. O conflito na Ucrânia também desnuda, segundo ele, “algumas faces da humanidade que nós não queríamos encarar, como a instrumentalização da política de direitos humanos para interesses de países específicos, a seletividade racial”.

“Acho que essa guerra está demonstrando, tristemente, que alguns fantasmas que nós achávamos que haviam sido superados, principalmente depois dos desastres que a humanidade já conheceu, continuam muito vivos”.

Uma guerra global

Silvio Almeida disse ainda que em todo contexto de guerra a violação dos direitos humanos se apresenta e os afetados “são os trabalhadores, as minorias, as mulheres, as meninas, as pessoas que mais sofrem em toda e qualquer guerra. Eu estou falando que sofrem as pessoas de todos os envolvidos na guerra.

“Acredito que essa guerra não é uma guerra regional, não é uma guerra que envolve apenas a Europa. É uma guerra que, na minha concepção, tem contornos globais, e que faz com que cada um de nós, em todos os lugares do mundo, sejamos por ela afetados e temos, portanto, a responsabilidade de recolocar as coisas no seu devido lugar”.

Visita de relatores da ONU ao Brasil: “não tenho nada a esconder”

No último dia de missão em Genebra, o ministro Silvio Almeida se reuniu com o Alto Comissário das Nações Unidos para os Direitos Humanos, Volker Turk, e o convidou para ir ao Brasil. As visitas dos relatores da ONU, que há anos não vão ao país, deverão ser retomadas.

“Esse governo não tem problema nenhum com visita de relatores porque não tenho nada a esconder, nada, muito pelo contrário. Acreditamos que abrir a situação dos direitos humanos no Brasil é algo que nos favorece porque faz com que tenhamos que tomar as atitudes necessárias para proteger o nosso povo”, disse.

Questionado por um jornalista estrangeiro se tinha pretensões de se candidatar à presidência no futuro, Almeida foi diplomata. “O presidente Lula me deu a honra e a missão de ser ministro de Estado de Direitos Humanos e Cidadania do meu país. Isso é um fardo, mas é uma honra. E quais são as minhas intenções? A primeira delas é honrar a confiança que o presidente me deu e a minha intenção mais ambiciosa nesse momento é ser o melhor ministro de Direitos Humanos e Cidadania que o Brasil já teve. Essa é a minha intenção. Se eu fizer isso, acho que já cumpri um belíssimo papel e meus ancestrais ficaram muito orgulhosos de mim”.

Almeida falou ainda da necessidade de retomar certos debates, como a relação entre direitos humanos e economia, direitos humanos e democracia, “a participação política efetiva das minorias, daqueles que são afetados pelas decisões que são tomadas no âmbito político. Aumentar a possibilidade de participação popular, por exemplo, “para não transformar a humanidade num clube”, em que só alguns podem entrar, “aqueles que não parecem com a maioria das pessoas que vivem e levam sua vida no Sul global”.

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