Justiça

Na Sesmaria 1.200

Em operação contra garimpos ilegais, a PF encontra dezenas de trabalhadores em condições análogas à escravidão

Providências. A Polícia Federal fechou 13 garimpos ilegais e o MPT providenciou o retorno das vítimas do trabalho degradante às suas cidades de origem. (FOTO: Marcel Crozet/ILO e PCPA/MP-PA)
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“Eram dezenas de trabalhadores. No local não havia energia elétrica, água potável e o banheiro era o próprio mato. Eles nem sequer sabiam quando voltariam para casa ou se voltariam. Eram homens e mulheres dormindo embaixo de lonas em um calor de até 40 graus. Isso sem contar o mercúrio, que a esta altura tinha contaminado seus corpos”, relata uma testemunha ocular da Operação 1.200, deflagrada pela Polícia Federal para combater o garimpo ilegal na zona rural de Ourilândia do Norte, no Pará.

Do alto, enquanto policiais sobrevoavam a região de helicóptero, as cenas de destruição eram evidentes, mas nada se assemelha à cena que encontraram ao desembarcar no solo, onde chegaram a funcionar 28 garimpos simultaneamente. A ação, que contou com cem agentes do Comando de Operações Táticas, grupo de elite da PF, um helicóptero do Comando de Aviação Operacional da corporação, além de dois procuradores do Ministério Público do Trabalho e um procurador da República, fechou 13 garimpos clandestinos, apreendeu 17 retroescavadeiras, computadores, armas, porções de ouro e mercúrio. Seis suspeitos foram presos.

Dezenas de trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados pelo MPT. Um acordo com a prefeitura de Ourilândia permitiu o retorno deles para as suas cidades de origem, a maior parte delas no Maranhão. Os operários não tinham acesso sequer a equipamentos de proteção. A contaminação por mercúrio pode atacar os rins, os pulmões e o sistema nervoso. Quando despejado em rios, como ocorre no processo de garimpo, ele passa por uma mudança química que o torna ainda mais tóxico.

Não bastasse, o sistema de abastecimento de água da região também acabou contaminado pelo mercúrio lançado no Rio Águas Claras. A PF está realizando perícias para saber o tamanho dos prejuízos ambientais causados pela atividade ilegal. Os garimpos teriam se iniciado em 2019, mas as denúncias começaram a chegar às autoridades em meados do ano passado.

As máquinas apreendidas tiveram destinos diferentes: três foram queimadas, outras foram doadas às prefeituras de Tucumã e Ourilândia e outras serão leiloadas, quando o relatório final, previsto para sair daqui a um mês, apontar a multa­ pecuniária e os crimes pelos quais os inves­tigados vão responder. Por ora, eles foram enquadrados por porte ilegal de armas, crime ambiental, usurpação de patrimônio da União e trabalho análogo ao escravo.

A fazenda de 1,2 mil hectares avança sobre terras públicas e “pertence” a Eutímio Lippaus, pecuarista enredado em longo conflito fundiário

Na região amazônica, mulheres, jovens e às vezes até crianças são encontrados em situação de trabalho degradante nos garimpos ilegais. Além disso, estima-se que os prejuízos socioambientais causados pela atividade clandestina, entre 2019 e 2020, podem chegar a 31,4 bilhões de reais. De acordo com um estudo da UFMG, a maior parte das lavras pertence a seis indivíduos e associações que concentram 61% do ouro produzido em garimpos com evidências de ilegalidade, e 71% desse ouro foi comprado por apenas três Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários registradas pelo Banco Central. Quanto à Operação 1.200, ainda não há informações sobre os verdadeiros “barões” dos 13 garimpos fechados.

“Os presos são os donos das retroescavadeiras, responsáveis por dividir os trabalhos, dar as funções e às vezes até recrutar os trabalhadores para o garimpo ilegal. Mas sabemos que a rede é maior e mais complexa. Nesse primeiro momento, vão ser feitas as perícias para dar andamento à denúncia formal”, relata um dos envolvidos na investigação sigilosa.

A operação voltou as atenções para um histórico que se assemelha ao período colonial do século XVIII, mas que, infelizmente, é realidade no Brasil de 2021. A completa ausência do Estado, onde pecuaristas e jagunços assumem o papel de governo, fez da Fazenda Boa Fé – vejam só que nome contraditório – símbolo do conflito agrário no Pará. Nos últimos 15 anos, a região é marcada por ameaças, escravidão, tiros e mortes. A área total da propriedade rural é de 1.200 alqueires, de onde saiu a inspiração para a PF batizar a sua operação. Desse perímetro, 470 alqueires são terras públicas e o restante tem registro em cartório, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra de Tucumã, em Alto Xingu. O “proprietário” desse latifúndio que avança sobre áreas da União é o pecuarista capixaba Eutímio Lippaus.

O candidato e ex-vereador Raimundo Paulino, um dos líderes da ocupação sem-terra, acabou executado a tiros

O empresário foi alvo de uma operação de combate ao trabalho escravo em novembro 2002, quando 35 homens e uma mulher foram resgatados de uma situação lastimável. No momento em que os agentes chegaram, os trabalhadores comiam farinha, manga e feijão e outros se alimentavam de pequenos peixes coletados no local. Alguns estavam há dias com dificuldade de trabalhar, devido à fraqueza pela falta de comida. Os trabalhadores ficaram por um tempo dentro de um chiqueiro, onde dormiam em redes. No dia da Operação Tática, o empregador Eutímio Lippaus teve uma arma apreendida pelos policiais e foi levado para prestar depoimento. Segundo relatório da polícia, ele relutou em pagar o que devia aos trabalhadores, mas um Termo de Ajustamento de Conduta acabou sendo firmado e ele pagou o referente a 10 reais por dia de trabalho a cada um deles, totalizando uma indenização de 38,4 mil reais à época. Apesar do TAC, o MPF o denunciou por trabalho escravo, mas ele acabou absolvido. Lippaus também foi ­alvo de processo por crimes ambientais, uma vez que dentro da fazenda há áreas públicas de preservação ambiental.

Curiosamente, um dos envolvidos na investigação relatou à reportagem de ­CartaCapital que as denúncias de garimpo­ ilegal que deram origem à Operação 1.200, descrita na abertura desta reportagem, teriam partido do próprio Lippaus. No ­centro da disputa estão terras públicas que, ao serem alvo de garimpo, ficariam impossibilitadas de servir para a pecuária. A fazenda, por sinal, é objeto de litígio que se arrasta há anos na Justiça. Em 2006, 150 famílias sem-terra ligadas à Associação 8 de Março ocuparam áreas públicas da fazenda, dando início a uma escalada de conflitos fundiários na região, que atingiria o seu ápice três anos mais tarde.

Em 14 de abril de 2019, quatro pistoleiros em duas motos atiraram contra quatro barracos da Ocupação 1.200, a menos de 15 metros de distância. Era por volta de 23 horas e as famílias, incluindo idosos e crianças, dormiam no momento do ataque. Com o susto, os acampados correrem e deixarem tudo para trás. Pouco mais de um mês depois, um novo ataque. Ao menos dez barracões foram incendiados por quatro jagunços de moto, também durante a noite. “A suspeita do atentado recai sobre o fazendeiro Eutímio Lippaus, que é o único que tem interesse em intimidar as famílias que continuam na luta pela criação de um assentamento, tendo em vista que ocupam área pública reivindicada judicialmente pelo Incra”, denunciou a CPT à época.

Paulino. Vítima da brutalidade no campo. (FOTO: Redes sociais)

Desde 2014, o pecuarista é alvo de um processo de reintegração de posse proposto pelo Incra na Justiça Federal de Redenção, uma vez que 25% da fazenda pertence à União e, constitucionalmente, deveria ser destinada para reforma agrária ou assentamentos. Lippaus entrou, porém, com outro pedido de reintegração de posse contra os sem-terra na Justiça Estadual, onde relatou ter provas de ataques dos acampados contra ele.

“Aqui não se faz isso, não, isso é história desses bandidos. O dono aqui nunca fez disparo contra bandido nenhum, nunca queimou um barraco de um bandido sequer. Eles inventam ­tudo”, declarou o pecuarista à Agência Pública em 2019. Menos de um ano depois, em fevereiro do ano passado, um dos ­coordenadores da Associação 8 de ­Março foi executado com um tiro na cabeça. ­Então candidato a vereador pelo PCdoB, ­Raimundo ­Paulino da ­Silva ­Filho tinha 51 anos e havia exercido dois mandatos na Câmara Municipal de Ourilândia ­pelo PT, de 2009 a 2016. Ele atuava em região de conflito com grileiros no sul do Pará e havia relatado ameaças antes de ser assassinado. Em 2010, o MPF chegou a denunciar Lippaus por ameaçar Paulino de morte, mas o crime acabou prescrito. ­CartaCapital não conseguiu falar com o fazendeiro ou seus advogados.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1169 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE AGOSTO DE 2021

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