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Apenas em janeiro, 8 lideranças socioambientais foram assassinadas em áreas remotas do Brasil

Com a facilitação do acesso às armas, a expectativa é de que no último ano do governo bolsonaro ocorra um recrudescimento dos conflitos

Imagem: Fábio Teixeira/NurPhoto/AFP
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Atuar em favor de causas sociais ou ambientais em áreas remotas do Brasil sempre foi uma “profissão de risco”, mas 2022 anuncia-se especialmente perigoso para os ativistas. Somente em janeiro, oito assassinatos a sangue-frio de lideranças locais cometidos no interior de Goiás, Pará e Maranhão apontam para a ação de grileiros, garimpeiros e até policiais. Nas três ações, as vítimas eram protagonistas de movimentos que incomodavam o poder paralelo instalado nas regiões em que militavam.

Rede criada há 30 anos e que reúne 400 entidades socioambientais atuantes na Amazônia, o Grupo de Trabalho Amazônico manifestou sua preocupação com o aumento da violência e pede cuidado redobrado aos seus militantes. “A rede encaminha denúncias às autoridades e chega a retirar, temporariamente, ativistas em perigo de seus locais de atuação, mas os lugares remotos têm menos meios, inclusive de comunicação, e isso piorou na pandemia”, diz Sila Mesquita, dirigente do GTA. Com a facilitação do acesso às armas promovida por Jair Bolsonaro, a expectativa é de que no último ano de governo ocorra um recrudescimento dos conflitos. “A perseguição do Estado contra aqueles que defendem a importância da floresta para a sustentabilidade dos povos e do planeta não para de crescer.”

Em 19 de janeiro, quatro pessoas foram mortas pela Polícia Militar em uma suposta operação de repressão ao tráfico de drogas em Vila São Jorge, na Chapada­ dos Veadeiros. Segundo relatos de moradores, a contradizer a versão oficial, as vítimas não apresentaram resistência à abordagem e foram executadas depois de rendidas. Entre elas estavam Antônio da Cunha dos Santos, militante quilombola conhecido como Chico Kalunga, e Salviano Souza Conceição, pioneiro na luta pela transição da economia local, baseada no garimpo, para o turismo ecológico. A ação ocorreu no sítio de Salviano, em Cavalcante. Nenhuma das vítimas – atingidas por 58 tiros, sendo 40 disparos de fuzis – tinha antecedentes criminais.

“MAIS DO QUE OMISSÃO, HÁ UM INCENTIVO À INVASÃO DE NOSSOS TERRITÓRIOS”, DENUNCIA A JOVEM INDÍGENA TXAI SURUÍ

Os policiais afirmam ter incendiado “uma plantação de maconha” no terreno, onde teriam sido recebidos a tiros, e apreendido quatro revólveres e uma espingarda. A versão é contestada por testemunhas ouvidas por CartaCapital. “Havia, sim, uma dúzia de pés de maconha plantados no terreno, mas era para consumo próprio. Salviano era um senhor idoso e muito querido por todos, era um ex-garimpeiro que se transformou em professor dos monitores ambientais que atuam na região. As armas, com certeza, foram plantadas. E por que queimaram os pés de maconha antes da perícia?”, questiona um vizinho de Salviano, que prefere não ter seu nome revelado. Segundo a polícia, outros três supostos traficantes escaparam. “Diante da injusta agressão foi feito o revide, sendo quatro homens alvejados e três tendo evadido para uma mata”, diz o boletim de ocorrência.

Dada a discrepância entre os relatos de policiais e moradores, a Polícia Civil abriu inquérito para apurar se o crime tem alguma relação com a militância de Salviano e Chico Kalunga. Já a PM de Goiás afastou os seis agentes que participaram da ação. Também ouvido por CartaCapital, um familiar de uma das vítimas disse que o comandante da ação, conhecido como Major, “sempre implicou com o Salviano”, mas que o estopim para o crime teria sido para lá de fútil: “No fim do ano, eles bateram boca sobre a propriedade de um cachorro e o Major jurou o Salviano de morte”.

Testemunhas afirmam que entre as três pessoas poupadas havia uma mulher grávida, o que provocou a “compaixão” dos executores. Em depoimento, os policiais disseram ter incinerado cerca de 500 pés de maconha, além de material para prensagem e embalagem, mas isso ainda terá de ser confirmado pela perícia. “De acordo com a lei, quem deve determinar a incineração da droga é o delegado, mas isso foi feito antes da minha chegada ao local”, observa o delegado Alex Rodrigues.

Uma nota de repúdio à ação da polícia goiana foi firmada por 134 organizações da sociedade civil: “Salviano, Chico, Jacaré e Alan eram conhecidos por todos da comunidade. Eram pessoas de boa índole, não eram violentos, não tinham passagem pela polícia, não andavam armados. Não eram bandidos. Eram pacíficos. Morreram por causa de uma guerra insana, que condena e mata de forma seletiva uma parte da população que é preta e pobre em verdadeiros tribunais de rua”, diz o documento firmado por entidades como MST, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, entre outras.

Quando tinha 14 anos, a família de Txai Suruí ficou sob a proteção da Força Nacional – Imagem: Oli Scarff/AFP

A “Chacina da Chapada” não foi o primeiro crime contra lideranças socioambientais registrado este ano. Em 8 de janeiro, morreu o líder quilombola José Francisco Lopes Rodrigues, conhecido como Quiqui. Cinco dias antes, ele havia sido baleado dentro de sua própria casa, na cidade maranhense de Arari, por um pistoleiro ainda não identificado. O assassino, escondido no quintal, pegou Quiqui de surpresa quando este retornava da escola onde foi buscar a neta. A menina, de 10 anos, também foi baleada, mas sobreviveu. Muito conhecido na região, o ativista despertou a ira de fazendeiros locais após ter recebido, em novembro, representantes da ONU em sua residência. Na reunião, foram apresentados relatos de violação aos direitos humanos no Quilombo do Cedro.

Segundo a CPT, Quiqui é o quinto quilombola assassinado naquela região nos últimos dois anos. Todos foram vítimas de crimes de pistolagem a mando de latifundiários e grileiros. “Os conflitos agrários em Arari têm se intensificado, foram cinco assassinatos entre 2020 e o início de 2022. Todos os mortos lutavam contra o cercamento dos campos naturais por latifundiários e grileiros que fazem uso predatório das áreas de uso comum de territórios tradicionais e camponeses para o monocultivo de arroz transgênico e criação de búfalos”, diz uma nota da Comissão.

Ainda em janeiro, três integrantes da mesma família – o ambientalista José Gomes, conhecido como Zé do Lago, sua mulher Márcia Lisboa e sua filha Joene Lisboa – foram executados por pistoleiros em São Félix do Xingu, no sul do Pará. Segundo relatos, a família morava há 20 anos na localidade de Cachoeira da Mucura e era atuante em um projeto de soltura de filhotes de tartarugas no Rio Xingu, ativismo que os colocou em rota de colisão com o garimpo ilegal. Em 9 de janeiro, os corpos de pai e filha foram encontrados dentro de casa e o de Márcia boiando no rio. Pelo estado de decomposição, a polícia estima que os crimes foram cometidos três dias antes.

Jovem que ganhou notoriedade ao discursar na abertura da Conferência sobre Meio Ambiente da ONU, Txai Suruí avalia que o Brasil é um dos países mais perigosos para os ativistas. “Essa família inteira assassinada é mais um exemplo disso”, diz, citando também o assassinato de outra jovem liderança, seu amigo Ari ­Uru-Eu-Wau-Wau. “Até hoje não se sabe o que aconteceu.” Coordenadora da Juventude Indígena de Rondônia, Txai denuncia o processo de ataques e ameaças não só aos ativistas e territórios indígenas, mas a todo o meio ambiente: “Aqui sofremos a política anti-indigenista dos governos federal e estadual. Mais do que omissão, há um incentivo à invasão de nossos territórios em um contexto de ataque às comunidades tradicionais, aos povos originários”.

Segundo a CPT, 62 pessoas foram mortas no município nas últimas quatro décadas por conta de conflitos socioambientais. A área onde a família de ambientalistas morava está inserida na APA Triunfo do Xingu, uma das mais atingidas pelo desmatamento e o avanço do garimpo e da pecuária.

Presidente histórica do GTA, Leide Aquino diz que o retrocesso nunca foi tão grande. “Hoje sofremos um processo de invasão dos territórios estabelecido por este governo que abriu as portas para a ilegalidade.” Ela, que vive na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, vê da janela o desmonte das políticas ambientais e o avanço sobre as áreas de proteção. “Comerciantes e empresários estão invadindo a Resex para transformar nossa comunidade extrativista em território da pecuária. O perigo para os ativistas só cresce.”

Filha dos conhecidos ambientalistas Almir Suruí e Neidinha Cardozo, concorda que o perigo está à espreita e diz que mesmo a Funai representa hoje um risco à segurança dos ativistas no interior de Rondônia. Ela se lembra dos momentos de medo que já viveu: “Quando eu tinha 14 anos minha família teve de passar a ser acompanhada pela Força Nacional de Segurança, porque meus pais estavam sendo ameaçados”, conta. O temor é que situações assim voltem a acontecer em 2022. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Na linha de tiro”

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