Entrevistas

Margarida Genevois: ‘Acredito na juventude e na reação dos democratas’

Aos 98 anos, a cientista política e ativista acaba de ganhar uma biografia à altura

(Foto: Bob Wolfenson/Divulgação)
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A história de Margarida Bulhões Pedreira Genevois se confunde com a história da luta em defesa dos direitos humanos no Brasil. Presidente honorária da Comissão Arns, três vezes presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e fundadora da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, a cientista política e ativista de 98 anos acaba de ganhar uma biografia à altura.

Margarida, coragem e esperança (editora Alameda) é um farol para quem está na linha de frente nas lutas cotidianas, nas palavras de seu biógrafo, o jornalista e escritor Camilo Vannuchi. O livro narra o engajamento da Dama dos Direitos Humanos em alguns dos momentos mais críticos de um país marcado pela brutalidade, sobretudo quando era o braço direito do arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns. “Margarida é um exemplo para os dias de hoje”, diz o autor.

Aos 98 anos, a ativista nascida no Rio segue atuante. Ela assina artigos, vai a manifestações, acompanha a CPI da Covid, lê livros, jornais, participa de lives e conversa com jornalistas –como nesta entrevista, feita por e-mail, de sua casa, em São Paulo.

CartaCapital: O livro narra uma série de conquistas obtidas no Brasil após anos de luta em defesa dos direitos humanos, da qual a senhora foi e é protagonista. Por que isso não impediu a eleição de um defensor da ditadura e da tortura?

Margarida Genevois: Nós entramos no século 21 com grandes expectativas. A criação de uma Secretaria de Direitos Humanos no nível da Presidência da República, no governo de Fernando Henrique, e depois continuada nos governos Lula e Dilma, foi festejada por nós, democratas convictos e, mais especialmente, militantes nas várias entidades de defesa dos Direitos Humanos e da Educação, em todo o país.

E as novas Secretarias animaram seminários e debates que resultaram na publicação do Plano Nacional de Direitos Humanos em três versões – 1, 2 e 3, sob a coordenação de secretários muito identificados com a temática, como Paulo Sergio Pinheiro e Paulo Vannuchi. Com apoio dos Presidentes e de Ministérios afins, foram iniciadas políticas públicas relacionadas ao conjunto dos DH, desde as liberdades democráticas, individuais e coletivas, até os direitos sociais, econômicos e ambientais. Tínhamos uma visão otimista sobre o cenário político, que entendíamos pronto para o reconhecimento e a garantia dos DH, num país tão marcado por desigualdades brutais.

Daí, em 2018 veio a vitória eleitoral de alguém profundamente vinculado à negação da democracia e dos DH. Até hoje acho difícil saber como chegamos a isso. Mas é preciso reconhecer que Jair Bolsonaro regou um solo fértil com seu discurso de ódio – a defesa da igualdade e as políticas que dela decorrem não são entendidas como um bem, mas como ameaças às situações de privilégios que são tidos por direitos adquiridos. Nos sentimos fracos diante do horror que foi se revelando diariamente. Mas tenho esperança que sairemos desse pesadelo. Acredito na juventude e na reação dos democratas, assim como foi possível vencer a ditadura e promulgar a Constituição de 1988.

Acredito na juventude e na reação dos democratas, assim como foi possível vencer a ditadura e promulgar a Constituição de 1988

CC: É possível fazer uma avaliação sobre o trabalho de Damares Alves no atual Ministério de Direitos Humanos, Mulheres e Família? Há diálogo possível?

MG: Damares é o exemplo de pessoa conservadora e reacionária. Não creio que seja possível um diálogo com ela e esse ministério, pois seus princípios e valores são a negação dos nossos, e não uma alternativa no campo democrático. Nesses tempos de pandemia, o que fez a Ministra dos DH em prol dos desassistidos, dos jovens negros assassinados pela polícia, dos desempregados, das crianças sem escola? E em apoio às grávidas que chegaram a dar à luz entubadas? Infelizmente nada. A Damares do conceito “menino veste azul, menina veste rosa”, é insensível à dor das famílias do meio milhão de mortos pela ação e omissão do governo e faz par com o presidente que exalta a ditadura e defende a tortura.

CC: Depois de tantos anos do julgamento simbólico da Lei de Segurança Nacional, tema de um dos capítulos, ela ainda é usada para perseguir adversários políticos. O que isso diz sobre a forma com que o país lida com seu entulho autoritário?

MG: A Lei de Segurança Nacional faz parte do entulho autoritário que gostaríamos de ver sepultado, mas que permaneceu vigente depois da Constituição de 88. Esta permanência é inaceitável. Outro brutal entulho foi a anistia estendida aos torturadores durante a ditadura militar. A legitimação desse absurdo pelo STF, em 2010, foi um duro golpe para os DH. É o caso de lembrarmos os exemplos do Chile e da Argentina que bravamente julgaram e condenaram os generais do terror do Estado.

Há juristas sérios – como os da Comissão Arns — que defendem sua substituição por uma Lei de Defesa do Estado Democrático. Outras entidades consideram que ela deve ser radicalmente eliminada. Não me sinto preparada para a discussão jurídica, mas fico muito preocupada com o uso da LSN para perseguições e punições a opositores do governo.

CC: Como a senhora vê o trabalho das igrejas, hoje, na denúncia das violações de direitos humanos e na defesa da justiça social?

MG: Tenho acompanhado o trabalho da Igreja Católica, através de entidades como a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, da qual faço parte desde a fundação. Vejo com admiração e carinho a luta do Padre Júlio Lancellotti em favor de um grupo tão vulnerável como a população de rua; e fico encantada com seus sermões, sempre insistindo nos valores do cristianismo da igualdade e da solidariedade. Acompanho também a vigorosa tomada de posição da CNBB, parceira de nossa Comissão Arns. Conheço vários pastores e membros de Igrejas Evangélicas que são comprometidos com DH. E sou defensora do ecumenismo. Creio, porém, que, na sua maioria, os neopentecostais não parecem sensíveis à defesa dos DH, pois são adeptos de uma perversa meritocracia — se você se esforçar e pagar o dízimo terá sucesso em dobro.

 

CC: Como é sua rotina hoje, em plena pandemia, para acompanhar discussões relativas aos direitos humanos?

MG: Tudo que envolve a questão da segurança pública e, claro, as polícias militares, está relacionado a um dos mais graves problemas sociais, a violação dos direitos à vida. O massacre do Jacarezinho, no Rio (minha cidade tão querida e tão abandonada pelo poder público!) é um exemplo do abandono das populações periféricas a mercê das milícias, do crime organizado e da violência policial.

Assistimos há vários anos a omissão das autoridades e a luta sem trégua das entidades de DH, da Defensoria Pública, das Ouvidorias, da parte sadia do Ministério Público, de alguns parlamentares que até arriscam a vida. Acompanho as iniciativas através de nossa Comissão Arns, onde tivemos, recentemente, ótimos encontros virtuais com militantes e com o Ouvidor da Polícia de SP.

Não vejo avanços concretos, infelizmente, apesar de gente muito dedicada. Mas continuaremos a denunciar, a publicar, a exigir respostas das autoridades. Em nome do direito à vida e à dignidade. Uma luta sem fim.

CC: Dom Paulo costumava pedir coragem para transmitir esperança aos parceiros da comissão. A senhora consegue manter as esperanças em um contexto de tantos retrocessos?

MG: O livro que o Camilo escreveu tem por subtítulo Coragem e Esperança. É o que me animou a vida toda, desde o meu envolvimento com a questão social no Brasil e os direitos humanos. Dom Paulo Evaristo Arns foi nosso Pastor, o guia que nos motivava e nos dava forças com sua benção com a marca registrada de: “Coragem”!

Ficaria feliz se soubesse que este livro contribuiu para esclarecer o significado do compromisso com a defesa dos direitos humanos, sobretudo em nosso país, marcado pelo racismo, pela banalidade da violência contra os mais vulneráveis, pelo horror à igualdade na dignidade. Ficaria duplamente feliz se soubesse que o livro serviu para incentivar novas militâncias no campo dos direitos humanos.

Margaria e Dom Paulo Evaristo Arns, em 2003 (Foto: Acervo Pessoal)

CC: E o que dizer hoje para quem já perdeu as esperanças?

MG: Entendo a falta de esperança diante as injustiças, da precariedade da vida de tantos, diante do exemplo abominável dado exatamente por quem deveria liderar os caminhos do desenvolvimento sustentável, do respeito aos povos indígenas, da defesa da ciência e da educação…mas faz justamente o contrário.

Eu entendo. Mas quero dizer que a esperança é motor para a coragem. Quero dizer que, aos 98 anos, prefiro investir o que ainda tenho de energia física e intelectual – dou graças! – para repetir as palavras da saudosa Madre Cristina: “a esperança é revolucionária”.

Minha esperança é reforçada por acreditar na Educação em Direitos Humanos, desde o ensino fundamental. É um sentimento de urgência que me acompanha desde os anos 1980 quando, com apoio do educador Paulo Freire, a Comissão Justiça e Paz iniciou um projeto de EDH na cidade de São Paulo e depois contou com a adesão de entidades em vários estados.

Fundamos a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos que viria a sofrer uma interrupção, mas renasceu em 2020. A Nova RBDH voltou com o entusiasmo de educadores em todo o país, mobilizados pelo horror deste governo. Sim, estou convencida de que a defesa dos DH deve atingir “corações e mentes”, isto é, com racionalidade na definição de políticas públicas, mas também com o cultivo das emoções que levam à empatia, ao respeito à igualdade na dignidade de todos, à diversidade com repúdio às diferentes formas de racismo e intolerância, à valorização da solidariedade ativa, da justiça social e da convivência pacífica e cidadã.

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