Sociedade

“Jovens da Candelária eram tratados como lixo social”

Autora de livro analisa narrativas do assassinato dos oito meninos, ocorrido num contexto em que pobres e ‘ladrões’, ainda que menores, nunca são encarados como vítimas

Créditos: Fernando Frazão / Agência Brasil
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Um massacre chocou o Brasil 30 anos atrás. Na noite de 23 de julho de 1993, nos arredores da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, oito jovens de 11 a 19 anos foram brutalmente assassinados – seis deles eram menores de idade. Eles faziam parte de um grupo, na maioria adolescentes, de pessoas que, sem teto, dormiam nas proximidades da igreja. Mais tarde, investigações comprovaram que os disparos foram feitos por milicianos.

Três décadas mais tarde, homicídios do tipo se tornaram incomuns na imprensa. “A gente quase não ouve mais falar de chacina de menores como foi nos anos 1990 e início dos anos 2000, mas menores continuam morrendo cotidianamente nas comunidades ou nas ruas do Rio de Janeiro”, pontua a jornalista Danielle Brasiliense, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde coordena o Observatório de Mídia e Violência.

Doutora em comunicação e cultura pela Université Saint Quentin de Ivelines, em Versalhes, na França, ela é autora do livro A chacina da Candelária e as memórias narrativas de O Globo e, mais recentemente, de A mídia, o perverso e o gosto da violência – em que há um texto sobre as recentes chacinas em escolas.

Brasiliense começou a estudar o tema em 2005, em sua pesquisa de mestrado. Em entrevista à DW Brasil, a jornalista conta que buscou compreender a memória narrativa a respeito desses menores assassinados, tratados como “lixo social” por parte da sociedade e que, segundo ela, não passaram a ser vistos como vítimas de uma brutalidade após o massacre.

DW Brasil: Como surgiu o interesse em estudar o tema?

Danielle Brasiliense: A pesquisa [de mestrado, realizado entre 2005 e 2006] tomou corpo quando estudei, ainda na graduação, para a monografia, as coberturas dos jornais sobre o sequestro do ônibus 174 [ocorrido no Rio, em junho de 2000], que foi protagonizado por um sobrevivente da chacina da Candelária [o jovem Sandro do Nascimento]. A partir da observação a respeito das abordagens dos jornais sobre o jovem Sandro, classificado como “um monstro, sanguinário e frio”, como destacou O Globo na época, tive a ideia de pensar a memória daqueles menores da Candelária. O interesse era compreender como se construiu a imagem deles entre 1992, quando eles apareciam na imprensa como “meninos de rua”, passando pelo momento da chacina e depois pelos anos que se seguiram. O objetivo era compreender a memória narrativa a respeito desses menores, que roubavam os comércios do centro do Rio e que, portanto, eram tratados como lixo social e, na mentalidade de muitos, deveriam ser expurgados daquele lugar, pois atrapalhavam a ordem não só do direito à segurança das pessoas que passavam por ali, mas a própria ideia de ordem social.

DW: Você vê uma mudança de abordagem e postura da narrativa da imprensa quando há uma cobertura sobre violências do tipo ou menores em situações de rua?

DB: Veja bem, a gente quase não ouve mais falar de chacina de menores como foi nos anos 1990 e início dos anos 2000, mas menores continuam morrendo cotidianamente nas comunidades ou nas ruas do Rio de Janeiro. Inclusive por crimes cometidos por policiais ou ex-policiais, a milícia, como chamamos hoje, e como foi o caso da chacina. Os anos 1990 protagonizaram um momento muito específico na história da imprensa do Brasil, que nada mais foi do que um papel do tipo “espreme que sai sangue”. A violência urbana e a espetacularização desta estavam em voga, o que levou os jornais a ganharem muita grana na época com essas temáticas que suscitam a curiosidade e o interesse popular. Assim como as reportagens sangrentas sobre a guerra às drogas, que estampavam fuzis e gente morta nas capas dos jornais todos os dias. Isso ainda existe, sim, de certa forma, mas acho que há hoje uma conscientização maior sobre o que é umas criança pobre e negra nas ruas da cidade. Ainda são chamados de trombadinhas, ainda se grita por “pega, ladrão”, vemos crianças e adolescentes muitas vezes sendo espancados pela polícia ou pela população, mas os jornais estão mais comportados. Houve muita discussão sobre essa questão, muita luta liderada por ONGs e comunidades. Então, acredito, no meu mundo de Alice [diz ela, rindo, aludindo à protagonista de Alice no país das maravilhas, livro de Lewis Carroll], que também temos hoje mais informação e pessoas informadas para compreender a complexidade da realidade de um país tão desigual. Os jornais não tratam crianças e comunidades como naquela época. Evoluímos? Prefiro acreditar que sim, mesmo vendo as vezes forças contrárias a isso.

DW: De que formas as narrativas apresentadas pela mídia em 1993 contribuíram para criar uma imagem do massacre no público em geral?

DB: O que mostro no livro é que o acontecimento da chacina da Candelária, no momento em que menores em situação de rua foram assassinados, eles não passaram para um lugar de vítimas de uma brutalidade, mesmo sendo um acontecimento brutal que chocou a população, com repercussão internacional. Talvez, se não fossem as reivindicações de pessoas que ajudavam aqueles menores e as ONGs que chamaram a atenção da imprensa com seus clamores de justiça, esse acontecimento não seria conhecido, seria banalizado e normalizado, como aconteceu e acontece na nossa história tantas vezes.

DW: Os relatos não se preocuparam em criar uma empatia com as vítimas, então?

DB: A imprensa estava interessada também em vender aquela chacina. Foi uma história apelativa para seu público: várias crianças mortas ao mesmo tempo na calada da noite em frente a uma igreja… Se isso não se parece com um conto de Allan Poe [escritor americano conhecido por criar textos macabros], um acontecimento mais que bizarro… O que mais seria? Sim, a nossa dura e crua realidade… Infelizmente, contada como um conto policial, no qual nunca pobres, ladrões, ainda que menores de idade, devem ser tratados como vítimas de alguma coisa.

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