Diversidade

A ‘ideologia de gênero’ é mito ou realidade?

Essa expressão está na boca de vários integrantes e apoiadores do governo Bolsonaro, mas o que exatamente ela significa?

(Foto: Marcelo Camarco/EBC)
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Em seu discurso de posse, no dia 1º, Bolsonaro prometeu combater a ideologia de gênero. Essa expressão está na boca de vários integrantes e apoiadores do novo governo, mas o que exatamente ela significa?

Do ponto de vista acadêmico, a ideologia de gênero não passa de ficção. O que existe são os estudos de gênero, que buscam discutir as causas da desigualdade política, econômica e social entre homens e mulheres. Na visão de especialistas, associar esses estudos a ideologia é uma tática para minar a credibilidade dessas pesquisas.

“Essa expressão desqualifica gênero como um conceito e desconsidera seu caráter analítico e científico. O raciocínio que se espera é: se gênero é ideologia, as pessoas deveriam ficar longe dele”, avalia o antropólogo Bernardo Fonseca Machado, professor da UFGO e autor do livro Diferentes, não desiguais (Companhia das Letras).

História

Embora no Brasil a expressão tenha ganhado amplitude por meio de lideranças e entidades evangélicas neopentecostais, foi na Igreja Católica que começaram as primeiras incursões contra a chamada agenda de gênero. O termo apareceu pela primeira vez em 1997 em um livro chamado The Gender Agenda: redefining equality.

Ligada ao movimento anti-aborto na igreja católica americana, a autora Dale O’Leary alertava para os perigos de um novo olhar sobre as relações entre homens e mulheres, inspirado pela Segunda Onda do feminismo nos anos 70. E que emergira nos anos 90 pela obra da filósofa Judith Butler.

No livro ela relata – sob seu ponto de vista – a Conferência Mundial sobre a Mulher de 1995, que apresentou o conceito de gênero e estabeleceu essa perspectiva nas políticas públicas para mulheres. Surgia ali a paranoia de um complô mundial para destruir a família e os valores tradicionais.

Essa guerra estaria assentada na descriminalização do aborto e na aceitação de novos arranjos familiares, além da dessacralização do matrimônio. Caberia, então, aos católicos e conservadores defender o mundo desse avanço.

“De um lado, alegava-se a necessidade de manutenção da ‘família natural’ – às mulheres era destinado o cuidado da família e da casa. De outro, defende que a escola não deveria interferir na educação infantil. E, por fim, qualifica a experiência de vida de pessoas LGBTI+ como marginais, negando, inclusive, a equivalência entre relações heterossexuais e homossexuais”, completa o pesquisador.

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Gênero x sexo

Na visão dos cruzados anti-ideologia de gênero, a diferenciação entre ‘sexo’ e ‘gênero’ por si só já traria embutida a ideia de que o mundo não é divido em homens e mulheres, e que cada indivíduo poderia “escolher” ser homem ou mulher.

Para os estudos de gênero, a desigualdade não é um destino natural e assentado nas diferenças biológicas entre homens e mulheres. Mas sim nos papéis socialmente construídos com base em interpretações dessas diferenças e portanto, mutáveis.

Além disso, as pesquisas sobre gênero vão muito além das ciências humanas. “Mesmo a forma de encarara biologia é atravessada por expectativas de feminilidade e de masculinidade constituídas cultural e historicamente”, diz Bernardo.

Ele cita como exemplo uma pesquisa recente do Pacific Northwest Research Institute, de Seattle, que mostrou que os óvulos não são células “passivas” que aguardam ser “penetradas” pelo “espermatozoide vencedor”. Ao contrário da genética mendeliana, participam ativamente do processo de escolha do melhor gameta.

“Esse conjunto de estudos traz questões, sobretudo, para aspectos de nossa vida: a engenharia por trás de cintos de segurança leva em conta corpos femininos ou masculinos? Por que criamos anticoncepcionais para mulheres e não para homens?”

Infância

O pânico de uma ‘erotização infantil’ está no cerne da velha polêmica sobre o ‘kit gay’ e da recente guerra colorida invocada pela ministra Damares Alves. E é aqui que os políticos evangélicos assumem a dianteira na cruzada contra a ideologia de gênero.

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Solenidade de apresentação da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, e dos secretários da Pasta. (Foto: Agência Brasil)

Em meados de 2014, a ‘bancada da Bíblia’ se organizou nas casas legislativas de todo o país para excluir “gênero” e “orientação sexual” dos planos nacionais, estaduais e municipais de educação.

É também nesta época que ganha força o Escola Sem Partido. Criado em 2004 para combater uma suposta doutrinação marxista (que teria tomado conta das escolas desde o fim da ditadura), o movimento passou a lutar contra a tal ‘erotização’ infantil.

“Esses grupos diziam que a ‘ideologia de gênero’ que não poderia constar nas escolas. Mas o termo já estava em voga em diversos países da Europa muitos anos antes”, explica Machado.

Na visão dele, esses grupos escolheram um falso inimigo e têm uma visão equivocada no papel da escola: além de alfabetizar, o convívio escolar promove uma introdução gradual a vários saberes teóricos e científicos.

“Discutir gênero é oferecer um vocabulário para pensar o mundo e a si. Se na escola aprendemos o que é um substantivo, o Dia da Abolição, uma célula, então a escola também deve ser o espaço para aprender o que é gênero, o que é violência de gênero, o que é consentimento, o que é abuso sexual.”

Homossexualidade

Na visão dos ideólogos de gênero, além de destruir o matrimônio e a família, a igualdade das mulheres em relação aos homens serviria também para promover o “estilo de vida” homossexual. Essa velha ideia ganhou sobrevida com a vitória de Jair Bolsonaro, um político inexpressivo que ganhou notoriedade pela retórica homofóbica.

Já houve alguns retrocessos desde a posse, como retirada das menções aos LGBTI+ das diretrizes de Diretos Humanos e ameaça às políticas de combate ao HIV, que são referência no mundo todo.

Machado rejeita a ideia de que a ofensiva do governo contra as minorias sexuais sejam mera “cortina de fumaça”. Na opinião dele, o alarde que o governo faz a respeito desses assuntos serve justamente para interditar o debate.

“Dessa forma, evita tratar da evasão de pessoas LGBTI+ das escolas, do mercado de trabalho para mulheres. Da dificuldade que o sistema de saúde tem para, por exemplo, cuidar de homens”, exemplifica. “Se o governo ‘berra’ dizendo que não vai tratar do assunto, é nossa responsabilidade republicana mostrar como o silenciamento proposital do debate de gênero é, em si, uma violência.”

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