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Fogo cruzado

Fortalecido pela farra das armas nos anos Bolsonaro, o crime organizado tornou-se a principal preocupação da sociedade e a maior dor de cabeça do governo Lula

Imagem: iStockphoto
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Quem vive no Brasil tem quatro vezes mais motivos para comemorar o fato de não ter sido assassinado do que a média dos habitantes do planeta. Segundo o Estudo Global sobre Homicídios de 2023, divulgado pelas Nações Unidas no início de dezembro, o País registra 22,38 homicídios para cada 100 mil habitantes, proporção semelhante à de uma guerra e quase quatro vezes maior do que a média global, de 5,8. Em números absolutos, o Brasil lidera o ranking de assassinatos em um único ano nesta década. Sob o impacto da “corrida armamentista” promovida pelo governo de Jair Bolsonaro, 47.722 mortes violentas foram registradas em 2020.

Outra pesquisa, divulgada pela Quaest e a UFMG, revela que mais da metade da população brasileira (51%) já foi vítima de assalto, roubo ou furto em suas residências ou locais de trabalho, em transportes públicos ou simplesmente ao andar pelas ruas. Tanto num caso como no outro, os números podem ser explicados pela grande circulação ilegal de armas de fogo no território nacional, assim como pelo variado cardápio que alimenta tanto o crime organizado, com armas de guerra ou de uso exclusivo das forças de segurança, quanto o assaltante “comum” com armas de menor calibre.

A chance de ser assassinado no Brasil é quatro vezes maior do que no mundo

Promessa de campanha de Lula, o plano de desarmamento registrou no primeiro ano de governo alguns números e episódios marcantes. A ação de maior impacto efetuada pela Polícia Federal teve como alvo o esquema operado por Diego Hernán Dirísio, considerado o maior traficante de armas da América do Sul. O argentino é responsável, segundo os investigadores brasileiros, por abastecer o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), as duas maiores facções do crime organizado no Brasil, com pelo menos 43 mil armas contrabandeadas nos últimos três anos. Realizada no Paraguai, com apoio local da Secretaria Nacional Antidrogas e do Ministério Público paraguaios, a Operação Dakovo resultou na prisão de cinco suspeitos no Brasil e outros 14 no país vizinho, mas Dirísio permanece foragido. Segundo a PF, foram apreendidos 2.325 armamentos nesta primeira fase, e ainda restam a ser cumpridos 31 mandados de prisão e 54 mandados de busca e apreensão nos dois países e também nos EUA.

As investigações apontam que a Auto Supply, empresa montada por Dirísio no Paraguai, importou, entre 2020 e 2023, uma média de 15 mil fuzis e pistolas por ano de países como Croácia, Eslovênia e Turquia, entre outros. As armas tinham suas numerações raspadas em Assunção e, após receberem logotipos falsos de outras marcas, seguiam para o Brasil em um negócio que, segundo a PF, movimentou 1,2 bilhão de reais no período. Puxar o fio desse novelo, ou “seguir o dinheiro”, como deseja o Ministério da Justiça, será um passo importante no combate ao comércio ilegal de armas no ­País. E também um bom motivo para que apresentem resultados a força-tarefa do Ministério da Justiça integrada por agentes do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e o recém-criado, em parceria com o governo do Rio de Janeiro, Comitê de Inteligência Financeira e Recuperação de Ativos (Cifra).

Os 47 fuzis apreendidos numa mansão da Barra da Tijuca, no Rio, iriam para soldados de Johnny Bravo, chefe do tráfico de drogas na Rocinha – Imagem: PF-RJ/D.R.E e Diego Herculano/AFP

“A existência de grandes estoques de armas de fogo em circulação tem um impacto muito grande no altíssimo número de homicídios”, atesta o pesquisador Roberto Uchoa, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Estudos mostram que a maior parte das armas utilizadas em homicídios é de fabricação nacional, o que contradiz a ideia de que elas sejam contrabandeadas para o Brasil. “A principal arma utilizada no Brasil nas últimas décadas tem sido o revólver calibre 38 de fabricação nacional. São armas que entraram em circulação antes da vigência do Estatuto do Desarmamento. Foram legalmente adquiridas, mas entraram no mercado ilegal devido à falta de regularização, furtos, roubos e extravios por empresas de segurança privada, delegacias e até quartéis militares”, diz o especialista.

As armas às vezes surgem de lugares inusitados. Em outubro, a PF desbaratou uma linha de montagem clandestina de fuzis que funcionava dentro de uma fábrica de móveis e esquadrias de alumínio em Belo Horizonte, a Manchester Indústria e Comércio, especializada em serviços de solda. Os policiais chegaram ao endereço após a prisão, efetuada na véspera, do dono da fábrica, Silas Diniz Carvalho, em uma mansão no Rio, onde foram apreen­didos 47 fuzis, além de farta munição. Segundo o inquérito, todo o armamento apreendido havia sido comercializado com John Wallace Viana, o Johnny Bravo, chefe do tráfico de drogas na Rocinha, e estava prestes a ser remetido à favela carioca. Já na cidade mineira de Contagem, onde Carvalho residia, foram apreendidos peças de fuzis, munição, dinheiro e joias, além de um Lamborghini preto avaliado pela Receita Federal em 1 milhão de reais.

Líder habitual nos rankings nacionais de violência, o Rio de Janeiro não nega fogo, literalmente, nas estatísticas de 2023. Dados do Instituto de Segurança Pública revelam que, até o fim de setembro, foram apreendidas no estado 4.980 armas de fogo, entre elas 478 fuzis. Curiosamente, a repercussão do fato fez com que o ISP parasse de realizar a atualização mensal dos dados, mas apenas a apreensão realizada na mansão de Carvalho faz com que essa conta supere os 500 fuzis apreendidos em 2023, um recorde desde o início da medição histórica em 2007. Segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), também com dados atualizados até o terceiro trimestre, o top five dos fuzis é completado por São Paulo (117 apreensões), Rio ­Grande do Sul (63), Bahia (38) e Paraná (36).

Apenas no Rio, foram apreendidas 4.980 armas de fogo de janeiro a setembro deste ano

“O Rio continuará a ser por um bom tempo o centro de difusão de fuzis no Brasil”, observa o sociólogo e especialista em Segurança Pública Ignacio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ele diz que o crime no Rio “funciona sob a ótica do controle territorial” e o uso de fuzis acontece para evitar a invasão de grupos rivais: “É uma visão militar, tanto por parte do crime organizado quanto das forças de segurança. O PCC, por exemplo, não tem tanta necessidade de fuzis porque não disputa território com ninguém e não tem essa visão tão militarizada. Consequentemente, a polícia de São Paulo também não usa fuzis tão frequentemente como a polícia do Rio”.

Vítimas ou responsáveis em casos de desvio de armas – de difícil quantificação, uma vez que os dados são fornecidos pelos governos estaduais e não existe uma checagem confiável –, as polícias ganharam de vez, em 2023, a concorrência das Forças Armadas e dos chamados CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores de armas). Com 48 ocorrências de desvio de armamentos ou munições até outubro, o Exército também registrou seu recorde, marca que teria sido evitada não fosse o episódio do sumiço de 21 metralhadoras antiaéreas do Arsenal de Guerra em Barueri, na Grande São Paulo. Dois meses após o crime, uma ação coordenada entre o Comando Militar do Sudeste e a Polícia Civil conseguiu recuperar 19 metralhadoras. Dez foram abandonadas nas cercanias da favela Gardênia Azul, em área de disputa entre milicianos e traficantes no Rio, e outras nove foram localizadas em uma área de mangue no município paulista de São Roque.

As investigações apontam que o desvio teria sido arquitetado por Jesser Fidelix, o Capixaba, apontado como fornecedor de armas e drogas para as facções criminosas do Rio. Segundo o Exército, foi pedida à Justiça Militar a prisão de seis militares que teriam sido responsáveis diretos pelo desvio das armas e outros 17 serão responsabilizados na esfera administrativa. Comandante do Arsenal de Guerra, o tentente-coronel Rivelino Batista foi exonerado por ordem do comandante da Força, general Tomás Paiva, e o inquérito continua em andamento. Para o especialista em questões de Defesa e historiador Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, é importante investigar os casos de desvio tanto quanto o contrabando. E isso inclui armas particulares: “São armas legais, em boa parte vendidas a partir da liberação no governo Bolsonaro, mas que passaram rapidamente das mãos de CACs ou mesmo de policiais e militares para o crime organizado”.

A Polícia Federal apreendeu mais de 2,3 mil peças de variados calibres com a quadrilha liderada pelo argentino Diego Dirísio, considerado o maior traficante de armas da América do Sul – Imagem: Redes sociais e SENAD/Paraguai

Nunca tantas armas pertencentes a civis foram parar nas mãos de bandidos como em 2023. Até o fim de outubro, houve o registro de 1.250 casos. A média mensal deve superar os 130 casos, outro recorde. “Entre os avanços do primeiro ano do governo Lula há que se destacar o decreto que regulamentou os CACs, instrumento vulgarizado na gestão anterior, o que permitiu mais de 1 milhão de armas circulando no País. Grande parte delas caiu nas mãos de organizações criminosas, em especial das milícias”, diz o advogado Marco Aurélio Carvalho, do Grupo Prerrogativas, coordenador do grupo de trabalho sobre controle de armas na transição de governo.

Ignacio Cano avalia que, ao utilizar os CACs para difundir armas na população de forma quase descontrolada, o governo Bolsonaro abriu uma janela que foi aproveitada pelo crime organizado. “A farra dos CACs foi limitada na atual gestão, assim como foram reduzidas as condições de acesso a armas e munições. Mas isso ainda é insuficiente”, alerta. “As armas de atiradores deveriam ficar acauteladas no próprio clube de tiro e só sair de lá excepcionalmente como, por exemplo, em competições. Já os colecionadores deveriam ser absolutamente proibidos de ter qualquer munição e suas armas de coleção deveriam ser inutilizadas.”

Diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo avalia que as medidas tomadas até aqui pelo governo “vetaram o ingresso de novas armas em circulação na velocidade que o País vivia antes”. Pede, porém, avanços como a retomada de armas pelo Poder Público. “É preciso algo diferente da entrega voluntária, na qual a pessoa vai lá e recebe apenas 300 reais. Hoje, muitas pessoas têm armas avaliadas em 15 mil ou 20 mil reais, então precisa haver um programa de recompra com orçamento mais robusto.” Ela afirma que será “muito ruim” se o governo não tiver essa prioridade. “Essas armas vão ficando nas mãos das pessoas que as compraram e que, possivelmente, não vão mais conseguir usar ou renovar o registro.”

Até outubro, 1.250 armamentos de civis foram parar nas mãos de criminosos

Outras medidas devem ser mais específicas, propõe Roberto Uchoa. “O calibre 9 milímetros era de uso restrito das forças de segurança até o governo Bolsonaro, mas passou a ser permitido e se tornou a arma mais vendida no País, com cerca de 600 mil pistolas comercializadas. Agora, voltou a restrição, mas é preciso dar uma alternativa para que as pessoas entreguem essas armas que estão em circulação”, diz o conselheiro do FBSP. Uchoa propõe ainda que o governo acelere a migração dos bancos de dados e do controle de armas do Exército para a Polícia Federal: “Nosso mercado de armas de fogo dobrou de tamanho. Não basta a migração para a PF, é preciso também dar estrutura e ­pessoal para que se faça esse controle de forma adequada. Não dá para continuar a ter uma indústria armamentista fortíssima, uma enorme quantidade de armas de fogo em circulação e um índice de homicídios altíssimo sem ter nenhum controle sobre isso”.

Para que o combate ao armamento ilegal e outras iniciativas tenham sucesso ao fim do mandato de Lula, Francisco Teixeira pede urgência na aplicação de um programa nacional de segurança pública: “A ideia de que, pelo fato de o Brasil ser uma federação, o governo federal tem pouco a contribuir é uma falácia, um jogo de empurra entre os entes federativos. Há de se reconhecer que o crime de desvio, comércio e transação de armas é transfronteiriço e, portanto, da alçada federal”. Ele avalia que o governo não parece interessado em se envolver diretamente na questão de segurança cidadã: “Até agora, todos os planos apresentados são parciais”.

No Brasil, até mesmo o mercado legal de armas pede uma regulamentação mais efetiva. Em 2018, quando Bolsonaro ganhou as eleições, o País tinha cerca de 350 mil armas registradas. No fim de 2022, esse número havia subido para 1,5 milhão. Isso significa que havia mais armas circulando livremente nas mãos de civis do que com as forças de segurança, incluindo Exército e polícias. Em quatro anos, foram vendidos mais de 900 milhões de munições, cinco projéteis para cada brasileiro.

Policiais encontraram um arsenal em uma fábrica clandestina de Belo Horizonte. Com Bolsonaro, o número de revólveres, pistolas, rifles e fuzis em circulação saltou de 350 mil para 1,5 milhão – Imagem: Redes sociais

Na esteira desse mercado, a fabricante Taurus bateu recorde de vendas em 2022, quando sua receita aumentou 47,4% em razão da crescente demanda doméstica. No ano passado, o lucro líquido da empresa foi de 295,8 milhões de reais. O sucesso trilhou, porém, os caminhos da publicidade ilegal em peças produzidas para as redes sociais e o site da empresa. Por entender que tais propagandas feriam a legislação, em especial o Estatuto do Desarmamento e o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Rede Liberdade, em parceria com a Comissão Arns, Idec, Intervozes e Coletivo Brasil de Comunicação Social, acionou a Justiça paulista para tirar o conteúdo do ar.

Neste ano, a Taurus foi obrigada a remover as propagandas de armas e proibida de promover esse tipo de conteúdo em locais não apropriados. O descumprimento da sentença acarreta multa diária de 100 mil reais. Para a diretora-executiva da Rede Liberdade, Amarílis Costa, as ações da empresa na internet podem ser consideradas ilegais e abusivas e configuram violação de direitos. “O Estado restringe ao máximo a circulação de armas, pelo menos no plano da Lei, e a veiculação dessas propagandas, que pautam a questão da autodefesa e apresentam as armas como alternativa de proteção pessoal, ferem esse princípio.”

A decisão da Justiça de São Paulo contra a Taurus não é definitiva, e a advogada alerta: “Existem muitos efeitos deletérios, e é preciso reforçar o aspecto de ilegalidade nesse tipo de propaganda”. Amarílis ressalta que esses efeitos estão relacionados, sobretudo, a crianças, à juventude negra e periférica e às mulheres. “Ao defender a supressão desse tipo de propaganda, não estamos tratando só da Taurus, mas de um comportamento social, de uma pauta política de incentivo à aniquilação de vidas vulneráveis.” •

Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.

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