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Uma planta trepadeira folhosa alastrou-se por todos os vespertinos da tevê em forma de pílulas, drágeas e pacotes de ofertas imbatíveis

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Como vivemos por tanto tempo sem acesso a essas dádivas? – Imagem: ilustração Regina Assis/ istockphoto
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Não vou negar. Estamos imersos em um mar de incertezas, medos e angústias. Sair da cama tem sido uma decisão difícil. O futuro não só é incerto como, tudo leva a crer, nefasto. Mas eu pergunto: isso é motivo para você se desesperar?

Claro que não! Agora você tem ao alcance de suas mãos e, mais importante, do seu bolso, a solução para quase todos os problemas de sua tristonha existência.

Você já ouviu falar em Ora-Pro-Nóbis? Se não ouviu, considere a possibilidade de que algum problema auricular o tenha acometido. Mas vamos pensar positivo e acreditar que você ainda não conhece Ora-Pro-Nóbis porque não sintonizou a sua televisão no programa certo.

Trata-se de uma planta trepadeira folhosa que se alastrou por todos os vespertinos da tevê em forma de pílulas, drágeas e pacotes de ofertas simplesmente imbatíveis. Você pode comprar 18 frascos com 236 pílulas e ganhar, sem nenhum custo extra, outros 18 frascos com iguais 236 pílulas.

A oferta não para por aqui, mas eu percebo que você está absolutamente desesperado para conhecer todos os benefícios que essa singela planta tem a oferecer. Mencionei o medo, a tristeza, a angústia e a depressão que diariamente pisoteiam nossos corações e cérebros – o que restou deles.

Quatro pílulas diárias de Ora-Pro-Nóbis e os 50 tons de cinza que obnubilam sua vida simplesmente se transformarão em um arco-íris de esperança.

Por quê? O consumo diário de Ora-Pro-Nóbis melhora muito o funcionamento do nosso intestino. E o intestino, os mais recentes e importantes estudos atestam, é o nosso segundo cérebro, ainda que eu acredite que, para alguns, seja o único.

Você conhece alguém enfezado que seja feliz? Preciso dizer mais? Não precisaria, mas vou. De acordo com mais de 500 menções nos citados programas vespertinos, as plantas comestíveis não convencionais, a exemplo do OPN (abreviado é melhor), são estupendas fontes de proteína. Ou seja, doravante você poderá ir a um churrascão, entupir-se de OPN e simplesmente curtir o melhor do catálogo sertanejo, sem correr o risco de ter uma veia entupida por gorduras animais.

E por falar em veias entupidas, não desligue nem mude de canal, porque também vamos falar do Ômega 3. Não exatamente de um Ômega 3 vulgar, que você compra em qualquer farmácia. Vamos falar sobre aquele das profundezas, comercializado com absoluta exclusividade por um importante canal da tevê aberta. Só ele é extraído a frio nos fiordes noruegueses, que não sofrem a influência do El Niño polar.

A exemplo do OPN, você, se for rápido e ligar agora, conseguirá adquirir o mais puro lote de drágeas gelatinosas de Ômega 3 através de um empréstimo consignado sem burocracia.

A verdade, que pauta este artigo, tem de ser dita: você não teve muita sorte na vida. Pouca gente neste país teve. Mas ainda bem que podemos contar com a generosidade desses empresários brasileiros. Um ser maior que pauta suas ações visando o bem do próximo. Lucro? Se houver, será bem-vindo, mas jamais estará no topo da cadeia alimentar daquele que empreende.

Mas, atenção: o lobby farmacêutico fará de tudo para nos manter distantes de maravilhas como o Colágeno do Himalaia e o Ômega 3 das profundezas

Tanto é verdade que, ao decidir que você não merece sofrer, ter dores nas juntas provocadas por inflamações e muito menos ter veias entupidas que podem te levar a um infarto ou a um AVC, eles, esses humanos exemplares, vão te agraciar com um suplemento extra de Colágeno do Himalaia.

Faço agora uma pausa para uma confissão: como pude viver por décadas sem o Colágeno do Himalaia? Minhas unhas, cabelos, pele, meu sorriso, tudo mudou. Pense comigo: por que um iaque, o famoso boi do Himalaia, consegue sobreviver a temperaturas inferiores a 40 graus negativos? Vamos continuar escalando essa montanha de argumentos e nos lembrar dos xerpas, os impressionantes guias que há séculos conduzem os maiores alpinistas do planeta ao cume da glória. Sim, vocês já entenderam: o Colágeno do Himalaia.

Permitam-me imaginar que, nesta altura, vocês já devem estar erguendo as mãos para o céu ou para a prateleira onde se encontra o controle remoto de sua tevê, ainda que uma atitude não exclua a outra. Sim, devemos ser gratos principalmente aos legisladores que nos permitem ter acesso a essas maravilhas da ciência. Com certeza, são os mesmos que proíbem o jogo no País, mas liberam as casas de apostas esportivas.

E na carona das apostas, da grana, eu não poderia me furtar de mencionar a significante economia financeira que uma tarde na tevê nos traz. Vocês, claro, têm ideia do valor de uma consulta médica. E não erro quando digo que muitas foram as vezes que saímos frustrados de um consultório, sem um diagnóstico, mas apenas e tão somente com um pedido de 120 exames.

Francamente! Assim, até eu. Indo além, no retorno, com resultados em mãos, posso apostar, posto que isso por aqui é permitido, que teríamos recomendações muito semelhantes às que recebemos, gratuitamente, em nossas tardes diante dos bons programas já citados.

Contudo, alerto, jamais teriam a coragem de prescrever o Ora-Pro-Nóbis para o anêmico. Mesmo que não sejamos pessoas brilhantes, sabemos reconhecer que existe um forte lobby farmacêutico que de tudo fará para nos manter distantes da trepadeira folhosa, do Ômega 3 das profundezas, do Colágeno das alturas.

Mas somos livres. Vivemos em uma democracia e ninguém vai nos proibir de ligar a televisão em busca de uma qualidade de vida melhor, mais saudável. •

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

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