Sociedade

‘Espanta-nos saber que agora existe um ‘dono’ para o nome católicas’

Representante da ONG que defende o aborto legal descreve espanto com decisão: ‘Somos católicas, sim’

(Foto: Mídia NINJA)
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Fundada em 1993, a organização não governamental Católicas Pelo Direito de Decidir não pode mais usar o termo “católicas” no nome. Pelo menos é o que determina o Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão da 2a. Câmara de Direito Privado, datada de 20 de outubro — segundo o entendimento, se a organização não alterar seu nome em quinze dias, inclusive reformando o estatuto social, a multa diária será de R$ 1 mil.

Até a tarde desta quarta-feira 28, a ONG ainda não havia sido notificada oficialmente. De acordo com a psicóloga Rosângela Talib, membro do Conselho Institucional da entidade, elas ficaram sabendo da decisão judicial pela imprensa e planejam recorrer.

Alinhada a outras 11 organizações semelhantes ao redor do mundo, a Católicas Pelo Direito de Decidir é feminista e pró-aborto nos casos previstos em lei — anencefalia, risco de morte da mãe e estupro. De acordo com a definição da própria instituição, o grupo é formado “por mulheres que são católicas” e “propõe um questionamento sobre determinadas leis eclesiásticas da instituição, em especial aquelas relacionadas ao aborto, direitos reprodutivos e à autonomia das mulheres sobre o próprio corpo”.

Na fundamentação da decisão judicial, o relator, desembargador José Carlos Ferreira Alves, argumentou que não pode ser “minimamente racional e lógico o uso da expressão ‘católicas’ por entidade que combate o catolicismo concretamente com ideias e pautas claramente antagônicas a ele”. A decisão atendeu ao pedido do Centro Dom Bosco, organização católica sediada no Rio de Janeiro conhecida por posturas ultraconservadoras — foram eles, por exemplo, que entraram com ação para tentar censurar o especial de Natal do grupo humorístico Porta dos Fundos, na plataforma Netflix no fim do ano passado, em que Jesus Cristo era retratado como homossexual.

No processo, o Centro Dom Bosco diz que a entidade tem direito a expressar sua posição desde que use um “nome coerente”. E enfatiza que, “sob o pretexto de defender os ‘direitos reprodutivos das mulheres'”, o que a ONG faz é praticar a “autêntica promoção de conduta que nada mais é que o ‘homicídio de bebês no útero materno'”.

Rosângela Talib atendeu à reportagem da DW Brasil na tarde desta quarta-feira.

DW Brasil: Como a senhora soube da decisão judicial? Qual foi sua reação?

Rosângela Talib: Soubemos pela imprensa. Era uma ação que já corria fazia tempo. Eles tinham perdido em primeira instância, recorreram e agora, pelo que soubemos, ganharam. É uma instituição [o Centro Dom Bosco] religiosa bastante conservadora. [Fiquei] surpresa com a decisão. Surpresa com a decisão favorável a essa instituição. Mas, como cabe recurso, vamos recorrer.

A senhora sente que a ONG já vinha sendo perseguida nos últimos tempos por grupos conservadores?

Perseguidas sempre fomos. Sempre disseram que não somos católicas por defender os direitos sexuais e direitos reprodutivos como direitos humanos. Esse sempre foi um debate que travamos. Nunca a esse nível de interpelação judicial.

Em algum momento houve algum contato ou conversa com alguém da instituição Centro Dom Bosco, fora da esfera judicial?

Sobre o processo? Não.

Mas alguma vez eles tentaram dialogar, debater?

Não. Só em debates públicos sobre a temática dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, a convite de outras organizações.

E há outros episódios de perseguição por determinados grupos?

Nada semelhante a isso. Já fomos denunciadas por defender o aborto, duas de nós tivemos de prestar conta na delegacia de polícia porque nos acusaram de estar promovendo o aborto, tivemos de prestar esclarecimentos. Mas nada em relação ao nome “católicas”, e sim à defesa da pauta do aborto. Outras organizações católicas que fazem parte da rede que a gente integra, no Peru e na Argentina, também sofreram processos. Na Argentina não conseguiram quitar a personalidade jurídica, que era o objetivo. E, no Peru, está em tramitação ainda.

Uma decisão judicial deste nível em um momento em que o próprio papa tem se posicionado de forma acolhedora frente a posicionamentos plurais, mesmo aqueles que de certa forma contrariam as regras do catolicismo, não parece um contrassenso? Afinal, a quem pertence o termo “católico”?

É o que nos perguntamos, né? Se alguém é dono do termo católico. Não fazemos parte da instituição [a Igreja Católica], não somos uma entidade orgânica da instituição católica. E somos católicas. Todas nós que integramos a organização somos católicas. E nos espanta saber que não podemos usar esse nome porque, na verdade, apesar de sermos católicas nós temos uma visão diferenciada em relação à sexualidade e à reprodução. [Uma posição] diferente do que a Igreja preconiza. E defendemos esse posicionamento, como católicas que somos.

Então nos espanta saber que agora existe um dono do nome católicas, né? Porque ao que sabemos católicos é o povo de Deus, todos os que foram batizados, fizeram a primeira comunhão e comungam como nós são católicos. Nunca fomos alijadas da Igreja. Não fomos excomungadas. Portanto, somos católicas, sim.

Qual a relação de vocês com organismos da Igreja Católica no Brasil?

Algumas de nós vieram do trabalho mais orgânico da igreja, das pastorais de base. Então temos, claro, vínculos com as pessoas da Igreja dessa época, que trabalhavam nas pastorais sociais. Claro que também temos vínculos com pessoas de dentro da Igreja que têm uma visão mais progressista da realidade. Temos contatos e apoio.

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