Sociedade

Em Angra, uma aula sobre praias privatizadas

Geógrafa faz mapa de praias com acesso privativo, proibidas ao público

Mansão com heliponto avança sobre a faixa de areia na praia Grande (Fotos: Júlio César Guimarães/Agência Pública)
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Inspirada por um dia de sol, a então adolescente Irene Chaba Ribeiro se flagrou feliz com a quantidade de belas praias de sua cidade natal, Angra dos Reis, no litoral do Rio de Janeiro. Desde pequena, sua rotina de pôr o pé na areia a levava a pegar dois ônibus, a passar do centro do município e só assim chegar às praias de Figueira, Bica e Tanguazinho. Naquela tarde ela se perguntou por quê. “O que me causava estranheza é que praias perto de minha casa, no bairro Mombaça, bem mais extensas e com águas cristalinas, eram, na prática, privadas”, recordou Irene, hoje uma geógrafa e ativista contra a privatização de praias. Anos depois, passou a participar do que ela chama de “farofadas” em praias restritas, encontros de jovens locais para usufruir daqueles espaços. E resolveu investigar por que certos condomínios se isolam de uma forma tão radical, a ponto de apartar das praias próximas a população da cidade.

Em 2016, assim que começou sua dissertação sobre as praias privatizadas em Angra, Irene participou de um movimento com entidades da sociedade civil, para pôr abaixo um muro construído por um ente privado, obstruindo o acesso à praia da Bica. “Nós destruímos o muro, e ali eu percebi que escreveria minha dissertação não só como pesquisadora, mas como ativista”, disse Irene à Pública. Praias como a da Figueira e Bica, outrora privatizadas, foram reabertas ao público depois de muito protesto.

Filha de engenheiros florestais, ela afirma que a luta pelo direito à praia é contra quem instala mansões de luxo, resorts, clubes, entre outras estruturas que, ao mesmo tempo, inibem a circulação e promovem segregação da areia. Sua dissertação de pós-graduação em geografia na Universidade Federal Fluminense, em vez de abordar a questão da praia a partir de populações tradicionais, como as indígenas, quilombolas e caiçaras, todas com presença marcante no litoral de Angra, dá ênfase justamente à sua experiência pessoal e de seus pais, membros da Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (Sapê), uma ONG que luta pela praia democrática de uso “comum” – aquela em que a mistura de classes sociais dá o tom sob o sol.

“Indo de encontro à mercantilização da vida, o comum aparece como conceito e horizonte para a produção de relações sociais e de um espaço destinado ao bem-estar comum’’, pontua. “Colocando o direito de apropriação social e de uso coletivo acima do direito de propriedade, o ‘comum’ se mostra como princípio político para a reflexão sobre o direito à praia.”

A historiadora Juliana Malarba, da ONG Fase, traz um alerta à discussão sobre o “comum”. Ela diz que a praia permite o uso comum, uma sociabilidade e também a “reprodução social de lazer e de trabalho” – incluindo aí pescadores, marisqueiros e outros tipos de trabalho à beira-mar. “É claro que não se pode degradar a praia, mas não podemos cair no conto da natureza intocada. Condomínios de luxo, por vezes, propagandeiam que preservam a praia. Esse é um falso argumento, em nome de interesses privados”, alerta.

A geógrafa mapeou 55 praias de Angra dos Reis e as distinguiu em termos de acesso da seguinte forma: acesso privatizado, ou seja, proibido ao público e franqueado a proprietários e hóspedes; acesso livre; acesso controlado, com a entrada na praia franqueada sob condições, como seguranças em portarias e cancelas exigindo identificação do usuário ou estabelecendo horários à circulação e permanência; acesso de interesse estatal, como áreas militares; e, por fim, falta de acesso pela impossibilidade de se chegar por terra. Segundo seu levantamento, 8 são praias controladas, e nada menos que 25 são privatizadas.

Angra2-JulioCesarGuimaraes-AgenciaPublica.jpg Heliponto em frente à praia do Morcego: ostentação invade o mar  

 

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Um tour entre praias privatizadas

Irene sonha em ser professora de geografia. De olho nas encostas de seu município, ela acompanhou a reportagem da Pública em uma aula de mais de cinco horas, a bordo de um barco, apontando as praias de acesso dificultado.

Logo no início da nossa “vistoria”, ela chamou atenção da equipe: “Olha aquilo ali”. Trata-se da foto abaixo, na qual uma mansão, com ares de palácio medieval, avança sobre a areia, em um dos extremos da praia Grande. Trata-se de um caso de praia sem acesso, de acordo com a classificação da pesquisadora. “Já tentei ir à praia por ali, mas a mansão não oferece qualquer caminho. Ou seja, aquele canto da praia, na prática, é da família dona da mansão. Um desrespeito à lei, é claro”, resume.

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A seguir, Irene pediu ao condutor do barco que seguisse rumo à Ilha da Gipoia. Seu intuito era ilustrar a distinção que fez na sua tese. Passamos adiante da praia do Morcego, onde o acesso é controlado. Um heliponto fincado no meio do mar já demonstra a classe dos frequentadores.

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Ao chegar à faixa de areia, Irene e a equipe da Pública passaram a ser seguidas por um segurança. “O senhor sabe que a praia é pública?’’, desafiou Irene.

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O homem disse que tinha consciência disso, sim, mas estava ali para fornecer segurança aos donos da casa, que ele não quis identificar. Por fim, contou que era policial militar e, com mais cinco soldados do Batalhão de Angra dos Reis, se reveza na tarefa de tomar conta da residência ali e, de certa forma, da praia. Esse trabalho não faz parte do policiamento do poder público. Trata-se de um serviço particular feito por um agente público.

Irene prosseguiu na sua aula: “Hoje o acesso aqui é controlado, já que fomos abordados pelo segurança, que não parou de nos seguir. Mas a praia do Morcego já teve acesso privatizado. Isso é uma dinâmica que depende muito da reação das pessoas.” Ela explica que os proprietários chegaram a fazer, no passado, uma trilha por cima da propriedade de luxo na praia, a fim de desviar o caminho dos pedestres da faixa de areia.

Ao final da praia do Morcego, um portão separa a praia vizinha, chamada de Armação. O segurança se apressou a dizer que aquele acesso está livre. “O portão está aberto.” Engano dele. O portão estava fechado. Trata-se, portanto, de um dos casos avaliados pela geógrafa, de impedimento total de acesso.

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O homem disse que tinha consciência disso, sim, mas estava ali para fornecer segurança aos donos da casa, que ele não quis identificar. Por fim, contou que era policial militar e, com mais cinco soldados do Batalhão de Angra dos Reis, se reveza na tarefa de tomar conta da residência ali e, de certa forma, da praia. Esse trabalho não faz parte do policiamento do poder público. Trata-se de um serviço particular feito por um agente público.

Irene prosseguiu na sua aula: “Hoje o acesso aqui é controlado, já que fomos abordados pelo segurança, que não parou de nos seguir. Mas a praia do Morcego já teve acesso privatizado. Isso é uma dinâmica que depende muito da reação das pessoas.” Ela explica que os proprietários chegaram a fazer, no passado, uma trilha por cima da propriedade de luxo na praia, a fim de desviar o caminho dos pedestres da faixa de areia.

Ao final da praia do Morcego, um portão separa a praia vizinha, chamada de Armação. O segurança se apressou a dizer que aquele acesso está livre. “O portão está aberto.” Engano dele. O portão estava fechado. Trata-se, portanto, de um dos casos avaliados pela geógrafa, de impedimento total de acesso.

Mais alguns detalhes da praia do Morcego, onde a faixa de areia foi desrespeitada por obras como esta, em que um gramado tomou o espaço. O segurança nos proibiu de caminhar pelo gramado.

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Já a imagem abaixo expõe como um muro de pedra também avançou sobre a faixa de areia.

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 A praia do Morcego é cercada de boias, a fim de evitar que embarcações atraquem. Muitas vezes, os “donos” alegam que estão fazendo cultura de mariscos a partir das boias. Na praia da Armação, as mesmas boias são fincadas a fim de impedir a livre circulação de embarcações.

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Praia da Amendoeira

Na sequência, visitamos a bela praia da Amendoeira, também na ilha da Gipoia; é um grande exemplo de como o acesso pode ser obstruído.

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Trata-se de uma praia de mar aberto cujas ondas grandes fazem a festa dos surfistas. Para se chegar até ela, era só pegar um barco, ir até a praia da Fazenda e andar dez minutos pela trilha. “Era um caminho tradicional aqui em Angra. Eu me lembro de tê-lo feito na minha infância”, diz Irene. Hoje, o caminho é impedido: Irene foi informada por seguranças de que não se pode mais caminhar pela trilha que conheceu na infância. Impressionaram a pesquisadora as placas como “Cuidado, não entre. Cão rottweiller solto” e “Propriedade particular, proibida a entrada e passagem. Favor não crie problemas’’.

Os surfistas e apreciadores de uma natureza exuberante sofrem para ir à praia da Amendoeira. De barco, como é mar aberto, nem sempre é possível atracar. A trilha alternativa, por sua vez, é inóspita, como se pode conferir em seguida.

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A entrada da “trilha” obriga uma pessoa a sair de um barco e ir até algumas boias dispostas de maneira improvisada, para dali subir a pequena encosta. A trilha até Amendoeiras dura mais de meia hora e é mantida apenas por surfistas. Os funcionários da praia da Fazenda aconselharam a equipe de reportagem e Irene a não fazer a trilha naquele dia, porque, como chovera na véspera, o caminho estava escorregadio e perigoso.

Angra dos Reis abriga também entre suas mansões a de José Bonifácio de Oliveira, o Boni, que dirigiu a Rede Globo durante três décadas. O heliponto de Boni se destaca mais do que sua própria casa na paisagem, aproximando-se da faixa de areia. E o empresário ainda instalou um deque sobre a praia. Procurado pela Pública, ele não respondeu até a publicação desta reportagem.

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Boni, entretanto, tem concorrente à altura. Em uma das praias do bairro da Mombaça, um condomínio instalou um muro com grade para evitar “invasões”.

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Abaixo, uma das trilhas para a praia do Café, no bairro de Mombaça, onde há diversos condomínios. Na maré cheia, o caminho, espremido pelo muro, desaparece sob a água – mais um caso de acesso impedido.

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Ao visitar o Condomínio Mombaça, a reportagem foi alertada pelos seguranças: as praias no seu interior são proibidas à visitação. Praias privatizadas, portanto.

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Em outro condomínio, Ponta da Mombaça, por sua vez, só pode frequentar as praias ali quem for identificado.

Tendo em vista que a legislação brasileira – à diferença de outros países – garante que as praias “são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar”, em qualquer direção e sentido”, Angra dos Reis é, de fato, uma terra sem lei.

 

Segurança nacional?

Especialistas criticam o uso que as Forças Armadas fazem do litoral fluminense. “A legislação diz que, em caso de interesse de segurança nacional, as praias podem deixar de ser consideradas bens de uso comum do povo. Mas, no ano passado, o Ministério Público Federal flagrou algo além da segurança”, disse a geógrafa Irene Ribeiro à Pública.

Em dezembro de 2016, o MPF entrou com uma ação civil pública para tornar públicas as praias do Colégio Naval de Angra dos Reis. Motivo: o MPF não viu nenhum documento ou movimentação específica de que a Marinha usasse as praias em prol da segurança nacional. O Clube Coqueiro, anotou o MPF na ação, chegou a alugar suas instalações à beira-mar. Exigiu então que barreiras físicas de acesso às praias fossem retiradas. Nada foi feito, e o imbróglio na Justiça se mantém, acendendo o debate sobre a ocupação militar nas praias. O procurador Igor Miranda está à frente do processo.

Algo assim já tinha sido constatado na praia de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro. O Forte de Copacabana, administrado pelo Exército, foi outro a ser investigado pelo MPF. O acesso à praia ali foi franqueado exclusivamente a uma empresa em 2013, que por três meses fez festas na areia com muita, muita música eletrônica. Em nota, a assessoria de imprensa do MPF informou que, à época, “foi assinado um termo de ajustamento de conduta (TAC) em maio de 2016 para que o Exército não permitisse a realização de eventos de caráter particular nas praias integradas ao Forte ou nas de acesso controlado”. Hoje, o acesso continua controlado de qualquer forma, sob o pretexto de segurança nacional.

O Forte da Urca, também na zona sul carioca, tem suas praias frequentadas somente por quem paga uma mensalidade para frequentá-la. Segundo a assessoria do MPF do Rio de Janeiro, “houve um procedimento, arquivado em 2015. O MPF não viu irregularidades”. Já na zona oeste, na restinga de Marambaia, sob a responsabilidade do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, também se cobra pelo acesso a praias paradisíacas, em quase 50 quilômetros de litoral, que avançam sobre mais duas cidades: Itaguaí e Mangaratiba.

Em 2016, em Niterói, cidade vizinha ao Rio, houve a expulsão de famílias de caiçaras da tradicional aldeia Imbuhy pelo Exército, presente ali no forte da praia do Imbuhy. Para ir à praia, só pagando R$ 300 por um trimestre. Ali também o acesso é controlado. O MPF chegou a se reunir com representantes do Exército reclamando de que o controle estava excessivamente rígido. Em maio deste ano, o MPF acompanhou a reformulação de cláusulas no Termo de Permissão de Uso. Já a luta dos caiçaras contra a expulsão e pelo seu retorno à aldeia continua na Justiça.

A assessoria de imprensa do MPF informou que há possibilidades de novos procedimentos contra a Marinha. Motivos não faltam.

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