Cultura

Documentário esmiúça os anos de Maradona em Nápoles

Dentro de campo, e só dentro de campo, Maradona fica um degrauzinho abaixo de Pelé

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A prolixa estação futebolística acrescenta aos atuais torneios uma obra que está dando o que falar: um documentário sobre Diego Maradona. Mais um. Se você achava impossível que o tema não tivesse se esgotado no olhar genial de Emir Kusturika, saiba que na verdade Maradona é inesgotável ­– na vida, assim como na fantasia.

O foco do inglês de origem indiana Asif Kapadia são os anos do craque argentino no Napoli, de 1984 a 1991, uma saga de vitórias e de encrencas, a conflituosa relação com a antiga capital dos Bourbon e o ambíguo intercâmbio de amor e desconfiança com os tifosi mais descabelados de toda a Itália. 

Ao desembarcar, El Diez já era uma lenda. Estava para fazer 24 anos, mas disputara uma Copa do Mundo, a de 82, na Espanha, e vinha de duas sofridas temporadas no Barcelona, na qual ganhou apenas uma Copa. O Napoli era uma religião que inebriava um clube modesto. O desafio de Maradona seria tremendo.

Asif Kapadia é o cineasta das vertigens. Seu primeiro documentário, sobre Ayrton Senna, de 2010, é um trabalho premiado pelos críticos, ao retratar a rivalidade Senna-Prost na moldura de sentimentos humanos, bem pouco nobres, mas subestimado pelo público, em especial pelos conterrâneos brasileiros do piloto, incapazes de vê-lo a não ser através das lentes do heroísmo e da idolatria.

O Oscar, entre outros 30 prêmios, reconheceu a fina maestria de Kapadia ao narrar os altos e baixos da carreira de Amy Winehouse, a turbulenta Janis Joplin britânica, colhida, assim como a americana, pela síndrome roqueira da morte aos 27 anos. O filme é de 2015. Foi um frenesi a chegada de Dieguito em Nápoles e o documentarista esbalda-se com as imagens do delírio. Uma alucinada comitiva de veículos negros capturou o astro no aeroporto e enveredou, daquele jeito que só os napolitanos sabem conduzir, por trilhas sinuosas até o Estádio San Paolo.

Um sequestrador não faria melhor. Uma tropa de choque de repórteres de todos os cantos do mundo esperava para a tradicional entrevista coletiva. Torcedores enlouquecidos encarapitaram-se numa claraboia temerária, com risco de desabar. Gritavam: Diego, Diego, Diego!

Acostumado a enfrentar as travas das chuteiras de zagueiros encarniçados, a estrela do espetáculo parecia um bichinho assustado com toda aquela descarga de afetuosidade incondicional. Ou quase. Tão logo o mestre de cerimônias botou relativa ordem no recinto, um jornalista detonou o torpedo: “Você sabe o que é a Camorra, Diego?” Era um jornalista francês sendo visceralmente francês. Maradona não entendeu a provocação, olhou com desalento para os lados, como se buscasse ajuda, e não respondeu. De bate-pronto, o locutor oficial passou a bola para o entrevistador seguinte.

Ao final da coletiva, o milionário reforço do Napoli (26 milhões de dólares em valores de hoje) iria receber o tributo carinhoso de 75 mil aficionados que o esperavam nas arquibancadas. Daquele instante em diante, o coração do craque e o da torcida iria bater do mesmo ritmo.

A dita Camorra, ele logo aprenderia, oculta o lado sombrio de uma Nápoles onde Maradona, como documenta o filme, logo revelaria o seu. Pois foi na cidade dos becos escuros, assombreados de mistérios e de misticismo, que o maior craque de sua época mais brilhou (dois scudetti, uma Copa da Itália, duas Super Copas, uma Copa da Uefa) e ao mesmo tempo sucumbiu à fragilidade bem humana que a fama quase sempre impõe. “Siamo figli del Vesuvio /Forse un giorno esploderà”, cantam os Ultras da Curva B. Um dia, o Vesúvio metafórico que fumegava dentro de Maradona iria explodir.

No gramado, a recompensa foi quase instantânea. Em sua terceira temporada na Itália, a de 1996-1997, Maradona deu ao Napoli aquilo que o time nunca tivera em 70 anos de história: o título de campeão italiano. A hegemonia dos clubes do Norte endinheirado, o Milan, a Inter, a Juventus e, eventualmente, a Roma, com raríssimas exceções era quebrada, e, assim, a conquista napolitana iria servir de desabafo contra a superioridade enfatuada com que os outros italianos tratavam aquela “gentinha” do Mezzogiorno. 

O carnaval da vitória durou uma semana, tanto quanto a violência desreprimida, o quebra-quebra, os saques. Anúncios fúnebres proclamavam nos muros a morte do AC Milan e da FC Internazionale Milano. Uma volumosa safra de Diegos batizou os recém-nascidos. Ícones com o rosto de Maradona passaram a coexistir, na mesma convicção milagreira, com imagens do padroeiro San Gennaro. As pessoas acreditavam até na premonição vitoriosa dos parceiros de ataque do craque no ataque do Napoli: Bruno Giordano e o brasileiro Careca. Ou seja, MA, de Maradona, GI, de Giordano, CA, de Careca – MAGICA.

Os problemas acompanharam as glórias. Dalle stelle alle stable, das estrelas aos estábulos, diz o provérbio meridionale. Asif Kapadia consulta as origens cinzentas do Pibe de Oro na tentativa de entender o fenômeno do duplo Maradona: o vencedor e o derrotado. O documentarista contrapõe, com imagens, a tensão entre a vida de extravagâncias do astro e seu passado de pobreza em Villa Fiorito, na periferia de Buenos Aires, onde o dom nato pela bola o tornou arrimo de família aos 15 anos.

Os anos de Napoli o expuseram numa berlinda que iria se iluminar mais ainda, a milhares de quilômetros de distância: a Copa do Mundo do México, no verão de 1986 no Hemisfério Norte. A sua Copa – a Copa Maradona. Sendo o documentarista um britânico, ele haveria de ser especialmente sensível àquela partida, quartas de final da competição, em que Maradona protagonizou o histórico gol Mano de Dios, logo aos 6 minutos do segundo tempo, e faria outro, o da vitória, aquele que é considerado até hoje o gol de maior beleza em todas as Copas do Mundo.

Nele, Maradona driblou, com a bola colada ao pé desde o meio campo, toda a defesa inglesa, o goleiro Peter Shilton, enganou a primeira-ministra Margaret Thatcher e o Alto-Comando Militar Britânico, driblou o luto pela derrota nas Malvinas e o fantasma dos regimes militares recentes.

Na guerra insana, 649 jovens argentinos perderam a vida. Aquele era o primeiro confronto dos dois países beligerantes em diferente campo de batalha. Fora o gol malandrinho, prevaleceu o fair-play. “Quando entramos em campo, sabíamos das dificuldades”, rememorou el capitán Diego. “No entanto, pedi para os companheiros jogarem naquela partida o seu melhor futebol. Que ali não estávamos nos vingando, mas representando todo o povo argentino, principalmente as famílias que tiveram de alguma forma prejuízos com essa guerra maldita.”

Campeão do mundo, reconhecidamente maestro da pelota, Maradona afundou num abismo de martírios pessoais. Passou a perder treinos e jogos alegando estresse. Acabou recebendo da diretoria uma multa de 70 mil dólares. À temporada de desgraças veio se somar um controvertido pedido de reconhecimento de paternidade que o levou à polícia pela primeira vez e, pior, ofereceu às autoridades da lei e ordem o pretexto para bisbilhotarem sua vida pessoal e checarem seus possíveis vínculos com a Camorra. Os mafiosos é que forneciam, suspeitava-se, a cocaína que embalava suas festinhas.

O repórter do The Guardian que investigava, à época, a criminalidade no Sul da Itália teve acesso às conversas telefônicas do ídolo grampeadas pela polícia. Numa delas, Maradona liga de madrugada para Carmela Cinquegrana, uma notória signora da Camorra, e pede um delivery de emergência: droga e duas prostitutas. O jornalista inglês conseguiu falar com um dos parças do argentino. “Ele não é um santo, é um jogador de futebol”, disse o amigo.

E que jogador! Continuou dando alegrias a uma torcida que já nem lhe era tão incondicional. Mas um desafio mais melindroso o aguardava: a Copa do Mundo de 1990, semifinal, Argentina vs. Itália, por suprema ironia no Stadio San Paolo, em Nápoles. Ali onde ele acolhera a paixão clamorosa dos aficionados, expunha-se ao risco de merecer a execração de uma nação inteira. Na dramática decisão por pênaltis, a Argentina triunfou e Maradona foi um dos verdugos do time de Baresi e Maldini. “Nápoles não é Itália”, tentou se desculpar. “Os napolitanos são tratados como estrangeiros em seu próprio país.” O estrago estava feito.

A imprensa redobrou sua hostilidade e, ao deixar o Napoli no final de temporada de 1990-1991, aquele cujos pendores miraculosos chegaram a ser comparados aos de San Gennaro não teve multidão alguma para saudá-lo e lhe agradecer pelos 115 gols de pura magia com a camisa azul. O craque e a cidade que lhe expôs o sublime e o maldito deram-se as costas para sempre.

Filho da necessidade, herói luckacsiano, personalidade problemática, Diego Maradona viveu de forma aguda a dificuldade que uma celebridade costuma ter em conciliar a imagem pública e a face íntima. Quem entendeu isso de imediato foi o craque ainda maior, Pelé. Foi ele próprio quem definiu o tipo dois-em-um: o Edson pessoa física e o Pelé gênio dos gramados. O Pelé era irretocável nas quatro linhas. O Edson é um sujeito meio complicado, sujeito a crises de inveja, bajulador das autoridades e de duvidosa correção no que diz respeito aos melhores sentimentos humanos. A desassociação chegou a um ponto que o Edson não entende nada de futebol.

Sem igual 

Dentro de campo, e só dentro de campo, Maradona fica um degrauzinho abaixo de Pelé. Habilidade semelhante, talento igual, rapidez e tirocínio de jogo, surpresa mortífera no gingado, fintas infernais. Porém, com aquela sua complexão atarracada que lembra um asmático, Dieguito jamais poderia almejar a plenitude plástica do futebol de Pelé, a elasticidade bailarina de pantera faminta de gols do maior de todos os craques. Pelé jogou quatro Copas, ganhou três; Maradona jogou três, ganhou uma (a bem da verdade histórica, teria possivelmente ganho outra, a de 1994, se não tivesse caído na cilada que João Havelange e seus asseclas lhe armaram). Chegou à sua quarta Copa, a de 2010, mas como treinador. 

Até os argentinos, os millenials que não tiveram o privilégio de assistir sua arte, ousam perguntar quem é o protagonista da bola: ele ou Messi. Não dá para comparar. Messi, é verdade, produz uma avalanche de gols, mas em estilo constipadinho, amarra a bola ao pé esquerdo e acelera em meio aos zagueiros grandalhões, um Pokémon ligeirinho que se liga subitamente a uma tomada. Difícil ser tomado de alguma emoção, a menos que você torça para Barcelona e Argentina, por aquele futebol automático, quase autista.

Cristiano Ronaldo, o rival maior de Messi nos gramados atuais, é sua antítese em estilo, uma gazela narcisista capaz de façanhas acrobáticas e gols impossíveis, tem o pendor do espetáculo e uma sede de atenção jamais saciada. Por onde quer que ande – Inglaterra, Espanha, Itália – vai acumulando títulos.

A Neymar coube sonhar um dia com o Olimpo da bola, no entanto, ele, adulto mimado como uma criança, sucumbiu à tentação do deboche e da humilhação, aquela história das dancinhas cafajestes desde os tempos do balneário. Optou por se comportar como uma foquinha amestrada, em seus malabarismos inócuos, e como ator caricato, incapaz de convencer em sua medíocre Commedia dell’Arte. Um gênio do gramado como Maradona teve com a bola uma relação brincalhona, mas sempre saberia que, em respeito ao público que lhe pagava o salário, futebol é coisa séria.

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