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Discurso de ‘liberdade de expressão irrestrita’ legitima atuação de grupos criminosos

Atualmente, existem ao menos 530 células neonazistas no País, a reunir mais de 10 mil integrantes

Discurso de ‘liberdade de expressão irrestrita’ legitima atuação de grupos criminosos
Discurso de ‘liberdade de expressão irrestrita’ legitima atuação de grupos criminosos
Ameaça. Bastou a antropóloga Adriana Dias criticar a postura de Monark para receber um recado dizendo que seria “metralhada“ - Imagem: PCRJ, Lúcio Bernardo Júnior/Ag.Câmara e Flow Podcast/Redes sociais
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Conhecido como Monark, o youtuber Bruno Aiub, apresentador do Flow, um dos podcasts de maior audiência no País, provocou uma onda de indignação nas redes sociais ao defender, durante uma transmissão ao vivo, a legalização de um partido nazista no Brasil. “Sou mais louco do que vocês”, antecipou aos convidados do programa, antes de arrematar: “Acho que o nazista tinha que ter o partido nazista, reconhecido pela lei”. Presente na bancada, o deputado federal Kim Kataguiri, do DEM, emendou que a Alemanha errou ao criminalizar o nazismo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Segundo a peculiar visão de mundo da dupla, não se pode tolher a liberdade de expressão, por mais “tosca” que seja a ideia defendida, até porque a sociedade civil se encarregaria de rechaçar ideologias extremistas.

Coube à deputada Tabata Amaral, do PSB, outra convidada do Flow, lembrar que a apologia do nazismo é crime, e não uma questão de opinião. Hitler enviou 18 milhões de civis para os campos de concentração e matou mais de 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais e ciganos. Não por acaso, a Lei 7.716/1989 prevê até cinco anos de reclusão a quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Diante da pressão da opinião pública, Monark pediu desculpas e alegou ter se expressado mal porque estava bêbado no programa. A covarde justificativa não colou. Diversas empresas, como a Amazon e a Puma, retiraram o patrocínio do Flow, reincidente no desrespeito aos direitos humanos. Mais de 20 entrevistados pelo programa ou por podcasts afiliados à marca nos últimos anos pediram para que seus vídeos fossem excluídos do canal. Funcionários chegaram a implorar nas redes sociais para que outros programas vinculados à marca não fossem prejudicados.

Não adiantou culpar a bebida. Monark e Kim Kataguiri serão investigados por apologia do nazismo

Para estancar a sangria, a empresa decidiu não apenas afastar Monark do microfone, mas também excluí-lo do quadro societário. Igor Coelho, seu parceiro no Flow, anunciou que vai comprar a parte do amigo na sociedade. A pedido do Coletivo Judeus e Judias pela Democracia, a Procuradoria-Geral da República instaurou inquérito contra Monark e Kataguiri para apurar a prática do crime de apologia do nazismo. A bancada do PT na Câmara entrou com pedido de cassação do deputado e ministros do Supremo Tribunal Federal reiteram que defender a criação de um partido nazista não é apenas abominável, mas também uma prática criminosa.

No ano passado, em nome dessa mesma “liberdade de expressão”, Monark ironizou um advogado com quem batia boca nas redes sociais: “Ter uma opinião racista é crime?”, indagou. Na ocasião, perdeu dois patrocinadores, mas havia empresas de sobra dispostas a financiar o canal, com mais de 3,6 milhões de inscritos no YouTube. Meses antes, ele havia comparado a homofobia à liberdade de escolher o gosto do refrigerante. Detalhe: em junho de 2019, o STF equiparou a homofobia e a transfobia ao crime de racismo, cuja pena pode chegar a cinco anos de reclusão, mas o Judiciário fechou os olhos para a declaração do youtuber fanfarrão.

Monark costuma repetir que todo mundo tem o direito de “ser idiota” em público, razão pela qual não faria sentido qualquer tipo de limitação à sacrossanta liberdade de dizer asneiras impunemente. Não sabe – ou finge não saber – que esse tipo de comportamento ameaça diretamente a vida das pessoas. Naquele mesmo dia em que “falou besteira” sob o efeito de ­álcool, a antropóloga Adriana Dias participou de um debate sobre o ocorrido e, minutos após sair de um fórum de discussão, recebeu uma ameaça. “Chegou uma mensagem avisando que iriam me metralhar por ter dito que o fato de estar bêbado agrava o crime de Monark”, relatou a CartaCapital.

Alvos. A deputada Isa Penna e o ator Douglas Silva, do BBB 22, estão na mira do mesmo grupo neonazista – Imagem: CNN Brasil e Redes sociais

Naquela noite, um novo crime, desta­ vez na tevê. O ex-BBB e comentarista da TV ­Jovem Pan Adrilles Jorge fazia uma confusa associação entre os crimes do nazismo e do comunismo, quando foi interrompido pelo apresentador William ­Travassos. Irritado, ele então se despede com a saudação nazista Sieg Heil, deixando os próprios colegas da emissora perplexos. “Surreal, Adrilles”, desabafou Travassos. O comentarista acabou demitido e, como de praxe, apresentou-se como vítima do “cancelamento da esquerda”. Segundo ele, não houve saudação nazista alguma, e sim um simples tchau, daqueles que imediatamente evocam a memória do Terceiro Reich por mera e infeliz coincidência.

O discurso encampado pela turma apenas legitima a atuação de grupos criminosos que atuam tanto nas redes sociais quanto nas ruas. Em 2021, a Safernet coletou mais de 14,4 mil denúncias anônimas sobre a atuação de grupos neonazistas na internet. O número é 60,7% superior ao total de casos reportados no ano anterior. Além dos episódios de apologia do nazismo propriamente ditos, a ONG registrou significativo aumento de ataques motivados por LGBTfobia.

Recentemente, a deputada estadual Isa Penna, do PSOL paulista, voltou a ser alvo de ataques promovidos por neonazistas. “Supondo que eu a encontrasse caminhando na rua à noite, golpearia seu crânio com um martelo ordinário. Ela teria uma convulsão no mesmo momento, seu corpo não aguentaria a pressão e desabaria”, diz uma das mensagens enviadas. O criminoso dizia possuir os nomes e os endereços dos familiares dela. A parlamentar suspendeu as agendas públicas, entrou com pedido de proteção policial na Assembleia Legislativa e encaminhou uma denúncia para o Conselho Nacional de Direitos Humanos. “Dá para perceber que o agressor tem contato com grupos extremistas que participam de fóruns neo­nazistas na internet”, comenta a deputada. Ameaças semelhantes foram feitas a ­Douglas Silva, um dos participantes da atual edição do programa Big ­Brother Brasil, na TV Globo. Elas partiram do gaúcho Aristides Braga, alvo de mandados de busca e apreensão na mesma operação que prendeu preventivamente Israel Soares, que também postava no blog de ameaças e se filmou queimando uma foto de ­George Floyd e uma bandeira LGBT.

Atualmente, existem ao menos 530 células neonazistas no País, a reunir mais de 10 mil integrantes

Desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo, o número de grupos neonazistas no Brasil aumentou em 270%. Segundo um levantamento feito por Adriana Dias, existem 53 grupos ativos, atuando por meio de 530 células, a reunir mais de 10 mil integrantes. “Mapeamos pela etnografia virtual e de campo. Eles estão armados, prontos para sair”, alerta a antropóloga.

No ambiente virtual, eles atuam principalmente no Telegram, aplicativo preferido dos bolsonaristas justamente pela ausência de regras, e na rede russa ­VKontakte, popularmente conhecida pela sigla VK, a reunir mais de 400 milhões de perfis online. E também nos fóruns anônimos da chamada Deep Web, território livre para a prática de crimes como divulgação de pornografia infantil e propagação de discursos de ódio contra minorias.

Muitos atuam em grupos ou gangues, mas também existem os chamados “lobos solitários”, ainda mais fanáticos, e grupos que atuam no sistema de “gameficação”, no qual o recrutado é promovido na hierarquia grupal a cada tarefa realizada. As missões vão desde usar drogas com a câmera ligada até matar animais domésticos, promover automutilação ou agredir pessoas em situação de rua.

CartaCapital teve acesso aos ­dossiês produzidos pelo policial e vereador de ­Porto Alegre Leonel Radde, do PT, no qual ele revela o modus operandi desses grupos. Ele cita como exemplo o grupo neonazista Elite Intelectual da Internet, que possui 300 soldados espalhados pelo País e cujo líder seria um gamer de Goiás. Recentemente, integrantes do grupo espancaram uma pessoa em situação de rua em Porto Alegre e filmaram toda a ação. Na véspera de Natal, um membro de 17 anos torturou e matou o cão de um vizinho durante uma live, acompanhada por 30 colegas. Esse mesmo adolescente foi apreendido em janeiro por ter enviado e-mail com ameaças aos técnicos da Anvisa, logo após a aprovação da vacina contra a ­Covid-19 para crianças de 5 a 11 anos de idade.

Em algumas trocas de mensagens, eles falam em atacar creches e escolas. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal e corre sob sigilo. “Eles estão saindo do campo das ideias e dos crimes virtuais e indo para as ruas. Estamos em vias de uma grande tragédia”, alerta Radde, que desde 2015, quando ainda estava na polícia, investiga grupos neonazistas no estado.

Celeiro. O aplicativo Telegram, a rede russa VK e a Deep Web são as principais plataformas para recrutar extremistas

Após o episódio de Adrilles na Jovem Pan, o senador Fabiano Contarato, recém-filiado ao PT, apresentou um projeto de lei para fechar o cerco aos extremistas. “Entrei com projeto de lei para criminalizar a promoção tanto do nazismo quanto do fascismo, com pena de até cinco anos de reclusão e multa, inclusive para quem negar a ocorrência do Holocausto ou fizer gestos alusivos a esses movimentos.”

A relação de Bolsonaro com extremistas vem desde os tempos em que ocupava uma cadeira na Câmara dos ­Deputados. Estudiosa desses grupos há mais de 20 anos, Adriana Dias encontrou, em uma de suas pesquisas, uma carta do então ­deputado Jair Bolsonaro publicada em três sites neonazistas brasileiros.

Os sites continham banners com a foto do ex-capitão, que redirecionavam o leitor à página de Bolsonaro, onde a carta estava publicada. “Vocês são a razão da existência do meu mandato”, dizia o então parlamentar. O próprio presidente já negou o Holocausto, apareceu em live tomando leite, um símbolo dos supremacistas brancos, e recebeu a deputada alemã Beatrix von Storch, do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, neta do ministro das Finanças de Hitler.

Não por acaso, o Brasil virou abrigo de um alemão condenado por negar a existência do Holocausto. Condenado a pagar 6 mil euros a título de reparação, Nikolai Nerling está no Brasil desde novembro como turista e tem publicado vídeos a partir de municípios catarinenses. Ao jornal O Globo, ele disse que pretende “esperar e ver no Brasil como as coisas se desenvolvem” na Alemanha. Enquanto isso, desfruta da impunidade que os extremistas gozam em território nacional. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O triunfo dos extremistas”

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