Sociedade
Discurso de ‘liberdade de expressão irrestrita’ legitima atuação de grupos criminosos
Atualmente, existem ao menos 530 células neonazistas no País, a reunir mais de 10 mil integrantes


Conhecido como Monark, o youtuber Bruno Aiub, apresentador do Flow, um dos podcasts de maior audiência no País, provocou uma onda de indignação nas redes sociais ao defender, durante uma transmissão ao vivo, a legalização de um partido nazista no Brasil. “Sou mais louco do que vocês”, antecipou aos convidados do programa, antes de arrematar: “Acho que o nazista tinha que ter o partido nazista, reconhecido pela lei”. Presente na bancada, o deputado federal Kim Kataguiri, do DEM, emendou que a Alemanha errou ao criminalizar o nazismo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Segundo a peculiar visão de mundo da dupla, não se pode tolher a liberdade de expressão, por mais “tosca” que seja a ideia defendida, até porque a sociedade civil se encarregaria de rechaçar ideologias extremistas.
Coube à deputada Tabata Amaral, do PSB, outra convidada do Flow, lembrar que a apologia do nazismo é crime, e não uma questão de opinião. Hitler enviou 18 milhões de civis para os campos de concentração e matou mais de 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais e ciganos. Não por acaso, a Lei 7.716/1989 prevê até cinco anos de reclusão a quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Diante da pressão da opinião pública, Monark pediu desculpas e alegou ter se expressado mal porque estava bêbado no programa. A covarde justificativa não colou. Diversas empresas, como a Amazon e a Puma, retiraram o patrocínio do Flow, reincidente no desrespeito aos direitos humanos. Mais de 20 entrevistados pelo programa ou por podcasts afiliados à marca nos últimos anos pediram para que seus vídeos fossem excluídos do canal. Funcionários chegaram a implorar nas redes sociais para que outros programas vinculados à marca não fossem prejudicados.
Não adiantou culpar a bebida. Monark e Kim Kataguiri serão investigados por apologia do nazismo
Para estancar a sangria, a empresa decidiu não apenas afastar Monark do microfone, mas também excluí-lo do quadro societário. Igor Coelho, seu parceiro no Flow, anunciou que vai comprar a parte do amigo na sociedade. A pedido do Coletivo Judeus e Judias pela Democracia, a Procuradoria-Geral da República instaurou inquérito contra Monark e Kataguiri para apurar a prática do crime de apologia do nazismo. A bancada do PT na Câmara entrou com pedido de cassação do deputado e ministros do Supremo Tribunal Federal reiteram que defender a criação de um partido nazista não é apenas abominável, mas também uma prática criminosa.
No ano passado, em nome dessa mesma “liberdade de expressão”, Monark ironizou um advogado com quem batia boca nas redes sociais: “Ter uma opinião racista é crime?”, indagou. Na ocasião, perdeu dois patrocinadores, mas havia empresas de sobra dispostas a financiar o canal, com mais de 3,6 milhões de inscritos no YouTube. Meses antes, ele havia comparado a homofobia à liberdade de escolher o gosto do refrigerante. Detalhe: em junho de 2019, o STF equiparou a homofobia e a transfobia ao crime de racismo, cuja pena pode chegar a cinco anos de reclusão, mas o Judiciário fechou os olhos para a declaração do youtuber fanfarrão.
Monark costuma repetir que todo mundo tem o direito de “ser idiota” em público, razão pela qual não faria sentido qualquer tipo de limitação à sacrossanta liberdade de dizer asneiras impunemente. Não sabe – ou finge não saber – que esse tipo de comportamento ameaça diretamente a vida das pessoas. Naquele mesmo dia em que “falou besteira” sob o efeito de álcool, a antropóloga Adriana Dias participou de um debate sobre o ocorrido e, minutos após sair de um fórum de discussão, recebeu uma ameaça. “Chegou uma mensagem avisando que iriam me metralhar por ter dito que o fato de estar bêbado agrava o crime de Monark”, relatou a CartaCapital.
Alvos. A deputada Isa Penna e o ator Douglas Silva, do BBB 22, estão na mira do mesmo grupo neonazista – Imagem: CNN Brasil e Redes sociais
Naquela noite, um novo crime, desta vez na tevê. O ex-BBB e comentarista da TV Jovem Pan Adrilles Jorge fazia uma confusa associação entre os crimes do nazismo e do comunismo, quando foi interrompido pelo apresentador William Travassos. Irritado, ele então se despede com a saudação nazista Sieg Heil, deixando os próprios colegas da emissora perplexos. “Surreal, Adrilles”, desabafou Travassos. O comentarista acabou demitido e, como de praxe, apresentou-se como vítima do “cancelamento da esquerda”. Segundo ele, não houve saudação nazista alguma, e sim um simples tchau, daqueles que imediatamente evocam a memória do Terceiro Reich por mera e infeliz coincidência.
O discurso encampado pela turma apenas legitima a atuação de grupos criminosos que atuam tanto nas redes sociais quanto nas ruas. Em 2021, a Safernet coletou mais de 14,4 mil denúncias anônimas sobre a atuação de grupos neonazistas na internet. O número é 60,7% superior ao total de casos reportados no ano anterior. Além dos episódios de apologia do nazismo propriamente ditos, a ONG registrou significativo aumento de ataques motivados por LGBTfobia.
Recentemente, a deputada estadual Isa Penna, do PSOL paulista, voltou a ser alvo de ataques promovidos por neonazistas. “Supondo que eu a encontrasse caminhando na rua à noite, golpearia seu crânio com um martelo ordinário. Ela teria uma convulsão no mesmo momento, seu corpo não aguentaria a pressão e desabaria”, diz uma das mensagens enviadas. O criminoso dizia possuir os nomes e os endereços dos familiares dela. A parlamentar suspendeu as agendas públicas, entrou com pedido de proteção policial na Assembleia Legislativa e encaminhou uma denúncia para o Conselho Nacional de Direitos Humanos. “Dá para perceber que o agressor tem contato com grupos extremistas que participam de fóruns neonazistas na internet”, comenta a deputada. Ameaças semelhantes foram feitas a Douglas Silva, um dos participantes da atual edição do programa Big Brother Brasil, na TV Globo. Elas partiram do gaúcho Aristides Braga, alvo de mandados de busca e apreensão na mesma operação que prendeu preventivamente Israel Soares, que também postava no blog de ameaças e se filmou queimando uma foto de George Floyd e uma bandeira LGBT.
Atualmente, existem ao menos 530 células neonazistas no País, a reunir mais de 10 mil integrantes
Desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo, o número de grupos neonazistas no Brasil aumentou em 270%. Segundo um levantamento feito por Adriana Dias, existem 53 grupos ativos, atuando por meio de 530 células, a reunir mais de 10 mil integrantes. “Mapeamos pela etnografia virtual e de campo. Eles estão armados, prontos para sair”, alerta a antropóloga.
No ambiente virtual, eles atuam principalmente no Telegram, aplicativo preferido dos bolsonaristas justamente pela ausência de regras, e na rede russa VKontakte, popularmente conhecida pela sigla VK, a reunir mais de 400 milhões de perfis online. E também nos fóruns anônimos da chamada Deep Web, território livre para a prática de crimes como divulgação de pornografia infantil e propagação de discursos de ódio contra minorias.
Muitos atuam em grupos ou gangues, mas também existem os chamados “lobos solitários”, ainda mais fanáticos, e grupos que atuam no sistema de “gameficação”, no qual o recrutado é promovido na hierarquia grupal a cada tarefa realizada. As missões vão desde usar drogas com a câmera ligada até matar animais domésticos, promover automutilação ou agredir pessoas em situação de rua.
CartaCapital teve acesso aos dossiês produzidos pelo policial e vereador de Porto Alegre Leonel Radde, do PT, no qual ele revela o modus operandi desses grupos. Ele cita como exemplo o grupo neonazista Elite Intelectual da Internet, que possui 300 soldados espalhados pelo País e cujo líder seria um gamer de Goiás. Recentemente, integrantes do grupo espancaram uma pessoa em situação de rua em Porto Alegre e filmaram toda a ação. Na véspera de Natal, um membro de 17 anos torturou e matou o cão de um vizinho durante uma live, acompanhada por 30 colegas. Esse mesmo adolescente foi apreendido em janeiro por ter enviado e-mail com ameaças aos técnicos da Anvisa, logo após a aprovação da vacina contra a Covid-19 para crianças de 5 a 11 anos de idade.
Em algumas trocas de mensagens, eles falam em atacar creches e escolas. O caso está sendo investigado pela Polícia Federal e corre sob sigilo. “Eles estão saindo do campo das ideias e dos crimes virtuais e indo para as ruas. Estamos em vias de uma grande tragédia”, alerta Radde, que desde 2015, quando ainda estava na polícia, investiga grupos neonazistas no estado.
Celeiro. O aplicativo Telegram, a rede russa VK e a Deep Web são as principais plataformas para recrutar extremistas
Após o episódio de Adrilles na Jovem Pan, o senador Fabiano Contarato, recém-filiado ao PT, apresentou um projeto de lei para fechar o cerco aos extremistas. “Entrei com projeto de lei para criminalizar a promoção tanto do nazismo quanto do fascismo, com pena de até cinco anos de reclusão e multa, inclusive para quem negar a ocorrência do Holocausto ou fizer gestos alusivos a esses movimentos.”
A relação de Bolsonaro com extremistas vem desde os tempos em que ocupava uma cadeira na Câmara dos Deputados. Estudiosa desses grupos há mais de 20 anos, Adriana Dias encontrou, em uma de suas pesquisas, uma carta do então deputado Jair Bolsonaro publicada em três sites neonazistas brasileiros.
Os sites continham banners com a foto do ex-capitão, que redirecionavam o leitor à página de Bolsonaro, onde a carta estava publicada. “Vocês são a razão da existência do meu mandato”, dizia o então parlamentar. O próprio presidente já negou o Holocausto, apareceu em live tomando leite, um símbolo dos supremacistas brancos, e recebeu a deputada alemã Beatrix von Storch, do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, neta do ministro das Finanças de Hitler.
Não por acaso, o Brasil virou abrigo de um alemão condenado por negar a existência do Holocausto. Condenado a pagar 6 mil euros a título de reparação, Nikolai Nerling está no Brasil desde novembro como turista e tem publicado vídeos a partir de municípios catarinenses. Ao jornal O Globo, ele disse que pretende “esperar e ver no Brasil como as coisas se desenvolvem” na Alemanha. Enquanto isso, desfruta da impunidade que os extremistas gozam em território nacional. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O triunfo dos extremistas”
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