Entrevistas

‘Crise do cuidado’ nos países ricos reorienta os debates feministas sobre o trabalho

A francesa Pascale Molinier, pensadora da relação entre gênero e cuidado, elogia os esforços do feminismo latino-americanas para legitimar a importância deste ofício invisível

'O diálogo com os estudos de gênero na América Latina é fundamental para se descentrar do francocentrismo' (Foto: Arquivo Pessoal)
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Um ressentimento paira no ar como resultado da dura conquista obtida pelas mulheres: o acesso à educação, ao voto, à escrita, à publicação, às universidades, aos espaços de liderança no trabalho, às artes, à voz, a escolhas básicas sobre seus corpos, sexualidade, vidas. Serão os sinais de que estes avanços se tornaram, enfim, definitivos? 

Marx, n’O Capital, conta que, durante a Revolução Industrial, mulheres substituíram os cavalos como bestas de carga. Não estamos mais naqueles tempos, mas a instrumentalização histórica e compulsória dos nossos corpos mostra que a revolução vai além da “liberdade” ilustrada pelos exemplos do parágrafo acima. As mulheres serão “livres” quando também puderem estabelecer limites e tê-los respeitados. Este é um trabalho de interseccionalidade entre gênero, raça e classe.

Para expandir essa discussão, convidei para uma entrevista a professora Pascale Molinier, que tive o prazer de encontrar durante meus estudos na Sorbonne. Pascale é professora de psicologia social na Universidade Sorbonne Paris Nord. Sua pesquisa fala da relação entre saúde mental e trabalho a partir de uma perspectiva de gênero. 

O trabalho de Pascale Molinier contribuiu para o desenvolvimento do conceito de psicodinâmica do trabalho, e ajudou ainda a promover o início dos estudos sobre o cuidado na França e na Colômbia. Outro eixo de seu trabalho diz respeito à epistemologia do pensamento feminista e aos estudos sobre gênero e sexualidades em diálogo com a psicanálise. Ela também é co-diretora do jornal francês Les cahiers du genre (Os cadernos do gênero) e mantém vínculos de cooperação com Brasil, Colômbia e Argentina. 

Confira a seguir os destaques da entrevista.

CartaCapital: Como a luta  por direitos trabalhistas está atrelada à luta feminista?

Pascale Molinier: As reivindicações das feministas em relação ao trabalho são muito antigas, seja pelo reconhecimento do trabalho doméstico e da dupla jornada, o direito ao trabalho assalariado, o direito de dispor do próprio salário ou a igualdade de remuneração, que ainda não foi alcançada. 

A partir do século XIX, o trabalho foi pensado pelas feministas como uma possibilidade de emancipação, e muitas vezes simplesmente como uma necessidade vital para as mulheres solteiras e viúvas. Contudo, na maioria dos países, essas demandas permaneceram isoladas das lutas pelo trabalho em geral, que permaneceram focadas no emprego e nos salários masculinos. As mulheres eram vistas como concorrentes que ameaçavam as conquistas dos homens e o mundo sindical às vezes se opunha fortemente à presença de mulheres em certos setores, considerando, por muito tempo, o trabalho feminino como um salário extra ou complementar. No século XX, durante as duas guerras, as mulheres eram utilizadas como mão de obra substitutiva sendo, em seguida, enviadas de volta para suas casas ou seus países de origem. 

As disparidades contemporâneas em termos de divisão de trabalho por gênero e acesso a empregos de prestígio e bem remunerados ainda carregam as marcas dessa história.

CC: Por que devemos questionar a afirmação de que as mulheres são mais adequadas para trabalhos de assistência e cuidado?

PM: O trabalho do cuidado tornou-se um tema central nos estudos de gênero a partir de uma consciência global da “crise do cuidado” nos países ricos. Em outras palavras, as mulheres qualificadas desejam permanecer no mercado de trabalho e reduzir sua participação no trabalho doméstico e no cuidado de crianças e idosos, que antes faziam de graça. 

Este déficit de trabalho de assistência gratuita não foi compensado por um envolvimento significativo dos homens, mas pela criação de um novo mercado de empregos de serviços, alguns nas fronteiras da legalidade, em geral mal pagos e ocupados por mulheres migrantes, muitas vezes superqualificadas. 

Não há nada de natural nestas formas contemporâneas de exploração, e sim uma construção patriarcal que atribui o trabalho do cuidado às mulheres – embora não de maneiras equânime, variando conforme sua classe e raça. Algumas se beneficiam do trabalho de outras, enquanto os homens simplesmente não estão interessados ​​nisso. 

Falar das desigualdades que afetam as trabalhadoras na área do cuidado é desnaturalizar o cuidado como uma habilidade feminina intrínseca. Esse trabalho, que exige atenção, disponibilidade, capacidade de antecipação e imaginação, é o produto de uma experiência de não poder “não” atender às necessidades dos outros. O que é aprendido por coerção, entretanto, mais tarde torna-se uma segunda natureza”, a ponto de as próprias mulheres frequentemente subestimarem as mudanças psíquicas – muitas vezes custosas – necessárias para que elas se tornem suficientemente atentas e disponíveis para os outros.

CC: É possível encarar as diversas problemáticas sociais sem considerar o tripé gênero, classe e raça? Ou sempre acabaremos em um impasse?

PM: Acho que o paradigma da interseccionalidade é um dos maiores avanços das últimas três décadas. Devemos isso ao feminismo afro-americano. De minha parte, não vejo hoje como poderíamos trabalhar apenas considerando “gênero”, ou apenas “classe”, ignorando “raça” ou sem levar em conta o entrelaçamento entre os três. Pois um mesmo indivíduo pode se beneficiar dos privilégios de um grupo (brancos, por exemplo) quando outros lhe são inacessíveis por causa de sua classe ou de sua sexualidade presumida. A interseccionalidade abala a ideia naturalizante de grupos homogêneos (“as mulheres”, “os negros”, “os gays”), transformando também as alianças para as lutas, o que muitas autoras do feminismo decolonial, como Maria Lugones e Yuderkys Espinosa, mostraram muito bem. 

CC: O feminismo francês tem interesse em escutar as mulheres latinas?

PM: O mínimo que podemos dizer é que o feminismo francês não é homogêneo. No entanto, há muitos intercâmbios entre os países da América Latina e a França e estes, nos últimos anos, têm se tornado mais dinâmicos com o surgimento e ascensão do pensamento intersetorial e do decolonialismo.

As Américas têm uma vantagem inicial para pensar sobre os efeitos da colonialidade na organização social, na divisão do trabalho, nas formas de subjetivação. Hoje, nos setores de trabalho relacionado ao cuidado, seja no emprego doméstico ou nas profissões de assistência a domicílio, as trabalhadoras muitas vezes são invisibilizadas. Mas há, em particular na América Latina, muitos esforços para criar uma dinâmica coletiva e reconhecer a importância desse trabalho invisível.

Na França, o debate sobre o passado colonial de nosso país continua tempestuoso, a interseccionalidade é instrumentalizada como uma chamada “ideologia comunitária”. O diálogo com os estudos de gênero na América Latina é fundamental para se descentrar do francocentrismo, para descobrir a potência de outros pensamentos e reajustar nosso olhar sobre nossa própria sociedade.

 

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