O Joio e o Trigo

Consea volta em março, com foco em ações emergenciais e driblando orçamento curto

Conselho responsável por políticas importantes de combate à fome foi extinto por Bolsonaro em 2019 e voltou junto com Lula ao Palácio do Planalto, em momento de turbulência e aumento da fome

Foto: MST
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O Programa de Aquisição de Alimentos, que compra de agricultores familiares pobres, garantindo renda, e dá às famílias pobres, garantindo comida no prato. A exigência de que as escolas públicas tenham um profissional de nutrição e de que 30% da merenda será adquirida da agricultura familiar, com produtos de qualidade, produzidos na safra corrente. Um Plano Safra específico para a agricultura familiar, com foco na produção de alimentos que compõem a dieta básica dos brasileiros. 

Todas essas políticas surgiram de propostas do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, em seu período de maior atividade, entre 2003 e 2014. 

Instituído por pressão da sociedade civil – com destaque para a atuação do sociólogo Betinho, da Ação da Cidadania – ainda no governo Itamar Franco (1992-95), e depois fechado durante a era FHC (1995-2002), o Consea foi recriado em 2003 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ajudou a formular políticas importantes no combate à fome no período de hegemonia petista no governo federal. 

Em 2019, foi extinto logo no primeiro ato do governo Bolsonaro, num movimento simbólico do desprezo do então presidente pelo combate à insegurança alimentar. Durante o hiato, os integrantes do conselho mantiveram algum nível de atividade e chegaram a organizar um Tribunal Popular da Fome, em 2021, no qual o governo federal foi considerado culpado pelo aumento da fome no país. 

Um ano depois, dados da Rede Penssan mostraram que a insegurança alimentar e nutricional atingia 125 milhões de brasileiros, com 33 milhões em situação real de fome – um aumento de 70% em relação a 2020.

Agora, também simbolicamente, o Consea foi readmitido à estrutura do governo federal já no primeiro decreto do presidente Lula, e deve voltar a funcionar em março, guardando a mesma composição de 2019. 

Por lei, o conselho é composto por dois terços de assentos da sociedade civil e um terço do governo, com a presidência cabendo sempre a um representante da sociedade civil. 

O Conselho será presidido pela pesquisadora Elisabetta Recine, que foi destituída do cargo em 2019. Ela é a única brasileira no Painel de Especialistas do Comitê de Segurança Alimentar Mundial da ONU. 

Em conversa com o Joio, Recine lembrou que o Conselho retoma suas atividades em um momento difícil. “O que a gente vive hoje é resultado da completa ausência de diálogo e sensibilidade dos governos passados em relação às necessidades da população”, diz. 

Mas, ao mesmo tempo, as organizações da sociedade civil que discutem a fome estão mais articuladas e mais diversas do que naquela primeira retomada, em 2003. “Talvez a gente tenha acumulado consciência e força social para dar um passo importante em relação à garantia de alimento saudável para a população”, completa a nutricionista e professora da Universidade de Brasília (UnB).

Recine indicou que o Conselho deve pautar ações emergenciais de combate à fome em um primeiro momento. “Retomada do Bolsa Família, aumento do [valor] per capita do PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], a retomada do apoio à agricultura familiar, com garantia de acesso ao mercado dessa produção, retomada dos restaurantes populares, bancos de alimentos, cozinhas comunitárias”, diz. 

Outra prioridade de sua gestão será organizar a próxima Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que estava prevista para 2019 mas foi abortada com a extinção do Consea. Além de monitorar e propor a execução de políticas de segurança alimentar, o encontro pode definir uma nova composição para os assentos do Conselho.

Além disso, Recine fala em aumentar a diversidade do Consea, de forma que diferentes segmentos afetados desproporcionalmente pela fome possam estar representados e ajudem a traçar estratégias específicas de combate à insegurança alimentar. “Precisamos trazer essas diferentes vozes e maneiras de viver para dentro da discussão”, afirma Recine. “Existem medidas gerais, claro, como a transferência de renda, mas para a transferência chegar nos povos e comunidades tradicionais, na população de rua, nas comunidades rurais, você precisa ter estratégias diferentes.”

Segundo os dados levantados pela Rede Penssan no ano passado, a fome é maior entre mulheres, pessoas negras, habitantes de zonas rurais e moradores das regiões Norte e Nordeste. 

De acordo com a pesquisa, um em cada cinco domicílios chefiados por mulheres está em estado de insegurança alimentar, contra um em cada dez domicílios chefiados por homens. Ao mesmo tempo, domicílios habitados por pessoas brancas registram um índice de segurança alimentar de 53%, contra 35% de domicílios habitados por pessoas negras.

Para a cientista social Mariana Santarelli, que é assessora da Fian Brasil para Políticas Públicas e com quem o Joio também conversou, o grande desafio do Consea em 2023 é justamente adequar as políticas públicas para garantir que elas atendam diferentes segmentos da população. 

“Como retomar as políticas, mas com esse olhar para as iniquidades dos sistemas alimentares?”, questiona. “Nos governos anteriores [do PT] muito pouco se fez para que isso fosse assegurado”, diz ela. 

Santarelli destaca que houve esforços nesse sentido, como a busca ativa do Bolsa Família para chegar à população de rua e a prioridade dada pela Lei 11.947/2009 a assentados, povos indígenas e quilombolas nas compras públicas para o PNAE, mas diz que será preciso fazer mais. “É preciso mais empenho para que essas pessoas acessem as políticas, até porque o racismo institucional ainda é muito grande”, argumenta a pesquisadora.

Ainda nesse sentido, Santarelli lembra que a Presidência da República e os ministérios da Esplanada terão conselhos de participação social, o que pode ajudar a preencher essa lacuna. “O governo atual está muito mais poroso à participação social”, diz. “É uma distância gigante em relação ao governo Bolsonaro, que extinguiu todos os canais de participação.”

Orçamento magro

Um dos desafios do novo Consea será discutir a implementação de ações articuladas de combate à fome com o orçamento muito reduzido, herança do governo Bolsonaro. 

Algumas políticas importantes tiveram sua composição orçamentária garantida pela PEC da Transição, como é o caso do PAA, que tinha previsão de apenas R$ 2,6 milhões para 2023 e que, após as negociações do governo eleito, contará com R$ 506 milhões para funcionar. 

O mesmo vale para a Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que obteve orçamento de R$ 5,4 bilhões, o que deve garantir o reajuste no valor das merendas negado por Bolsonaro no ano passado. 

Por outro lado, ações importantes ficaram de fora da renegociação e devem ter cobertor curtíssimo este ano. A aquisição de terras para reforma agrária, por exemplo, terá apenas R$ 2,4 milhões de orçamento em 2023 – muito aquém do R$ 1 bilhão solicitado pelo Grupo de Trabalho do Desenvolvimento Agrário do Governo de Transição.  

A antropóloga e ex-presidente do Consea Maria Emília Pacheco, que esteve à frente do Conselho entre 2012 e 2016 e não fará parte da nova composição, admite que existe uma “limitação enorme” no orçamento de 2023. 

“O direito à alimentação é fruto de uma articulação de políticas”, diz ela. “São muitos programas que precisam entrar em cena para esse enfrentamento da fome e garantia da alimentação saudável. Muita coisa será colocada em movimento esse ano, mas vamos seguir com uma lacuna enorme no orçamento.”

Pacheco relata que, em reunião com o ministro do Desenvolvimento Social no dia 19 de janeiro, os quatro últimos ex-presidentes do Consea levaram a proposta (já debatida junto a atores da sociedade civil) de que não haja uma mudança na composição do Conselho em um primeiro momento, e que eventuais novos ministérios a serem admitidos – como o dos Povos Indígenas ou o da Pesca – entrem por enquanto como observadores.

“Eram 20 ministérios”, explica. “Estamos defendendo que se mantenha esse número, porque assim fica mais ágil. Talvez [alguns ministérios] entrem como observadores. A ideia é não perder agilidade, já que a situação é gravíssima.” 

O economista Francisco Menezes, que presidiu o Consea entre 2004 e 2007 e não ocupará assento na nova composição, prevê que, além de discutir o enfrentamento à fome, o Conselho também deve debater uma revisão da liberação indiscriminada de agrotóxicos que ocorreu durante o governo Bolsonaro – como parte de um esforço maior de garantia de alimento saudável à população. 

Em entrevista ao Joio, ele afirmou que a retomada do conselho é crucial. “O enfrentamento à fome não pode ser só uma iniciativa de governo. Tem que ser uma iniciativa conjunta de governo e da sociedade”, disse. “O Consea será essencial nesse esforço prioritário, no enfrentamento à fome e no oferecimento de alimentação com qualidade e dignidade à população.”  

Raio-x do Consea

Conselho consultivo e propositivo vinculado à Presidência da República. Reúne representantes da sociedade civil e ministérios do governo federal ligados de alguma forma à pauta da segurança alimentar. 

No conselho são debatidas e acompanhadas políticas públicas de enfrentamento à fome e garantia de alimentação saudável. Também cabe ao Consea organizar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, onde é monitorada a execução das diretrizes da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. 

Forma, junto com a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), os dois pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) à nível federal. 

Abaixo, veja a linha do tempo com um resumo da história do Consea:

      • 1993: Foi instituído por Itamar Franco como órgão consultivo da Presidência da República.
      • 1995: Deixou de existir no início do governo Fernando Henrique Cardoso, que o substituiu pelo Programa Comunidade Solidária.
      • 28 de maio de 2003: Foi reestabelecido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
      • 2006: Promulgação da Lei 11.346 que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, integrando o Consea.
      • 2009: O então relator especial sobre o Direito à Alimentação da Organização das Nações Unidas, Olivier De Schutter, elogiou a atuação do Consea no combate à fome e promoção da segurança alimentar e nutricional.
      • 2010: Após atuação dos integrantes do Consea, o direito à alimentação foi incluído como direito social na Constituição.
      • 2014: As ações do Sisan, e do Consea, levam o Brasil a deixar o Mapa da Fome, da FAO.
      • 2017: Elisabetta Recine assume como presidenta do Consea, cargo que iria ocupar até o final de 2019.
      • 1º de janeiro de 2019: Recém-empossado, o presidente Jair Bolsonaro revoga na medida provisória 870 trechos da lei que prevê a composição do Consea.
      • 1º de janeiro de 2019: As atribuições do Consea são transferidas para o Ministério da Cidadania, mas a troca é feita de forma pouco clara, criando um impasse.
      • 17 de janeiro de 2019: A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do MPF, questiona o Ministério da Cidadania sobre qual a situação do Consea, dando dois dias para resposta.
      • 19 de fevereiro de 2019: A procuradora Deborah Duprat afirma que a extinção do Consea é inconstitucional, enviando nota técnica ao Congresso, e solicita abertura de ação no Supremo.
        • julho de 2019: Membros do antigo Consea convocam a Conferência Nacional Popular Autônoma por Direitos, Democracia, Soberania e Segurança Alimentar e Nutriciona10 de dezembro de 2021: A Conferência entrega ao STF o veredito do Tribunal Popular Contra a Fome, declarando o governo federal culpado pelo aumento da insegurança alimentar no Brasil
      • 01 de janeiro de 2023: O presidente Luiz Inácio Lula da Silva edita a Medida Provisória nº 1.154, recolocando o Consea na estrutura do Governo Federal

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