Sociedade

Clínica de dependentes usa internos para fabricar e lucrar com bebida

Na Fazenda da Paz, serviços vão de manutenção do espaço físico à produção de cajuína. Não é um caso isolado

Célio Barbosa, coordenador da Fazenda da Paz, dentro do depósito de cajuína. O produto é vendido a 4 reais. Os internos, porém, não recebem nada por essa produção. (Crédito: Thais Araújo) Célio Barbosa, coordenador da Fazenda da Paz, dentro do depósito de cajuína. O produto é vendido a 4 reais. Os internos, porém, não recebem nada por essa produção. (Crédito: Thais Araújo)
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*Esta reportagem é parte de uma apuração selecionada e financiada através do edital Jornalismo Investigativo e Direitos Humanos, do Fundo Brasil de Direitos Humanos. O projeto tem o número 12432/17.

Em uma comunidade terapêutica para tratamento de usuários de drogas no Nordeste do Brasil, os internos trabalham até oito horas por dia – muitas vezes sob o sol na lavoura – produzem duas mil garrafas diariamente de uma bebida (a cajuína, cujo estoque pode ser visto na imagem acima) que é vendida no mercado local a 4 reais a unidade, lavam os carros dos funcionários da “clínica” e não ganham um tostão por isso. Pelo contrário, quando não cumprem as determinações, são punidos, ficam sem atividades de lazer e têm que trabalhar ainda mais horas por dia.

Esta é a realidade da “Fazenda da Paz”, com unidades no Piauí e no Maranhão, onde mais de 330 internos são submetidos à chamada “laborterapia“. Mas os produtores de cajuína estão longe de ser um caso isolado.

Em todo o país, são quase 500 comunidades terapêuticas (CTs) conveniadas com o poder público e oferecendo o serviço de cura ao vício em drogas, via de regra por meio do trabalho não remunerado e sob o comando de entidades ligadas a igrejas. Para 2019, já garantiram 90 milhões do Orçamento geral da União para financiar suas atividades. E estão em negociação com o governo eleito para somar mais R$ 60 milhões a esta cifra. O montante deve pagar mais de 10.500 vagas em 492 entidades credenciadas em edital aberto neste ano.

As CTs comumente operam a partir de verbas públicas: 64% de todas entidades recebe verbas de uma ou mais esferas do governo, aponta relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2017.

Críticas ao tratamento

Geralmente ligadas a igrejas, as comunidades terapêuticas são alvos de críticas por violarem direitos básicos e praticarem proselitismo religioso.

Um relatório elaborado por membros do Ministério Público Federal e do Conselho Federal de Psicologia, entre outros órgãos, foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Feito a partir de visitas a CTs, o documento denuncia internações compulsórias, falta de fiscalização e faz críticas ao financiamento público às entidades.

De acordo com o perito do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura Lúcio Costa, que inspecionou comunidades terapêuticas, o financiamento é feito a partir de uma aliança política com um grupo ideológico e a quantia destinada pelo governo federal a essas instituições é uma irresponsabilidade. “O Executivo sabe que está financiando algo que não dá conta de fiscalizar”, afirma.

A procuradora federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), Deborah Duprat, também assina o relatório e considera que as entidades reproduzem a lógica de internação em manicômios. Duprat disse que o financiamento público às comunidades desidrata órgãos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Segundo a procuradora, o aumento das cifras é retrocesso e parte de uma agenda conservadora. “É óbvio. Você investe em algo que está contra a política de saúde”, afirmou.

Já o presidente da Confederação Nacional das Comunidades Terapêuticas (CONFENACT), Egon Schlüter, vê o relatório como “inútil”. “Foi feito sobre entidades em que já havia problemas notórios”, disse. Ele afirma ainda que algumas entidades visitadas são clínicas clandestinas, na verdade. “Há interpretação com viés ideológico sobre nosso modelo”, acusa Schlüter.

Internos fazem cajuína. Donos de clínica ficam com o dinheiro

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A Fazenda da Paz, com unidades produtoras de refrigerantes nos estados do Piauí e do Maranhão, explora mão-de-obra dos pacientes para manter suas operações.

Sob o manto da ‘laborterapia’ — um dos pilares do tratamento antidrogas oferecido por comunidades terapêuticas — internos cumprem jornadas de 4 a 8 horas, trabalhando na produção de mercadorias que são vendidas ao público externo ou na manutenção da Fazenda. A principal delas é a cajuína, bebida sem álcool feita de caju.

Internos trabalhando na produção de cajuína. Eles não receberão nada por isso (Foto: Thais Araújo)

Atualmente, a fabricação é feita em escala industrial: chega a duas mil garrafas por dia. O produto é comercializado a R$ 4 pela Fazenda da Paz, sem nenhum retorno financeiro para os internos.

O grosso da produção é feito pelas pessoas que foram para a comunidade terapêutica em busca de tratamento para o uso de drogas.

As frutas são colhidas pelos internos nas unidades onde há plantação e são encaminhadas a comunidade terapêutica Terra da Esperança, onde  fica a agroindústria de beneficiamento. Somente lá, são pelo menos 20 hectares de área plantada de caju, segundo relatório do Emater-PI (Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Piauí), órgão do Governo do Estado que, durante quase dez anos, prestou assistência de forma gratuita para a implantação do projeto de produção da cajuína e também ofertou cursos aos internos sobre o manejo do caju.

Todo o dinheiro arrecadado com a venda da bebida fica com a instituição, que já recebe verbas da União, do Governo do Piauí e da Prefeitura de Teresina para custear as vagas de tratamento.

Os repasses de dinheiro público à Fazenda da Paz somaram quase 3 milhões de reais nos últimos um ano e nove meses. Os convênios com o Governo do Piauí e a Prefeitura de Teresina seguem em andamento até 2019, resultando em, pelo menos, mais 1 milhão de reais que será enviado à comunidade terapêutica para custeio de vagas até o mês de abril – totalizando 4 milhões de reais recebidos do poder público em dois anos.

O dono da Fazenda da Paz, Célio Barbosa, afirma que os convênios com a União, o Governo do Estado e a Prefeitura de Teresina não seriam suficientes para manter as atividades. “Temos 330 vagas [nas seis unidades] e, pela falta de recursos, eu só consigo manter até 280, no máximo”. Ele aponta que o custo mensal por pessoa internada é de 1.832,46 reais.

Sobre a produção industrial de cajuína, ele diz se tratar de uma operação em paralelo: “A cajuína não é laborterapia, os trabalhadores são pessoas oriundas do processo de recuperação da Fazenda da Paz, contratadas com carteira assinada. É um processo de reinserção social e cajuína nos ajuda a manter as pessoas aqui”.

Não é o que diz o engenheiro agrônomo do Emater Milton Costa. Ele estudou o trabalho realizado anualmente nas unidades Terra da Esperança e Luz e Vida. “Há um rodízio das pessoas que frequentam lá e fazem a terapia. Eles se dividiam em grupos e colhiam a matéria prima, faziam higienização, extraiam o suco, até o engarrafamento. Os internos participavam de tudo, como ‘parte dos cursos’.

Leia também: Comunidades Terapêuticas, política e religiosos = bons negócios

Castigos para quem não trabalha direito

Mesmo com o investimento substancial do poder público, todos os internos da Fazenda da Paz são obrigados a trabalhar pelo menos quatro horas por dia. Eles atuam no cultivo de várias frutas, verduras e legumes que são plantados dentro das comunidades e também na limpeza da casa onde dormem.

Essa é a chamada “laborterapia”, um dos pilares do tratamento oferecido pela Fazenda da Paz. Lá, como na maioria esmagadora das comunidades terapêuticas brasileiras, o trabalho, a disciplina e a oração formam as bases do plano terapêutico.

Todas as atividades são determinadas pela coordenação das casas, e quem não cumpre a carga horária ou reclama das atividades diárias recebe punições.

“A gente não escolhe [as atividades]… Aqueles que chegam muito debilitados eles botam para varrer a casa, limpar o banheiro. Isso das 7h30 às 11h30. Os demais, [vão] para dentro da roça: colher caju, roçar, capinar.  O negócio deles é que ‘é pra suar, para tirar a droga do sangue através do suor’. Alguns ainda trabalham à tarde, até 16h”, relata *João, de 32 anos, que teve duas passagens pela CT Terra da Esperança, a primeira unidade da Fazenda da Paz, localizada em Timon (MA).

Durante as atividades da laborterapia, o fato de comer uma das frutas que se está colhendo gera aos internos castigo: “ninguém podia comer um caju sem a ordem do coordenador porque pegava 10 dias de ‘negativo’”, relata o ex-interno *Francisco, de 38 anos, que permaneceu apenas por 15 dias na CT Luz e Vida, que fica em Teresina.

O “negativo” é a proibição dos internos de participarem de atividades de lazer que acontecem ao longo da semana, como a prática esportiva, assistir televisão ou ter direito aos banhos de piscina.

Outra punição, utilizada para casos mais graves, é a “advertência”, que tem uma penalidade maior: 25 dias. Uma das formas de amenizar o período do castigo é trabalhando também durante a tarde ou noite, segundo denúncias de ex-internos, em atividades que também eram determinadas pela coordenação. Lavar os carros da comunidade e pegar lenha eram alguns dos paliativos.

A futura ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, já disse que apoia o atendimento de dependentes em clínicas religiosas (Foto: Divulgação)

O documento que define as regras de funcionamento das comunidades terapêuticas, no âmbito do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas,  proíbe o uso de trabalhos como formas de punição. E estabelece que todo interno tem direito à atividades de lazer e não pode ser submetido a trabalhos forçados.

Francisco (nome fictício) foi um dos que trabalhou por dois turnos durante todo o período de internação na Fazenda da Paz, até que decidiu deixar a casa. Entre outras atividades, ele lembra da atuação na colheita de pimenta, quando chegou a ficar com as mãos ardendo por horas porque não dispunha nem mesmo de uma luva para executar a atividade.

A falta de equipamentos de proteção individual para os internos durante desempenho da laborterapia na Fazenda da Paz foi constatada pelo Ministério Público Estadual do Piauí e pela Comissão de Saúde Mental do Conselho Estadual de Saúde do Piauí, em duas ocasiões diferentes: 2014 e 2017. Na página 107 do inquérito do Ministério Público, há fotos de dois internos trabalhando na cozinha interna da Luz e Vida sem nenhum equipamento de proteção individual ou de higiene, como toucas e luvas. Já na página 118, o relatório diz que “na limpeza do local, que acontecia durante a inspeção, não foi observado o uso de EPI’s pelos residentes”.

Nas redes sociais da Fazenda da Paz, fotos mostram internos trabalhando no cultivo agrícola também sem o uso de equipamentos mínimos de proteção, como chapéu, luvas ou qualquer outro tipo de proteção contra os raios solares, já que a temperatura média em Teresina frequentemente ultrapassa os 35°. “À tarde a gente trabalhava de 13 às 16h. A gente tinha uma bota se a família puder (sic) comprar porque eles pedem na lista, principalmente por causa de cobra e escorpião. Quem não tem, vai só com a foice”, relembra *João.

A reportagem visitou a CT Terra da Esperança, em Timon (MA), onde conversou com o coordenador da Fazenda da Paz, Célio Barbosa. Durante a visita, a equipe não esteve na área de plantio, mas conheceu a sede da fazenda, onde Célio também mora com a família; a fábrica de cajuína e os ambientes onde acontecem as aulas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e dos cursos profissionalizantes de marcenaria e informática.

Ao contrário do que aconteceu nas fiscalizações do MPPI e do Conselho Estadual de Saúde, a reportagem teve que agendar previamente a visita. Ao chegar ao local, todos os internos estavam utilizando equipamentos de proteção na cozinha, por exemplo. Entretanto, no galpão onde ocorre o curso de marcenaria, a equipe percebeu que os alunos estavam sem a proteção auditiva e as máscaras especiais. Mas, antes de chegar a esse espaço, Célio encaminhou a equipe a outro setor e, quando voltaram para conversar com os internos que assistiam às aulas, todos já estavam devidamente protegidos com os EPI’s.

Fiscalização evidencia problemas

No ano passado, o Conselho Federal de Psicologia e o Ministério Público Federal inspecionaram 28 comunidades terapêuticas em todas as regiões do país. A utilização do conceito de ‘laborterapia’ como justificativa para exploração de mão-de-obra dos acolhidos, inclusive em locais externos às comunidades, foi constatada em diversos casos.

De acordo com o relatório, na comunidade “Reviver”, em Paudalho, Pernambuco, residentes são responsáveis por todas as atividades da casa, incluindo a limpeza do canil, já que não existem funcionários de serviços gerais no local. Em São João Del Rei, Minas Gerais, a clínica “Renascer” chama de “terapia ocupacional” o trabalho de manutenção da comunidade, que também não conta com funcionários. Entre as atividades estão limpeza, lavanderia e manutenção predial.

Outro exemplo é a utilização de mão-de-obra de pacientes na ampliação da comunidade Recanto da Paz, em Limeira (SP). O “pagamento” pelo trabalho seria um maço de cigarros por semana trabalhada.

Para Gleuda Apolinário, coordenadora da Coordenadoria Estadual de Políticas sobre Drogas da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social de São Paulo, o emprego da laborterapia em si não é um problema. “A questão é o momento em que isto se torna produção, lucro, e, às vezes, trabalho análogo à escravidão”, afirma. “É uma linha tênue. Conceitualmente, há a diferença, mas em algumas comunidades, a prática é outra coisa”.

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