Justiça

Chaga aberta

Passados 135 anos da Lei Áurea, o trabalho escravo persiste graças ao vale-tudo das terceirizações e à relutância do judiciário em punir os escravocratas

Imagem: Sérgio Carvalho
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Aos 8 anos de idade, Valdirene foi trabalhar como doméstica em troca de um punhado de cruzeiros que eram repassados à mãe todo mês. Isso, no fim dos anos 1980. A menina foi entregue à família pela própria genitora, que não tinha mais condições de criar os filhos depois de ser abandonada pelo marido. Valdirene passou, então, a cuidar de crianças quase da mesma idade da dela e a dar conta dos afazeres domésticos, que não eram poucos. “No interior, se diz muito ‘vou levar pra casa pra brincar com meus filhos’, mas, na verdade, faz-se de tudo. Muitas vezes em troca das sobras de comida. O que sobra das próprias crianças eles dizem ‘ah, está limpo’ e botam no seu prato para você comer”, relembra a doméstica, hoje com 42 anos e diretora do Sindicato das Empregadas Domésticas da Bahia. A história de Valdirene é um típico caso de escravidão moderna, uma herança maldita de mais de três séculos de escravização no Brasil, uma ferida aberta até os dias de hoje, mesmo passados 135 anos da Lei Áurea.

O processo de escravização de Valdirene repetiu-se em outras casas e estendeu-se por longos dez anos. Aos 12 anos, depois de ter sido estuprada pelo patrão e de uma breve passagem por outro trabalho forçado no município de Camacã, no extremo sul da Bahia, Valdirene fugiu para Salvador, com a promessa de ter os direitos trabalhistas garantidos em um novo emprego doméstico. Ledo engano. Lá, passou outros quatro anos em cárcere privado, muitas vezes trabalhando sob violência e à base de biscoito e água. Segundo explica, “num vacilo” da patroa escravista, ela conseguiu escapar e chegar à sede do Sindicato das Domésticas, que denunciou o caso ao Conselho Tutelar e ao Ministério do Trabalho. “Infelizmente, não deu em nada. É muito triste a gente passar por tudo isso e um juiz dar ganho de causa ao empregador”, recorda. “As pessoas que julgam nossas causas também são empregadores e pensam igual aos patrões.”

Dos mais de 2,5 mil trabalhadores resgatados em 2022, 83% eram negros

Situação semelhante à de Valdirene é a de Madalena Gordiano, um caso emblemático de grande repercussão ocorrido em Minas Gerais. A diferença entre as duas foi o desfecho. Depois de 38 anos vivendo em condições análogas à escravidão e servindo a duas gerações da mesma família, Gordiano foi resgatada no fim de 2020 e conseguiu, via um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), uma indenização equivalente a mais de 600 mil reais, valor considerado fora da curva pelos próprios especialistas. Madá, como é chamada, trabalhou por 24 anos para uma família no município de Viçosa, interior mineiro, e, depois, foi levada para Patos de Minas, onde ficou por mais 14 anos, servindo à segunda geração da família.

“Constatamos que Madalena era submetida a jornadas exaustivas de trabalho, de domingo a domingo, sem direito a intervalo entre uma jornada e outra. Ela começava a trabalhar às 2, 4 horas da madrugada e ia até as 8 da noite, uma carga extenuante”, relembra Thiago de Castro, procurador do trabalho que atuou no caso e vice-coordenador nacional do GT sobre trabalho doméstico do Ministério Público do Trabalho (MPT). Gordiano recebia, em média, 200 reais por mês, valor que não dava sequer para os custos com material de higiene pessoal, que não era oferecido pelos patrões. “Eu colocava bilhetes por baixo da porta dos vizinhos pedindo ajuda, um dinheiro para comprar um sabonete, um papel higiênico, que eu não tinha. Eles me pagavam pouco, eu tinha de pedir porque não dava para comprar nada”, explica a ex-doméstica, que, com a indenização, adquiriu dois quitinetes. Mora em um e alugou o outro, de onde tira seu sustento. Orgulhosa, Madá diz que voltou a estudar, através do programa Educação de Jovens e Adultos.

Escravizada desde os 8 anos de idade, Valdirene chegou a ser estuprada por um dos patrões – Imagem: Arquivo Pessoal

“Não tem indenização financeira que recupere a vida que essas pessoas perdem nas casas onde são escravizadas. A gente precisa desconstruir esse discurso do ‘é como se fosse uma pessoa da família’. Não sentamos na mesa para nos alimentar com eles, não dormimos nos melhores aposentos da casa, e sim num quartinho quente, abafado, cheio de objetos que eles não querem mais, não estamos no testamento nem no plano de saúde deles e não participamos das decisões da família. Então, como é que somos da família?”, dispara Luíza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Ela cita a dificuldade do sindicato de ter acesso ao local de trabalho, facilitando ainda mais a exploração por parte dos patrões. “Como o crime acontece dentro das residências, os sindicatos não podem ir até lá, porque, pela Constituição, a residência é inviolável”, observa, chamando atenção para uma campanha do MPT, em parceria com o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais (Sinait), para flexibilizar a fiscalização do trabalho doméstico.

Apesar de real, a escravidão doméstica está longe da aparecer nas estatísticas. Segundo dados compilados pela plataforma Smartlabbr.org, com base nos números divulgados pelo Ministério do Trabalho, entre 1995 e 2022, os setores econômicos com maior incidência de trabalho análogo à escravidão são os de criação de bovinos (29%), plantações de cana (14%) e de café (6%), seguidos de fabricação de álcool, construção civil e produção florestal (todos figuram com 4%), além dos cultivos de soja e algodão (3% cada). Nesta série histórica de quase 30 anos foram resgatados 57,7 mil trabalhadores em situação análoga à escravidão, dos quais 2.575 em 2022.

Madalena Gordiano foi escravizada por duas gerações de uma mesma família – Imagem: Redes sociais

De acordo com uma pesquisa realizada pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG, entre 2017 e 2022 foram realizadas 335 fiscalizações no estado. Em 174 (51,4%) delas foi constatado trabalho análogo à escravidão. A maior incidência foi no setor da agricultura (45,97%), seguida pela carvoaria (33,33%), onde os trabalhadores viviam e trabalhavam em situação degradante, uma das modalidades da escravidão moderna. “Em praticamente 100% dos casos identificamos o que a gente chama de tripé do trabalho degradante: alojamento precário, sem água potável, sem instalações sanitárias e condições de higiene sequer para se alimentar. Não é só uma mera irregularidade trabalhista”, explica Lívia Miraglia, uma das coordenadoras da Clínica da UFMG. A pesquisadora acrescenta que o estudo também identificou jornada de trabalho exaustiva, servidão por dívida e confisco de documentos das vítimas, reforçando a prática escravista.

Há mais de dez anos realizando trabalho de campo nas operações que fiscalizam a escravidão moderna, Lucas Reis, auditor do trabalho e diretor do ­Sinait, explica que o trabalho forçado está presente em todos os setores econômicos. “Antes, as fiscalizações eram praticamente na área rural, mas avançaram para o ambiente urbano. No setor têxtil, o número de resgates tem sido bastante representativo, assim como no trabalho doméstico”, ressalta Reis, citando que a construção civil é mais um segmento que figura entre as atividades escravocratas, sobretudo no processo de construção de grandes obras, como aeroportos e nos estádios da Copa e das Olimpíadas. No ramo têxtil, marcas já conhecidas do consumidor como Zara, Farm, Animale e M. Officer também estão associadas ao trabalho análogo à escravidão. Em abril passado, quatro bolivianos foram resgatados de uma oficina de costura, no interior de São Paulo. Eles chegavam a trabalhar 15 horas por dia e viviam em situação degradante, sem higiene e segurança.

As vinícolas gaúchas flagradas com trabalho escravo pagaram menos de 10 mil reais de indenização para cada uma das vítimas

Em março deste ano, cinco trabalhadores que prestavam serviços para o festival de música Lollapalooza, considerado um dos maiores do mundo, também foram resgatados em condições análogas à escravidão. A organização do evento tentou se desvencilhar da responsabilidade, alegando tratar-se de contratados por empresas terceirizadas, o mesmo álibi apresentado pelas vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, na Serra Gaúcha, onde foram resgatados no início deste ano 207 pessoas trabalhando em situação degradante e sob violência física. Em março foi assinado um TAC entre o MPT e as vinícolas, dando o direito a cada vítima de receber míseros 9,6 mil ­reais em indenização. Outros 5 milhões de reais foram destinados a entidades, fundos e projetos voltados para o combate ao trabalho escravo.

As vinícolas disseram que as vítimas não eram contratadas diretamente por elas, e sim pelas empresas terceirizadas Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda. Este é um discurso recorrente, uma vez que, após a aprovação da Lei da Terceirização, que permite esse tipo de prática para atividade-fim, muitas empresas pulverizam sua cadeia de produção, como explica Lucas Reis. “A terceirização faz com que as grandes empresas, que mais se beneficiam com o trabalho escravo, fechem os olhos para as violações que ocorrem nessa cadeia de produção. Elas se apropriam do lucro que advém do trabalho nessas condições desumanas, mas não se responsabilizam pelas violações que ocorrem.”

Arte: Regina Assis

Outro problema é a baixa punição dos empregadores escravocratas, fato que é apontado como estímulo a esse tipo de ilegalidade. No Pará, por exemplo, há o caso polêmico de uma ação civil pública promovida pelo MPT, em que dois fazendeiros são condenados pela prática de trabalho escravo contemporâneo na primeira instância, com total improcedência da ação na segunda instância. Apesar da tentativa dos ruralistas de destruí­rem as provas ao queimar os alojamentos instalados em situação degradante, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho recebeu a denúncia por filmagens feitas pelos próprios trabalhadores e, ao chegar ao local, constatou o crime e ainda conseguiu resgatar três trabalhadores. Cientes da chegada da equipe com os auditores na cidade, os fazendeiros expulsaram os trabalhadores sob tiros. Na primeira instância, os ruralistas, conhecidos na região como “reis do gado”, foram condenados a pagar 500 mil reais por dano moral coletivo e verbas rescisórias para os trabalhadores. Mas a quarta turma do TRT-8 não reconheceu o caso como trabalho escravo e julgou improcedente a ação.

“O que é trabalho degradante para os magistrados brasileiros, pessoas brancas, de classe média alta em sua expressiva maioria, que dificilmente tiveram de enfrentar as agruras do trabalho braçal que esses trabalhadores enfrentam desde a tenra idade? As pesquisas sociológicas indicam que eles se solidarizam com esses exploradores de mão de obra de trabalhadores escravizados, não condenando nem reconhecendo a prática criminosa”, observa Valena Jacob, pesquisadora e coordenadora da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da Universidade Federal do Pará. O caso será julgado pelo TST e a Clínica participará do processo na condição de amicus curiae.

A legislação brasileira é muito clara na definição do trabalho escravo, mas a aplicabilidade da lei nem sempre prevalece. A PEC que trata desse tipo de crime foi aprovada em 2014, depois de quase 20 anos tramitando no Congresso Nacional, mas precisaria de um PL para regulamentar o conceito de trabalho escravo. “Temos o artigo 149 do Código Penal, que já foi alterado em 2003 e diz claramente o que é trabalho escravo, um conceito bastante elogiado pela OIT e pela ONU”, esclarece a juíza do trabalho e presidenta eleita da Associação Nacional dos Magistrado da Justiça do Trabalho, Luciana Conforti. Dentre as penalidades previstas na PEC do Trabalho Escravo está a expropriação de terras onde ocorre o crime, mas a proposta não foi regulamentada, está em debate no Senado Federal.

Segundo o Código Penal, são quatro as modalidades de trabalho escravo: 1. Forçado, quando as vítimas trabalham sob ameaça de sofrer punição ou têm sua liberdade restringida, como, por exemplo, trabalham em local onde há vigilância ostensiva armada. 2. Quando o trabalhador é submetido a condições degradantes no ambiente laboral e de moradia. 3. Quando a jornada de trabalho é exaustiva e compromete a saúde do trabalhador. 4. A servidão por dívida, na qual o trabalhador se endivida com o explorador para comprar itens essenciais à sua sobrevivência.

Somente 6,3% dos réus são condenados definitivamente e 1% cumprem pena em regime fechado, revela pesquisa

A impunidade, nos casos de responsabilização criminal, é a regra. Um terço dos indiciados nem sequer vai a julgamento e somente 6,3% dos réus são condenados definitivamente, atesta uma pesquisa da Clínica da UFMG. Pior, apenas 1% dos acusados acaba sentenciado a mais de quatro anos de prisão e, efetivamente, cumpre pena em regime fechado.

Além do Código Penal, que cuida da parte criminal, existe a responsabilização trabalhista, que fica a cargo dos auditores fiscais do trabalho, do MPT, da Defensoria Pública da União e da Justiça do Trabalho. “Nos termos dos direitos trabalhistas existem ações diversas, como as cautelares, as civis públicas e o TAC. Em todas essas medidas são levados em consideração critérios como a avaliação dos valores a título de responsabilização do empregador, a gravidade da situação encontrada, o tempo de duração da prática ilegal e a quantidade de pessoas atingidas”, explica Lys Sobral Cardoso, procuradora do trabalho e coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho. Segundo Cardoso, muitas vezes os acordos prévios acontecem para evitar que o caso se estenda muito e se perca por conta do tempo decorrido. “Muitas vezes, pelo risco de não se conseguir nada, garante-se um acordo logo no início, para que as vítimas possam receber os valores devidos.”

O presidente do Sinait, Bob Machado, queixa-se da defasagem de pessoal para fazer as fiscalizações. Segundo afirma, o Ministério do Trabalho passa por um movimento de esvaziamento e há dez anos não realiza concurso público para auditores do trabalho. “Nós temos, hoje, do ponto de vista da inspeção do trabalho, o menor número de auditores fiscais dos últimos 33 anos. É humanamente impossível atender às demandas da sociedade brasileira de maneira adequada, e aí estou falando não só do combate ao trabalho escravo, mas de outros tipos de fiscalizações, a exemplo do combate ao trabalho infantil”, diz, acrescentando que hoje há menos de 2 mil auditores do trabalho em atividade no País e que mesmo que os outros 1,7 mil cargos vagos fossem ocupados o número não seria suficiente. O ideal, segundo Machado, seria a contratação de 5 mil novos auditores do trabalho.

A Superintendência Regional do Trabalho em Pernambuco criou uma comissão tripartite, com representação dos trabalhadores, dos empregadores e os fiscais do Ministério do Trabalho, para discutir a responsabilização de cada ator nesse processo, no sentido de prevenir não só a escravidão moderna, mas todo tipo de trabalho ilegal. “Fiscalizar é importante, mas é preciso também construir uma nova mentalidade no trabalho. Os empregadores devem entender as consequências de parar na lista suja, e os trabalhadores devem conhecer seus direitos para atuar com dignidade”, explica Suzi Rodrigues, superintendente do MTE em Pernambuco.

Machado, do Sinait, denuncia a falta de 5 mil auditores do trabalho. Carvalho quer priorizar o combate ao trabalho escravo no TST – Imagem: Aldo Dias/TST, Redes sociais e Sinait/AFT/MT

Em janeiro deste ano, em uma ação conjunta do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Nacional da Justiça do Trabalho, foi criado um GT com a finalidade de combater a escravidão moderna e o tráfico de pessoas. O grupo é formado não apenas por magistrados, mas também por procuradores do trabalho e pesquisadores. “Não temos ainda uma compilação daquilo que vamos apresentar no relatório final, mas é possível cogitar que uma atitude mais firme em processos que envolvam trabalho escravo, tráfico de pessoas e proteção a migrante tenha preferência em relação a outros feitos, tendo em vista a absoluta gravidade dessa conduta, que implica aviltamento da condição humana, o que é absolutamente intolerável. Então, esses processos precisam ter prioridade mesmo”, explica o coordenador do GT, o ministro do TST ­Augusto César Leite de Carvalho.

O magistrado acrescenta que o grupo deve propor também a formação para os juízes trabalhistas que aborde esses temas, além de apresentar projetos ao Legislativo no sentido de erradicar o trabalho escravo, a partir de multas e reparações mais contundentes. Enquanto isso, os sucessivos flagrantes de trabalho escravo mostram o que o Brasil ainda está longe, muito longe de abolir a prática. Na quarta-feira 10, uma operação resgatou dez trabalhadores em condições análogas à escravidão em uma fazenda de café no Espírito Santo. Aliciados nos estados de Sergipe e Alagoas com a promessa de salários vantajosos, só perceberam que foram enganados ao chegar no local de trabalho. Vivendo em condições insalubres, eles recebiam 16 reais por saca de 60 quilos de café colhido, mas tinham descontadas dívidas com o empregador. Um caso clássico de servidão moderna. Mais um. •

Publicado na edição n° 1259 de CartaCapital, em 17 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Chaga aberta’

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