Sociedade
As barricadas que dividem um Rio sob crescente poder armado
De entulho empilhado a cancelas, fronteiras impostas por facções e milícias afetam cada vez mais a vida carioca. Organizações criminosas já controlam quase 20% da região metropolitana
Das profundezas da Zona Oeste para além de Niterói, são 53 os pontos marcados no serviço de mapas do Google como “barricadas” sobre a região metropolitana do Rio de Janeiro. Tão informais quanto pilhas de entulho, ou formais como cancelas privadas, os obstáculos à circulação em vias públicas são uma crescente expressão do poder paralelo exercido pelo tráfico de drogas e a milícia.
O território total destes grupos armados dobrou em 16 anos e já toma quase um quinto da mancha metropolitana, segundo mapeamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF). Na percepção de moradores, especialistas e autoridades, os bloqueios fixos ou móveis vêm há anos se tornando mais frequentes.
Vigas de ferro, automóveis, trilhos, pneus, árvores derrubadas e outros improvisam as barricadas informais que costumam separar favela e asfalto. Para as facções ligadas ao tráfico, elas servem como uma espécie de trincheira contra agentes de segurança do Estado.
É lá que jovens fortemente armados, não raro, controlam a entrada e saída de automóveis. “A ideia é que a polícia perca tempo no momento de uma incursão, para que o tráfico se reorganize, lideranças possam fugir e armas ou drogas possam ser escondidas,” explica Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF.
Denúncias em disparada
A Polícia Militar removeu, de janeiro a outubro de 2025, 6,7 toneladas de materiais usados nas barricadas em mais de 3,7 mil pontos ao redor do estado. No ano passado, foram 7,7 toneladas em 6,9 mil pontos.
Já dados citados pela Prefeitura do Rio indicam que uma a cada quatro queixas ao Disque Denúncia sobre a presença de barricadas na cidade vêm de oito bairros na Zona Norte — foram 1.978 denúncias de 2019 a 2024. Quase dois terços delas (1.248) se registraram depois de 2022. Não se levam em conta outros municípios da região metropolitana.
A retirada das trincheiras pela polícia, entretanto, é como “enxugar gelo”, relatam moradores. Rapidamente elas reaparecem nos mesmos lugares.
“Tem piorado bastante. Todo dia as barricadas atrapalham a circulação de moradores e caminhões de lixo. Tem lugar onde carro não passa de jeito nenhum”, contou um residente de Vigário Geral, no foco das barricadas na Zona Norte, à DW.
Para quem cruza pelas trincheiras na vida diária, o roteiro já é conhecido: desligar o farol, baixar o vidro e acender o pisca-alerta. As marcações em aplicativos como Waze e Google Mapas servem para alertar motoristas. “A gente que mora aqui acaba até se acostumando. Tem que seguir as regras deles.”
Moradores das regiões conflagradas se adaptam à realidade imposta pela violência urbana no Rio – Foto: Mauro Pimentel/AFP
De 2005 a 2023, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro, duas organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas, aumentaram suas áreas no mapa do Geni/UFF em 90% e 80%, respectivamente.
‘Urbanização milicializada’
Mas o maior avanço sobre o Grande Rio foi o das milícias, que triplicaram o seu domínio territorial, segundo o mesmo estudo. Os grupos operando na arquitetura miliciana costumam empreender outro tipo de controle armado sobre os seus territórios, com ramificações sobre diversos serviços.
As suas barreiras são menos rudimentares do que as trincheiras improvisadas pelo tráfico, incluindo o estabelecimento de cancelas e o fechamento de ruas por grupos de vigilância privada, sob a justificativa de manter a segurança. “Quando terminam as barricadas e começam as cancelas?”, questiona Hirata. ” Precisamos de uma definição objetiva.”
Para José Claudio Souza Alves, cientista social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a cidade vive dois processos de urbanização – uma milicializada, e outra faccionalizada.
“Cada grupo vai estabelecer suas barreiras e controles. As facções, que tem menos acesso à estrutura do Estado, incendiam ônibus e usam troncos de árvore. Já as milícias têm fiscalização, botam guarita, cobram taxa de segurança e escondem suas armas,” afirma.
Uma pesquisa Datafolha do início de novembro estimou que, de 4,9 milhões de residentes das áreas sob controle de facções ou milícias no Grande Rio, 18% morem em bairros onde policiais de folga prestam serviço de vigilância.
Barricadas na agenda política
São as barricadas do tráfico que vão virando munição para plataformas políticas endurecidas contra o crime organizado.
Ao Supremo Tribunal Federal (STF), o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, disse que a Operação Contenção foi necessária por causa das barricadas do Comando Vermelho próximas a escolas e postos de saúde nos Complexos do Alemão e da Penha. Foi a operação mais letal da história recente do Brasil, com 121 mortos, dos quais quatro eram policiais.
Em fevereiro, a Prefeitura usara o tema das barricadas para solicitar a sua inclusão como amicus curiae (amigo da corte, em latim) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas.
A ação, ajuizada em 2019, questiona a violência policial em operações nas comunidades cariocas e propõe diretrizes para reduzir a sua letalidade.
“A Prefeitura se vê claramente impossibilitada de exercer sua função constitucional de ordenamento do solo urbano e, ainda, de prestar outros serviços essenciais, como a coleta de lixo”, afirmou o pedido do prefeito Eduardo Paes ao STF. Tanto ele quanto Castro já se disseram expressamente contra a arguição.
Resposta a ultraviolência
Como outros críticos das operações policiais, Souza Alves avalia que o Estado investe numa estratégia barata de contenção do crime organizado. Para ele, as barricadas são também resposta a décadas de incursões ultraviolentas pelo Estado, que produzem até dezenas de mortos em poucas horas.
É esta parte da história de Vigário Geral. Em 1993, uma emblemática chacina resultou em 21 pessoas executadas à queima roupa por policiais militares, em vários pontos da favela no bairro, durante uma madrugada de horror.
“São 32 anos em que ninguém olhou para o bairro, e as pessoas são atacadas com violência policial,” diz, por sua vez, João Serafim, presidente da Associação de Moradores de Vigário Geral. Ele associa a pobreza e a falência do serviço público à expansão do tráfico na região.
Seis dias antes da Operação Contenção, a Câmara dos Deputados aprovara um projeto de lei que tipifica a obstrução de vias em casos como o das barricadas. O “domínio de cidades” fica previsto como crime hediondo, sujeito a até 30 anos de reclusão. Caberá ao Senado avaliar o texto.
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