Sociedade

Arrocho orçamentário mutila o Censo de 2020

Não é só um corte no questionário: parte técnica foi sacrificada e repasse de recursos a estados e municípios está ameaçado

Foto: Vinicius Loures
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A intenção do IBGE era mostrar que o corte drástico do orçamento do Censo de 2020 determinado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, de 3,1 bilhões de reais para 2,3 bilhões, não afetará a confiabilidade desse levantamento, mas, após três horas de exposições e debates com participação de diretores, técnicos e representantes de funcionários da instituição na quinta-feira 4 em audiência pública na Câmara, convocada pelo deputado Marcelo Freixo (PSOL), a percepção dominante era de que o enxugamento mutilará o maior e mais importante levantamento de informações populacionais do País, com consequências negativas no cálculo da distribuição de recursos do governo federal a estados e municípios, na definição de políticas públicas e no planejamento econômico.

A Constituição determina a transferência pela União de 22,5% da arrecadação do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados aos estados e municípios e a distribuição dos recursos é feita de acordo com o número de habitantes apurado pelo IBGE.

“As mudanças no Censo prejudicarão a distribuição do Fundo. Criarão um problema federativo e um contencioso para o governo federal porque todo município e todo estado reclamará. Vai estourar no colo do ministro Paulo Guedes, se ele ainda estiver lá nessa época, e do presidente, no meio de uma eleição. Em 2022, quando estivermos fazendo as projeções de população com o resultado do Censo, vai ter um problema”, disparou o demógrafo do IBGE Antonio Tadeu Ribeiro de Oliveira, que prevê variações de 5% na participação dos estados.

“Quando eu desço para os municípios, isso é aterrador. Tem município em que o intervalo de confiança (intervalo de valores plausíveis para alguns valores desconhecidos com base nos resultados de uma amostra) é de mil por cento”, disse, a propósito de estudo realizado nos estados do Rio Grande do Sul e Rondônia e entregue à diretoria sobre o efeito de alterações dos questionários básicos e da amostra nos repasses do Fundo de Participação de Estados e Municípios.

Insegurança jurídica

“Haverá insegurança jurídica de qualquer forma, porque o município que se considerar prejudicado pode contratar um ex-funcionário do IBGE para entrar na Justiça e preservar sua participação no Fundo de Participação dos Municípios. Então está se criando também um precedente para colocar em cheque o que o IBGE vai gerar de informações”, concordou Fernando Gaiger, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

O debate na Câmara refletiu o clima de apreensão existente no próprio IBGE. Cinco técnicos, entre supervisores e gerentes, entregaram seus cargos em junho por discordar das decisões da nova diretoria sobre o Censo.

Quando a nova presidente indicada por Guedes, Susana Cordeiro Guerra, assumiu há cerca de quatro meses não havia dotação orçamentária para o Censo, o efetivo era metade daquele de dez anos atrás, o número de funcionários que se aposentarão no próximo ano correspondia a 30% do quadro e foi necessário realizar de imediato três concursos para preenchimento de vagas, informou a executiva na audiência pública.

A presidente Suzana não seguiu os ritos institucionais, ao contrário do que disse na Câmara, pois deixou de lado o trabalho do comitê técnico. (Foto: Gilmar Felix)

Nesse contexto talvez pareça que garantir a realização do Censo foi uma proeza, mas as revelações surgidas no debate na Câmara sugerem que, provavelmente, o preço a pagar por isso será demasiado alto em termos de abalo da credibilidade do recenseamento e de danos ao País. 

Susana disse que os ritos e as praxes institucionais foram respeitados na alteração realizada no questionário, mas foi contestada por Oliveira. “Não é correto afirmar que foram seguidos todos os ritos da casa. A norma de serviço número 1 estabelece que quem deve decidir sobre o questionário é o comitê técnico do Censo, responsável também pelo seu direcionamento, planejamento e projeto técnico. Esse comitê, entretanto, depois que a nova diretoria foi empossada jamais se reuniu.”

Em seu depoimento, Susana admitiu que o questionário só passou pela comissão consultiva e pelo conselho diretor. O episódio sugere que o conhecimento técnico apurado do IBGE, premiado pela Unesco pela realização do Censo de 2010, foi jogado na vala pela diretoria empenhada em manejar a tesoura entregue por Guedes. “Levamos três anos escutando a sociedade, a academia e os usuários para estabelecer as prioridades. Não é aceitável que de uma hora para outra, às vésperas do Censo experimental, uns poucos mudem o questionário”, protestou Oliveira.

Em uma adaptação ao corte de verba, a diretoria do IBGE reduziu o número de perguntas do questionário da amostra que será levado a 71 milhões de domicílios em todos os municípios e fez modificações metodológicas.

Retrocesso

As questões suprimidas abrangem informações sobre vários tipos de bens de consumo duráveis existentes no domicílio e indagam se a instituição de ensino cursada pelo entrevistado é pública ou particular, se existem rendas não provenientes do trabalho como aposentadoria, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, pensão e aposentadoria privadas e qual é o valor do aluguel pago. A alteração atingiu também as questões sobre migração.

Risco: municípios pequenos, e Serra da Saudade é o menor deles, correriam mais risco de perda nos repasses da União com a alteração do questionário do Censo. (Foto: Ivan Victor)

Um dos pontos mais debatidos na audiência pública foi a supressão da pergunta sobre o valor do aluguel. “Retirar essa informação do questionário da amostra significa acabar com a possibilidade de calcular o déficit habitacional, de ver as desigualdades urbanas em cada município. O que se propõe em substituição? Obter essa informação com métodos indiretos, por meio de aproximação. Isso não é modernização, isso é atraso, é retroceder no tempo. Eu não conheço país nenhum que depois de ter informação abre mão dela para voltar para a técnica indireta. É isso que está sendo proposto aqui, porque ao retirar a questão do Censo não vai ter outro caminho. Então a gente tem que discutir e aprofundar essas questões”, destacou Oliveira.

O diretor de Pesquisa do IBGE, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e demógrafo Eduardo Rios Neto pareceu concordar com Oliveira neste ponto. “A mensagem que eu quero passar aqui é que houve um respeito técnico muito grande e há um esforço da casa para mitigar eventuais transtornos, como é o caso do aluguel. Esse é um compromisso que eu posso fazer aqui. Eu estou até sendo franco quanto a que de fato talvez (a exclusão da) pergunta sobre aluguel seja a mais controversa… Estamos cientes, há um custo, mas há uma segurança muito grande de que dentro dos limites que nos foram colocados e diante da premência de fechar o processo por causa do calendário, foi feito o melhor possível.”

Acrescente-se que a eliminação das questões do aluguel e da migração quebram séries históricas, ao contrário do afirmado na exposição da presidente do IBGE, de que a redução do questionário não provocaria esse tipo de ruptura.

Dados sobre migração eliminados

Outro ponto muito discutido na audiência foi a eliminação da pergunta sobre migração. “A questão da emigração e da imigração de data fixa é importante e de fato não tomaria muito tempo, mas por outro lado… quando alguém emigra, o faz com a família e só se consegue captar o emigrante que é um membro familiar se o domicílio continuar existindo. Há um trabalho de registro administrativo que está sendo iniciado com a Polícia Federal, mas mesmo esse não é o único mecanismo. O Itamaraty em outros momentos já tentou organizar a comunidade de brasileiros no exterior. Não estou desmerecendo o evento, que reputo da maior importância, mas há técnicas alternativas de medir e a principal é a seguinte: a imigração, mesmo não estando no questionário básico, ela é muito bem coletada na amostra. Porque ela é captada em alta proporção amostral nos municípios pequenos e em proporção menor nos municípios grandes, mas com uma representatividade muito elevada. Então, tanto a imigração nacional interna quanto a imigração internacional estão garantidas com muito boa qualidade, mesmo para questões fronteiriças, como a de Roraima com a Venezuela. Eu asseguro que a gente tem uma garantia”, sublinhou Rios Neto.

A eliminação de perguntas sobre migração afetará o Censo e os repasses e criará insegurança jurídica Foto: Nelson Antoine/Fotoarena

Oliveira ressaltou, entretanto, que, segundo a Lei de Migração, o País tem de manter políticas de pesquisas para recensear os brasileiros que vivem no exterior, mas o quesito foi tirado do questionário com o argumento de que se utilizarão dados da Polícia Federal, “apesar de não servirem para isso. É razoável imaginar que os brasileiros que moram nos EUA entraram pela fronteira do México? Os dados da Polícia Federal permitem saber isso? Há uma distorção da informação, que nunca vai poder ser usada. Sabem quanto tempo demorava para obtê-la mediante a aplicação do questionário? Seis segundos. Retirou-se uma informação de seis segundos, causando prejuízo para a política pública”, criticou Oliveira.

Em nota sobre o Censo de 2020, a Associação dos funcionários do IBGE alertou para o fato de que o corte do quesito da imigração “afeta gravemente as estimativas e projeções populacionais, comprometendo, inclusive, os cálculos referentes à distribuição do Fundo de Participação dos Municípios … Essas alterações bruscas, realizadas após as duas provas piloto do questionário, trazem risco à qualidade da operação censitária como um todo”.

Na quarta-feira 10, o Ministério Público Federal deu prazo de dez dias para o IBGE explicar as modificações feitas no Censo 2020. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão solicitou à presidente da instituição informações sobre o corte do orçamento inicial do Censo e esclarecimentos sobre possíveis efeitos prejudiciais ao levantamento a partir da eliminação de perguntas sobre fontes de renda, formação em escola pública ou particular, custos de aluguel, migração e propriedade de bens de consumo duráveis. O Ministério Público justifica que as alterações de última hora feitas pela diretoria do IBGE levantam “questionamentos acerca da qualidade dos dados obtidos e, consequentemente, dos impactos nos subsídios à implementação de políticas públicas”.

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