Sociedade

Após impasse em eleição, polícias de São Paulo seguem sem ouvidor

‘Quando a ouvidoria deixa de ter um ouvidor legítimo, a polícia passa a não ser controlada pela sociedade, o que é prejudicial’, aponta conselho ligado aos direitos humanos

O ex-ouvidor das Polícias de São Paulo, Elizeu Soares Lopes. Foto: Ouvidoria
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As polícias civil e militar do estado de São Paulo encontram-se sem um ouvidor titular. O cargo, que tem a função de receber e encaminhar denúncias sobre a atuação dos agentes, está vago desde 6 de fevereiro, data em que se encerrou o mandato do então Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, o advogado Elizeu Soares Lopes.

Um erro técnico teria motivado a suspensão do processo pela Secretaria da Justiça. O  Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (CONDEPE), órgão responsável pela elaboração da lista tríplice que ancora a nomeação, questiona essa justificativa.

A lista com os nomes dos candidatos ao cargo, bem como a quantidade de votos recebido por cada um, foi publicada no dia 11 de novembro do ano passado. O atual ouvidor Elizeu Soares, que recebeu quatro votos, ficou de fora da lista, que contemplou Renato Simões (nove votos), Alderon Pereira da Costa (oito) e Claudio Aparecido da Silva (oito). Simões foi indicado pelo ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania); Costa, pela Associação Rede Rua; e Silva, pela Sociedade Santos Mártires.

No entanto, segundo o Condepe, os votos do ouvidor Elizeu foram computados errados, com um total de oito, em vez de quatro. Também de acordo com o conselho, a ata deixou de citar duas entidades que participaram da reunião para eleição da lista tríplice.

“Imediatamente após tomar ciência dos erros, solicitamos publicação de errata em Diário Oficial, que foi autorizada. No entanto, a Secretaria da Justiça não publicou, travando o processo eleitoral, sem que se tenha sido concluída a lista tríplice, critério obrigatório para a escolha de quem vai dirigir o controle social das polícias paulistas, conforme Art. 3º, da Lei Complementar nº 860, de 20 de junho de 1997”, justifica o conselho.

Após a publicação divergente, o atual ouvidor da polícia e os deputados estaduais Coronel Telhada (PP) e Douglas Garcia protocolaram pedidos de impugnação do processo eleitoral. Elizeu Soares questionou o resultado apresentado em “planilha editável” e apontou que não houve emissão de “boletim de urna”. Já os parlamentares alegaram que o resultado teria sido manipulado. As representações, protocoladas, respectivamente, nos dias  19, 18 e 17 de novembro do ano passado, ainda não foram julgadas. Os deputados são co-autores de projeto de lei na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) que extingue a Ouvidoria das Polícias.

O Condepe afirma que, nos últimos meses, adotou todas as providências cabíveis para retomar o processo eleitoral para formação da lista tríplice e impedir que a Ouvidoria da Polícia tenha seu trabalho descontinuado. Em entrevista à CartaCapital, o presidente do Condepe, Dimitri Sales enumerou reuniões com representantes do governo do estado de São Paulo na tentativa de resolver a situação, caso do secretário de segurança pública, o general João Camilo Pires de Campos e o procurador-geral de Justiça do estado, Mário Luiz Sarrubbo.

“Alertamos que somente a nomeação de um Ouvidor a partir da lista tríplice elaborada pelo CONDEPE assegurará o cumprimento da legislação e dotará o indicado de legitimidade ética, possibilitando a continuação dos trabalhos da Ouvidoria da Polícia de São Paulo”, afirmou, ao também questionar a manutenção do atual ouvidor frente ao cargo.

“No nosso entendimento não é possível a continuidade de mandatos sem eleição. Há uma lista tríplice em formação que foi obstruída pelo governo do estado de São Paulo. É preciso retomar o processo eleitoral para que haja a nomeação de um ouvidor legítimo do ponto de vista político, com legitimidade por parte dos movimentos sociais, mas também do ponto de vista legal, já que a lei não permite recondução automática de mandato”, reforçou.

Elizeu Soares Lopes foi escolhido como ouvidor das polícias do estado em 2020 pelo governador João Doria. Na época, o tucano quebrou a tradição de escolher o nome mais votado da lista tríplice, e conduziu Lopes ao cargo, que ficou em terceiro lugar. Na ocasião, o mais votado pela lista tríplice foi Benedito Mariano, o primeiro ouvidor das polícias, nomeado por Mário Covas (PSDB).

A atual indefinição sobre o cargo preocupa Dimitri Sales que reforça a importância do controle externo das atividades policiais feitas pela ouvidoria, como uma representação da sociedade. “A ouvidoria é um órgão que acolhe denúncias da sociedade civil contra o abuso de autoridade, letalidade policial. Quando a ouvidoria deixa de ter um ouvidor legítimo, a polícia passa a não ser controlada pela sociedade, o que é prejudicial”, considera.

Dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do estado em julho do ano passado mostraram recorde de letalidade policial mesmo durante a pandemia, que promoveu isolamento social. O primeiro semestre de 2020 foi o que a polícia mais matou no estado em duas décadas. O número de homicídios e latrocínios também subiram.

De janeiro a junho, as polícias civil e militar mataram, juntas, 514 pessoas, um aumento de 20% na comparação com o mesmo período de 2019, quando houve 426 mortes. É o maior número da série histórica do governo paulista, que iniciou em 2001. Até então, o semestre mais letal havia sido 2003, com 487 casos.

CartaCapital procurou ouvidoria da polícia do estado que informou, via assessoria, que não ‘tecerá qualquer comentário sobre a nota divulgada pelo Condepe’.

Em nota, a Secretaria da Justiça e Cidadania informou que o processo segue ’em instrução, visando comprovar a higidez e lisura do pleito, em razão da necessidade de diversas retificações e considerando a representação feita pelo deputado estadual Coronel Telhada, que apontou itens que ainda carecem esclarecimentos’.

A pasta ainda acrescentou que a permanência do ouvidor Elizeu Soares encontra respaldo legal. “A permanência de Elizeu Soares como ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo após o término de seu mandato, em 6 de fevereiro, é amparada pelo decreto 60.020/2013, onde consta que em hipótese de descontinuidade entre o final de um mandato e nova nomeação, o último titular fica responsável pelo expediente, a fim de evitar prejuízo aos trabalhos”.

O presidente do Condepe rebate a versão do governo ao afirmar que decreto não se sobrepõe à lei. “Se assim prevalecer, um ato comum revogaria dispositivo de legislação que lhe é superior”, esclarece. “Não é possível que um decreto coloque a situação indefinida pelo tempo que o Governador julgar conveniente, desrespeitando a autonomia do Condepe. Ou, ainda, que sirva de desculpa para o descumprimento de deveres da própria administração, como adotar as medidas indispensáveis para a realização da eleição da lista tríplice da Ouvidoria da Polícia”, acrescenta Sales, que ainda reforça que a legislação que regulamenta o funcionamento da Ouvidoria da Polícia estabelece mandato com tempo certo.

“Vencido o mandato, não se admite gestões sem legitimidade tanto legal, quanto política, já que o Ouvidor ou Ouvidora deve ser indicado pela sociedade civil, representada pelo Condepe”, finaliza.

 

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