Sociedade

Antigo centro de tortura, Casa de Itapevi hoje abriga famílias

Ao menos oito militantes do PCB teriam sido torturados no local que funcionava clandestinamente atrás de uma boate no município da Grande São Paulo

Terreno na Estrada da Granja mantinha centro clandestino da repressão
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Um dos principais centros de tortura clandestinos durante a ditadura em São Paulo, a chamada Casa de Itapevi é habitada hoje por duas famílias. Da estrutura que funcionou como centro para interrogatório e detenção de militantes de esquerda contrários ao regime militar, no município da Grande São Paulo, é mantido o quarto usado para tortura e onde hoje dorme o cachorro de uma das famílias.

O terreno, conhecido como mini-chácara na Estrada da Granja, fica na parte de trás de um posto de gasolina BR, onde funcionou até a década de 90 a boate Querosene, uma casa de prostituição.

Acredita-se que ali tenha funcionado como estrutura para interrogatório e detenção de militantes presos na Operação Radar – ofensiva desencadeada sob o comando do Exército contra o PCB (Partido Comunista Brasileiro). Ligada ao DOI-Codi do II Exército e ao CIE (Centro de Informações do Exército), segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a casa funcionou como centro clandestino da repressão entre 1974 e 1975. Ali teriam sido vítimas oito militantes do PCB: Luís Inácio Maranhão Filho, João Massena Melo, Élson Costa, Hiran de Lima Pereira, Jayme Amorim de Miranda, Itair José Veloso, José Montenegro de Lima e Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior. Os corpos de todos eles estão até hoje desaparecidos. Dentre os militares responsáveis pelo funcionamento do centro clandestino estavam o tenente coronel de artilharia Aldir Santos Maciel (Dr. Silva), o major André Pereira Leite Filho (Dr. Edgar), e o cabo Félix Freire Dias (Dr. Magno ou Dr. Magro).

Com uma casa grande ao fundo, que há dez anos era dividida por um muro onde foi construída uma porta, o terreno tem pés de árvores frutíferas como amora, abacate, manga, seriguela, caqui, pitanga, e plantações de alface, couve, cebolinha e coentro. Ao lado fica o quartinho de tijolo e reboco onde dorme o cachorro e, mais adiante, próximo ao portão que dá para a rua, uma estrutura mais recente. Um depósito, construído pelo pai de uma das atuais moradoras, que foi feito para guardar material de carrinhos de fibra – produto que seria comercializado pelo pai do antigo proprietário, pai do atual dono do terreno.

Donos de uma pequena lanchonete na esquina, os vizinhos Márcia e Elias Joaquim de Souza contaram que quando se mudaram para a Estrada da Granja, no bairro Jardim Santa Cecília, em 1989, a boate já estava desativada. Elias lembra que na antiga casa vivia a ex-prostituta Benedita, que contava algumas histórias sobre o local. “Ela falava que vinha muita gente, mas nunca morreu ninguém ali”, contou. “E aqui nunca encontraram nada, não”, disse.

Um incêndio misterioso, no início da década de 90, no entanto, trouxe abaixo a estrutura onde funcionava a boate para ser ali erguido o posto de gasolina. “Começou do nada, por volta de 20 horas da noite. O bombeiro chegou umas três horas depois e tudo já estava destruído”, lembrou Elias.

Os funcionários do posto contam que o local no qual trabalham hoje foi construído há cerca de sete anos e mudou de proprietário. Até então o terreno onde funciona o posto de gasolina era também propriedade do dono da minichácara que abrigava o centro de tortura clandestino.

Impedida de abrir a casa por ordens do proprietário, uma das moradoras afirmou que não quer se aprofundar na história do local. “Às vezes é pior você saber”, disse com desconfiança em relação à versão da CNV. “Isso é boato. O povo fala muito. Fala coisas que não existem. O povo pode ter inventado um boato desses, e eu não acredito em boato.”

As sete pessoas que moram no terreno não pagam aluguel e dão uma contribuição mensal para ajudar no IPTU. “Eu sou evangélica. Antes de vir para cá, pedi para Deus visitar a minha morada sem saber que lugar era esse”, contou ao lembrar que a ideia inicial era ficarem ali seis meses morando de favor. “Quando eu cheguei aqui eu estava sem lugar para ficar. Aí como o rapaz conhecia meu pai, que trabalhava de pedreiro para o pai dele, ele cedeu para a gente ficar aqui alguns meses. Isso já faz dez anos.”

Pela Estrada da Granja duas vizinhas que passavam pela frente da minichácara conversavam: “Você sabia que isso aqui vai ser investigado?”, dizia uma para a outra. Nenhuma delas quis se identificar.

Edivaldo, morador do outro lado da rua que não revelou seu sobrenome, contou viver ali há 18 anos, mas nunca ouviu qualquer história sobre tortura, morte e desaparecimento pelas mãos do Estado. “Centro de tortura?! Nossa, terrível, hein”, disse espantado.

A Casa de Itapevi é um dos 17 centros clandestinos de repressão da ditadura mapeados pela CNV. Na apresentação do relatório na segunda-feira 7, a historiadora Heloísa Starling apontou em São Paulo também a Fazenda 31 de Março, ao sul da represa de Guarapiranga, e a Casa do Ipiranga, sendo essa um centro de recrutamento de infiltrados (militantes que prestavam serviços para o Exército). O local, na rua Tereza Cristina, próximo à avenida do Estado, funciona hoje como uma distribuidora de bebidas.

“Tanto a criação como o funcionamento regular são resultado de uma política das Forças Armadas”, afirmou Starling. “Não são estruturas autônomas, não são subterrâneas nem de milícias ou grupos paramilitares. Eram parte de uma estrutura de inteligência e repressão que obedecia ao alto comando das Forças Armadas.” Segundo a pesquisadora que colabora com a CNV, centros clandestinos eram propriedades privadas cedidas por proprietários que funcionavam como órgãos de tortura e não podem ser confundidos com quartéis e delegacias. Ela explicou que esses locais tinham como atribuições a eliminação de pistas que levassem à identificação dos militantes presos, como digitais, arcadas dentárias ou mesmo dos próprios corpos, e às circunstâncias em torno da prisão, tortura e morte desses.

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