Sociedade

“Ainda me alegro com elogio de um aluno, mas a esperança acabou”

Perseguido e precarizado, o professor Dennis Almeida é um triste retrato das crises que arrasam o País

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Quem visse os dados de Dennis Almeida rabiscados em uma ficha do IBGE não teria dúvida: eis aí um dos que impede que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro role de vez a ribanceira. É branco, heterossexual, tem olhos claros. Também pertence à classe média frustrada e endividada. 

Mas a vida é mais complexa que o censo. Dennis é, na verdade, um inimigo do governo. Quatro vezes inimigo. É professor. Que ensina história e literatura. Para crianças e adolescentes. Também faz mestrado em uma universidade pública. Um comunista-doutrinador-baderneiro, diriam os novos donos do poder. 

A história do professor se converteu em um triste retrato do colapso moral, político e institucional que tomou o País. A vida nas escola particulares nunca foi fácil, é verdade. Mas avinagrou mesmo de vez de três anos pra cá. “Desde 2016 eu me sinto um fracasso profissional”, diz.

Esses dissabores não são frutos apenas da crise econômica mundial. Embutido nesse colapso econômico, avalia ele, cresceu também um discurso feroz: se você não tem emprego, não trabalha, não prospera, o problema é você. 

O ponto máximo dessa crise aconteceu há duas semanas, quando tentou virar professor na filial de uma famosa rede paulista de colégios. Dennis fez dinâmicas de grupo com outros candidatos. Passou por um exame psicotécnico de quase três horas, ouviu elogios. Na hora de acertar o salário, veio o baque. O recrutador propôs fraudar a CLT em troca de um contrato por hora/aula. Viraria um uber-professor, ganhando o equivalente a 1.600 reais por mês.

Inclui-se aí o tempo preparando aulas e corrigindo provas. Em dezembro, janeiro e julho (quando os alunos são liberados para as férias escolares) não receberia um centavo. Décimo-terceiro? Nem pensar. Para arrematar a oferta, o coordenador lançou um slogan adaptado de uma outra rede de ensino: aula dada era aula paga. 

Dennis Almeida: desempregado, agora teme que sua profissão deixe de existir (Foto: Wanezza Soares)

Dennis disse não. Ouviu do interlocutor que não tinha visão. Entrou no carro e chorou. “Não foi só a proposta, foi o acinte de tratar aquilo como oportunidade: ‘Olha que sorte você tem, você não vai ser um funcionário, não vai ser um sócio’”.

O Micro Empreendedor Individual (MEI) foi criada em 2008 para acomodar categorias que estavam relegadas à informalidade. Deu guarida jurídica e fez girar a economia durante a recessão — das 955,3 mil empresas abertas entre janeiro e maio deste ano, 79,2% eram MEIs. Em alguns casos, porém, se converteu em brecha para despistar o fisco e aliviar os custos com contratação. 

 É preciso manter o caixa girando, alunos motivados e pais satisfeitos. Tudo isso em um mercado cujo número de matrículas está estagnado desde 2016.

No caso dos professores, essa insegurança fragiliza ainda mais o professor em relação aos alunos, pais e diretores. O trato fora da lei livra essas escolas de, por exemplo, respeitar as regras especiais do magistério — que impedem, por exemplo, que um professor seja demitido no meio de um semestre. 

A pressão de pais descontentes, antes feita cara a cara, perdeu o lugar para uma tática mais agressiva. Os pais agora formam uma espécie de milícia digital no WhatsApp. Se não gostam do que este ou aquele professor disse, o grupo todo pede a cabeça em troca de manter os filhos estudando. “O Escola Sem Partido deu método, sentido de grupo e vocabulário a esses pais”, diz Dennis.

Nem no banco, nem na sociedade

Aos 37 anos, Dennis é professor há quase vinte anos, sempre na rede privada. Sua esposa, também. A carreira era estável até 2016, quando ele perdeu o emprego em duas escolas de São Paulo. Mudou-se com a mulher para Minas Gerais. Dessa vez, a demitida foi ela. O mesmo aconteceu de novo com ele pouco depois. Se fosse para sobreviver, pensou, melhor voltar para o lugar onde eles gostavam de estar.

Estão de volta em São Paulo, onde dividem uma casa de fundos com os pais dela na Vila Morse, bairro operário da Zona Oeste da capital. Os móveis e pertences continuaram em Minas, e ficarão por lá até que o casal consiga os 8 mil reais necessários para a mudança.

Fora dos muros da escola, o profissional da educação perdeu também o respeito da sociedade. “Faz tempo que eu não sei o que é estar feliz no trabalho. Ainda existe a alegria de ouvir o elogio de um aluno, de um dia de trabalho bem feito. Mas perspectiva com o futuro? Isso não”.

Ele e outros cento e cinquenta professores trocam oportunidades em escolas particulares por meio de um grupo no WhatsApp. “Todos estamos correndo atrás de escolas, porque as particulares encolheram.” Até a esposa se converteu em concorrente: se um é chamado para um processo seletivo, diz ele, o outro desiste.

“Eu amo a carreira que eu segui, mas ela não me dá respaldo nenhum. Nem no banco e nem na sociedade”. 

Há dois anos, em meio às primeiras discussões sobre a Previdência, o casal angustiava por não saber se iria se aposentar. Agora, ele sente que algo recrudesceu. O que o preocupa mesmo é saber se sua profissão continue existindo sob a cruzada bolsonarista contra o pensamento crítico e a educação. Por isso decidiu brigar.

Topou falar com CartaCapital, mesmo sob o risco de ficar queimado no mercado. “Nosso desespero é saber: daqui a cinco anos, vai existir a profissão? E se esse maluco decide acabar com a área, e um congresso conservador aprova?”.

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